domingo, dezembro 28, 2008

ENTREVISTA/Jennifer Aniston e Owen Wilson


Esta semana a Contigo! publicou meu texto sobre a entrevsita coletiva com Jennifer Aniston e Owen Wilson, em Santa Monica, Califórnia, por conta do lançamento do filme Marley & Eu, comédia romântica que chegou aos cinemas do Rio e de São Paulo no dia de Natal.

O texto que escrevi, na íntegra, segue abaixo:

Jennifer Aniston


Deixem-Me Ser Só Atriz

Por Eduardo Graça, de Los Angeles

A namoradinha da América sorri amarelo quando intimada, na conferência de imprensa no hotel à beira da praia de Santa Mônica, a dizer quem é mais fiel, o cão ou o homem. “O quê? Não tenho a menor idéia!”, diz. O mais loiro dos irmãos Wilson, por sua vez, deixara o repórter do USA Today falando sozinho, depois que este perguntara, em entrevista publicada na capa do caderno de entretenimento do jornal de maior vendagem do país, se seu cachorro o ajudara a enfrentar momentos difíceis em sua vida. Não, não tem jeito. Um filme-família, uma história deliciosa com um cachorro sapeca, discussão emocional sobre a mortalidade, gente bonita e casas fantásticas, no campo ou à beira do mar, parecia a receita perfeita para se deixar de lado as agitadas vidas pessoais de Jennifer Aniston, 39, e Owen Wilson, 40. Mas o lançamento de Marley & Eu, que chega aos cinemas brasileiros na Noite de Natal, não impediu que a cena se repetisse: dezenas de paparazzi se espremendo na porta do hotel, em busca de alguma imagem da ex-mulher de Brad Pitt e do menino de ouro de Hollywood que foi parar no hospital aparentemente por conta de uma profunda depressão.

Mas deixemos as emoções mais fortes para o fim, como o roteiro de Marly & Eu. Adaptação fiel de um dos livros de maior sucesso de 2005 nos EUA, a estrela-mor do novo filme de Aniston é, em última análise, o cachorro Labrador sapeca e malandrão que se torna o mote das colunas de seu dono, o jornalista John Grogan, vivido por Wilson. Aos poucos, Marley conquista a patroa da casa, a também jornalista Jenny (Aniston), os filhos que vão chegando – os fofíssimos Patrick, Conor e Colleen – e o público saudoso de heróis do calibre de Lassie e Benji . “Quando li o roteiro, honestamente, pensei naqueles sonhos que você tem quando é jovem, planeja sua vida toda e...as mudanças chegam de súbito! Nós não temos a menor idéia do que o futuro nos reserva. Temos ambições, expectativas, nos preparamos para um cenário que criamos na nossa mente e às vezes você tem de jogar fora certos desejos, pois aquela não é a estrada que você irá trilhar”, diz a atriz, entre uma e outra longa passada de mão pelas madeixas loiras, filosofando sobre sua personagem em Marley & Me, uma jornalista que vira dona-de-casa enquanto o marido se transforma em estrela do jornalismo local ao escrever sobre as estripulias do cão Marley. Mas a metáfora, é claro, também vale para a história da menina de ouro que durante dez anos brilhou no seriado Friends como a falsa-boba Rachel, subiu o altar com Brad Pitt, 45, e viu-se no meio do triângulo amoroso mais famoso de Hollywood quando seu marido a deixou por Angelina Jolie, 33.

“Tenho tanto medo de transportar esta questão para minha vida pessoal. Não sou o tipo de pessoa que tem sempre tudo planejado. Quando criança, não era a menina que sabia que iria crescer, se casar e ter filhos. Apenas queria sair da casa de meus pais e sobreviver! Ter meu próprio apartamento, sabe? Acho que é meio óbvio que sou uma ‘pessoa do momento’’, jura, recitando a velha máxima de John Lennon, uma de suas favoritas, aquela em que o Beattle dizia que “a vida é o que acontecia enquanto você estava fazendo outros planos”.

Quatro anos depois da confusão que virou sua vida de cabeça para baixo, Aniston deixou escapar, em recente entrevista à Vogue americana, que não gostou da declaração de Angelina, mãe de seis filhos (três biológicos, três adotados) com Pitt, publicada na revista americana no início de 2007, de que, sim, ‘contava os minutos para estar no set de filmagem de Senhor e Senhora Smith, e que poucas crianças tinham o privilégio de conferir o filme em que seus pais se apaixonaram’. “Foi muito feio da parte dela”, reclamou a estrela de Marley & Eu. Bastou esta simples declaração para que a novela Brangelina voltasse ao horário nobre. Mas Aniston não perde o humor: “As pessoas adoram mexer com meus cachorros, a Dolly, uma pastora-branca, e especialmente com o Norman, meu terrier! Como ele apareceu em várias publicações, trata-se de um cachorro reconhecido na rua, sabe? Mas estou colocando limites nele! Nada de aparecer mais na Oprah e muito menos na Vogue!”.

Revistas, decididamente, não têm sido o forte da loira. Em plena campanha de lançamento de Marley & Eu, ela acaba de aparecer como veio ao mundo – coberta apenas por uma gravata tricolor - em um ensaio sensualíssimo para a capa da GQ americana com o título Meu Deus, Esta Mulher Tem 40 Anos!, ao lado de jovens modelos masculinos. Na reportagem, ela diz que se sentiu bem em “posar com o corpo nu sobre homens que funcionavam como mobiliário para mim”. As críticas de que ela estava ‘fazendo tudo’ para promover o filme começaram a pipocar na imprensa assim que as imagens foram parar na internet. Mas o que Aniston faria se, como sua personagem Jenny, fosse de fato uma jornalista e se tornasse editora-chefe de uma revista importante? Ao ser questionada, a atriz primeiro ri, coça as mãos e faz sua melhor careta de maldoso: “Ah, o que eu faria? Tcharam! Não, me desculpe, mas passo esta, vamos para a próxima”.

No próximo minuto Aniston diz que espera expandir seus domínios no mundo maravilhoso do cinema. Há dois anos ela dirigiu o drama Room 10 (inédito no Brasil), com elenco comandado por Kris Kristofferson e Robin Wright Penn (mulher do ator Sean Penn). E este ano ela produziu Management, uma comédia romântica em que divide a tela com Woody Harrelson. Seu último blockbuster, Separados pelo Casamento, foi lançado há distantes dois anos e meio. A atriz declarou recentemente que, em um ano que ainda estrela a aguardada comédia Ele Não Está Tão A Fim de Você, atração de abril nas telonas brasileiras, “esperava que agora as pessoas parassem de falar de minha vida pessoal e lembrassem que tenho um emprego, sou uma atriz”.

Sim, mas é verdade que a atriz reatou seu romance com o cantor John Mayer? E que a atriz deixou e beber e está mais gordinha – de acordo com os tablóides americanos, pois o repórter desta Contigo! não conseguiu perceber gordurinhas a mais na belíssima loira, vestida com um pretinho básico colado ao corpo – prova de que...estaria grávida? “Lá vem a pergunta sobre o meu relógio biológico! Ai, meu Deus! Eu não tenho nada a dizer sobre este assunto, gente! Na-da!”, desconversou. Mas a atriz não poderia então revelar a fórmula de se atravessar momentos complicados na vida? “A mesma que todos usam. Famílias e amigos”, garante, séria. E os requisitos para um relacionamento perfeito para a vida da atriz, um parceiro ideal como o John, de sua Jenny, no filme? “Não há pré-condições, não idealizo. O filme é bem realista, eles brigam bastante, mas se seguram, na capacidade de assumirem compromissos e no fato de não serem egocêntricos. Acho tão ilusório pensar em relações ideais, sem altos e baixo. Vocês ainda acreditam nisso? Jura?”.

Talvez por conta do reality show em que sua vida se transformou há quatro anos, Jennifer Aniston, a atriz, gosta de encarar os interlocutores e devolver-lhes as questões que são originalmente endereçadas para Jen, o ícone dos tablóides. Na longa reportagem da GQ ela conta que um dia desses, cansada, decidiu abrir a janela do carro e perguntar a um dos vinte paparazzi que a seguiam em deprimente cortejo pelas ruas de Beverly Hills, onde mantém seu escritório: “Gente, vai ser isso todo dia? Não tem como a gente fazer algo um pouquinho menos insano?”. Ao fim, vidro fechado, a atriz não conseguiu deixar de achar graça no fato de que, por um momento, percebeu-se sentindo falta do tempo em que os fotógrafos se escondiam atrás dos arbustos para capturarem uma imagem-surpresa. Ironicamente, eram tempos mais românticos no circo das celebridades.

Rica, poderosa, bela, ousada, a moça do narizinho arrebitado e da pele sempre queimada de sol não consegue deixar de passar uma sensação de melancolia, injustiça e abandono por onde quer que passe. Vai ver este é o charme de La Aniston, que solta pistas do que de fato pensa sobre sua própria trajetória assim quase que sem querer, como ao explicar o motivo pelo qual decidiu, depois de muito pensar e repensar, encarar seu primeiro “filme-família-pra-valer-com-cahorro-a-tiracolo”. Foi uma longa conversa com o diretor David Frankel, horas a fio falando daquela mulher que deixara a carreira para trás afim de cuidar de crianças e de um marido destinado ao sucesso, que a fez finalmente topar o desafio. “Acho que a sensação de conforto que tive vem do fato de David não ser de Los Angeles, não ser deste mundo que pode te...pode te...não sei...”. E a entrevista termina com Aniston saindo às pressas enquanto policiais carrancudos circulam pelo saguão e fotógrafos impacientes tentam cercar todas as saídas do hotel. É dura a vida da atriz.

Owen Wilson

Terno cinza, camisa cor-de-rosa de gola e um tênis branco, Owen Wilson é uma reprodução quase perfeita de seu personagem John Grogan em Marley & Eu. Nem bem chega a uma das salas de convenções do hotel e ele lembra que seu cachorro, Garcia, um cão-de-guarda australiano, também aprontou muito, quase tanto quanto Marley. “Nos primeiros anos tive que lidar, digamos assim, com uma questão de energia em demasiado do Garcia. Fiquei muito mais próximo dele depois, quando ele se acalmou. Não conhecia ninguém com uma história de ter um cachorro tão espevitado quanto o Marley até que a Jen me reltou a história dela”. Aniston teve um chow que, nas palavras da atriz ‘era assustador e chegou a avançar em uma criança’. O jeito foi mandá-lo de volta para o criador que a vendeu o animalzinho.

Wlson parecia aéreo na entrevista e respondia a questões com algum atraso, para deleite de Aniston, que se divertia com suas tiradas. Inclusive com sua reflexão sobre a fidelidade canina em relação às escapulidas sexuais e sentimentais dos seres humanos. “Para fazer esta comparação de fato, temos de levar em conta se o cão em questão foi castrado ou não”, disse, sério. A voz, miúda, e o sorriso, largo, dão um tom de ternura ao ator que passou por momentos difíceis no ano passado, quando foi hospitalizado depois do que a polícia de Los Angeles qualificou como uma tentativa de suicídio. De acordo com amigos, Wilson estava arrasado com o fim de seu romance com a atriz Kate Hudson, 29.

Um dos momentos mais delicados na divulgação de Marley & Eu aconteceu quando o repórter do jornal USA Today perguntou ao ator se seu cachorro Garcia tinha sido importante no momento difícil pelo qual passara recentemente. O ator simplesmente saiu para respirar e voltou para o local minutos depois, continuando a entrevista sem responder à questão. “Vejo Marley & Eu também como a história de um homem que em determinado momento acha que seu amigo, um jornalista que acaba no New York Times, tem uma vida mais interessante do que a dele. O John precisa encontrar a felicidade nas aventuras da família, na rotina com Marley. É como se o desafio dele fosse encontrar a felicidade com o que ele tem”, diz.

Quando alguém o pergunta se ‘vida em família’ é valorizada demais nos dias de hoje, Wilson é rápido no gatilho: “mas quem é que vai responder um ‘sim’ a uma pergunta destas? Quem não quer estar cercado pelos que os amam? Sou muito próximo de minha família e estar cercado pelos meninos no filme foi ótimo. E foi legal ver o David (Frankel, diretor do filme) lidando com seu filho no set de filmagem. Fiquei pensando que seria legal ter um filho também”.

No set de filmagem, no entanto, os bebês sempre choravam quando ele os pegava no colo. “Não sei o motivo, mas era tiro e queda. Com a Jen, ao contrário, eles ficavam calmos. Eles definitivamente ficavam mais calmos com ela”, disse, piscando os olhos.

quarta-feira, dezembro 24, 2008

O TRISTE FIM DA ERA BUSH/Carta Capital

A Carta Capital publicou esta semana, na capa, minha reportagem sobre o último mês do governo Bush II e o fim da era neo-con em Washington.

Ó só:

O TRISTE FIM DE UMA ERA
Por Eduardo Graça, de Nova York

Madison Square Garden lotado, quase terça-feira de uma noite gélida em Manhattan, e Neil Young interrompe subitamente a série de clássicos de seu repertório para encarar o público com uma pergunta direta: “Gente, para onde foi todo o dinheiro?”. Pasma, a audiência, que vinha cantando alegre os refrões de Hey, Hey, My My e Cinnamon Girl, cala-se para ouvir o bardo de 63 anos apresentar sua nova melodia, composta em cima de questões como Onde está o dinheiro?/E o lucro, com quem ficou? A nova música de Young – Cough Up The Bucks – traduz com exatidão o sentimento de milhares de nova-iorquinos, ainda em estado de choque com a revelação do que deve ser o maior esquema em pirâmide da história do capitalismo, um rombo de US$ 50 bilhões, orquestrado nas barbas do governo Bush, em meio a uma crise financeira de proporções gigantescas.

O que nem os velhos hippies poderiam sonhar é que na semana em que mais um nome graúdo de Wall Street, o administrador de fundos Bernard L.Madoff, entraria para a lista de vilões de uma era com fim oficial marcado para o próximo dia 20 de janeiro, um jornalista iraquiano de uma das mais pobres comunidades de Bagdá seria tratado como herói no mundo árabe ao jogar seus sapatos no presidente Bush em uma conferência de imprensa na capital iraquiana. O encontro fazia parte do que os meios de comunicação norte-americanos apelidaram de Turnê do Legado, ou, em versão mais maldosa, Magical Lagacy Tour (uma referência ao famoso álbum Magical Mistery Tour, dos Beatles), uma iniciativa da administração republicana de destacar o que consideram os aspectos positivos dos oito anos de neo-conservativismo em Washington. Nos últimos dias, o presidente e o vice, Dick Cheney, deram seguidas entrevistas às redes de tevê aberta mais importantes dos EUA, justificando a invasão do Iraque, batendo na tecla de que a segurança interna do país foi fortalecida, celebrando a redução de impostos para os mais ricos, os 52 meses seguidos de criação de empregos e até mesmo assumindo o uso de métodos de tortura como o afogamento simulado contra prisioneiros de guerra.

O equívoco de se fazer um balanço dos oito anos de governo, prática comum na democracia americana, é gritante no caso de Bush, de acordo com o colunista da Newsweek Howard Fineman, porque “ele simplesmente não tem uma grande história para contar. Sua herança, na narrativa dos próprios republicanos, se reduz ao fato de que os EUA não foram atacados em solo americano uma segunda vez”. O jornalista lembrou ser no mínimo contraditório o presidente se vangloriar pelo fato de ter levado a guerra contra o terror para o Oriente Médio, bem longe do solo americano. Quando questionado pelo entrevistador da ABC de que a Al-Qaeda somente entrou em território iraquiano após a invasão americana a resposta de Bush foi emblemática: “E daí?”.

Em uma semana de imagens fortes, nada se comparou ao gesto catártico do jornalista Muntander al-Zaidi, a sapatada “em nome das viúvas iraquianas”. Depois de levar uma surra dos seguranças do primeiro-ministro Nuri al-Maliki, o repórter televisivo foi detido e pode ser condenado a pena de até oito anos por agressão física contra um líder estrangeiro em visita oficial ao país. Tratado como herói nacional em todo mundo árabe, Maliki e seus sapatos jogados contra Bush foram mais ou menos discretamente saudados até mesmo nos órgãos de imprensa aqui dos EUA, com a ressalva de que ‘não se deve cair na tentação de se comemorar um ato desrespeitoso contra o primeiro-mandatário do país’. Além das piadas nos talk-shows, da proliferação de jogos pela internet em que o usuário, ao contrário do jornalista, de fato acerta os sapatos no presidente, a imagem transformou-se na “mais icônica da Era Bush, pois captura como nenhuma outra o sentimento do mundo em relação ao nosso presidente”, de acordo com o editor-associado do Washington Post Eugene Robinson.

Do outro lado do Atlântico, o prêmio Nobel José Saramago, em seu blog, escreveu que ‘Maliki, fique seu nome para a posteridade, encontrou a maneira mais contundente e eficaz de expressar seu desprezo - o ridículo ‘. O autor de Ensaio sobre a Cegueira ainda sugere que “um par de pontapés tampouco estariam mal”, mas o ridículo, lembra, “é para sempre”. “Esta é, sim, a imagem definitiva das aventuras de Bush no Iraque. Mas talvez este episódio sirva também de guia para o que nosso presidente fará, afinal, depois de janeiro. Quem sabe ele não se torna um garoto-propaganda da Nike, criando o mote ‘mais sapatos! Mais tênis! É só jogar?”, sugere o humorista Harry Shearer, a voz de Mr.Burns no desenho Os Simpsons, que lança este mês o disco Songs of the Bushmen, uma crônica dos agitados tempos de George W.Bush,

Enquanto o ex-presidente anunciava que, logo após deixar o governo, começará a escrever uma auto-biografia, o vice Dick Cheney, que muitos analistas dizem ter sido a verdadeira força política na Casa Branca desde 2001, reconheceu em entrevista para a rede ABC a autorização do uso de afogamento simulado contra prisioneiros, um ato inédito na história dos EUA. É a primeira vez que um funcionário público admite o uso de tortura, segundo ele “com resultados extraordinários”. “Se os sapatos são a imagem final de Bush, este é o legado de Cheney – Washington admitindo o uso de tortura. Mas há ao menos um lado positivo aqui: ele ofereceu a oportunidade de a democracia se aperfeiçoar, de se corrigir um erro imenso. Cheney escancarou os portões de um dos fundamentos da democracia, a prestação de contas”, apontou o jornalista Ron Suskind, autor de The Way of the World e ganhador do Prêmio Pulitzer de Jornalismo.

O senador democrata Carl Levin, comandante do comitê das Forças Armadas no Congresso, anunciou na quarta-feira que o relatório resultante da investigação parlamentar sobre a autorização do uso de tortura pelas forças armadas dos EUA, encerrado este mês, será cuidadosamente analisado pelo futuro Defensor-Geral da União, a ser nomeado por Barack Obama. É que o atual, Michael Mukassey, de acordo com Levin, simplesmente “não demonstrou interesse pela questão”. O senador revelou ainda que o novo presidente deverá instaurar uma comissão exclusivamente para a investigação de práticas de tortura pela C.I.A.

É justamente o descaso em relação à prestação de contas que vem exasperando os norte-americanos. O Washington Post publicou pesquisa revelando que 70% da população aprova a retirada das tropas do Iraque paulatinamente nos próximos 16 meses e a reação do vice-presidente Dick Cheney foi outro direto “e daí?” em rede nacional de tevê. “E a idéia que se tenta vender agora de que a Doutrina Bush é uma espécie de terceira via, em que se lutou contra o terrorismo enquanto se semeava democracia no Oriente Médio simplesmente não se fundamenta. Durante a era Bush viu-se um aumento do terrorismo em escala planetária, inclusive contra americanos, no Iraque, no Afeganistão, em Londres, em Mumbai”, diz Richard Wolfe, o principal correspondente da Newseek em Washington.

As coisas pioram quando os republicanos tentam valorizar seu recorde econômico. Em suas entrevistas Bush defendeu a estratégia de diminuir os impostos para os mais ricos com o objetivo de estimular a movimentação econômica, deixando de lado os 1,9 milhões de postos de emprego que desapareceram no período em que ocupou a Casa Branca. Mais grave: sequer trata da crescente desregulamentação e dos pacotes de ajuda ao mercado financeiro no momento em que o maior esquema de pirâmide é desbaratado desde as confusões na Albânia pré-capitalista nos anos 90, fazendo vítimas famosas como Steven Spielberg e contaminando setores inteiros da economia, como o imobiliário. Para o cidadão comum, como o diretor de design Andrew James Slater, 38 anos, fica a sensação da platéia do show de Neil Young, de que “uma das claras heranças deste governo é a eliminação de métodos de regulação que permitiram à escória deste país desvirtuar a idéia do sonho americano”.

A emergência do que Slater chama de ‘socialismo para ricos’, dos grandes pacotes de ajuda ao sistema financeiro e à indústria, se tornou especialmente emblemático esta semana quando detentores de cartão de crédito com a marca Citibank receberam cartas anunciando o aumento dos juros à pessoa física em caso de atraso d epagamento, que podem chegar ao dobro da taxa anterior. E o banco recebeu aquela que é considerada a maior ajuda financeira da história do governo americano no mês passado. “Bush chegou a Washington para inaugurar uma nova era de responsabilidade pessoal. Pois em oito anos, ele não parece ser responsável por coisa alguma, é tal qual um Forrest Gump de sua própria administração, um espectador passivo que, sobre o desastre econômico, não tem nada mais a dizer do que ‘sinto muito que isso aconteceu’”, esbravejou Frank Rich, um dos críticos mais contundentes do governo Bush, em sua coluna no New York Times.

Uma das cenas mais constrangedoras da semana foi a admissão do presidente da SEC, Christopher Cox, o organismo governamental de regulação da Bolsa de Valores, responsável por evitar fraudes como a comandada por Bernard Madoff, de que ‘deveria ter percebido os sinais’ de que algo estava errado com os números que não batiam nos investimentos gerenciados pela Madoff Investment Securities. A lógica da pirâmide – em que investidores são pagos com o dinheiro aplicado pelas próximas vítimas até que, em tempos de vacas magras, não há mais dinheiro a ser resgatado, com o capital desaparecendo os livros e telas de computador como que por mágica – é tão primária que ninguém entende como o SEC não atentou para o fato de que a M.I.S. tinha muito menos em caixa do que os US$ 17 bilhões declarados em 2007. Especialistas no mercado financeiro acreditam ser impossível Madoff ter agido sem ajuda externa.

Curiosamente, o mesmo Mukassey que não se interessou pela investigação sobre o uso de tortura nas Forças Armadas anunciou, na quarta-feira, sua desistência em presidir as investigações contra Madoff, já que seu filho, Marc, é um dos advogados do escritório de advocacia Bracewell & Giuliani (do ex-prefeito de Nova Iorque e pré-candidato republicano à presidência dos EUA Rudolph Giuliani). Um dos clientes da firma é Frank Di Piscali, executivo da M.I.S.

Um legado da Era Bush que parece mais vivo do que nunca é a prática do nepotismo. Se Barack Obama quebra os 28 anos de Casa Branca ocupada ora por um Bush (incluindo George pai, como vice de Reagan por oito anos e presidente por outros quatro) ora por um Clinton, suas escolhas para o primeiro gabinete democrata desde 1992 transformou o Senado no que a imprensa apelidou de nova Câmara dos Lordes. Em Nova Iorque, os candidatos mais fortes para assumirem o lugar de Hillary Clinton, a nova Secretária de Estado, são Caroline Kennedy (a filha do ex-presidente John F. Kennedy, que está fazendo campanha abertamente e espera ser a nova representante da família na Câmara Alta do Congresso americano, já que o tio Edward, um dos maiores entusiastas da candidatura Obama, está com câncer no cérebro e não se candidatará à reeleição em Massachussetts) e Andrew Cuomo, filho do ex-governador Mario Cuomo, e ex-marido de Kerry Kennedy, uma das filhas do ex-senador Robert F. Kennedy.

A comparação com a nobreza britânica aumenta quando os democratas afirmam abertamente que a principal qualificação da filha de JFK é o fato de ela poder arrecadar US$ 30 milhões com facilidade para a disputa que enfrentará, nas urnas, em 2010, contra um republicano. No Colorado, o irmão do senador Ken Salazar, escolhido pelo presidente eleito para ser o novo Secretário do Interior, o deputado John Salazar, deve ser o escolhido pelo governador do estado para ocupar a vaga aberta. E em Delaware, a vaga do vice-presidente Joe Biden foi para o seu principal auxiliar-direto, que estaria guardando a vaga para seu filho, Beau Biden, no momento servindo no Iraque. E George W.Bush anunciou esta semana que seu irmão Jeb, seria um ‘ótimo’ senador por Flórida, lançando sua candidatura às eleições de 2010.

“Mas há uma razão, além da capacidade de se arrecadar milhões de dólares, para algumas destas escolhas serem extremamente populares. É que temos a sensação de que conhecemos intimamente estas pessoas. Nós vimos Caroline crescer, quem não se lembra dela na Casa Branca, depois se casando, tendo filhos, agora apoiando Obama tão decisivamente e comparando-o a seu pai? É como se estivéssemos apostando em algo absolutamente certo, não se trata apenas, quero crer, de um jogo de sobrenomes e celebridades”, diz o apresentador do programa Hardball, Chris Matthews. Colega de Matthews na MSNBC e nova estrela do jornalismo liberal nos EUA, a apresentadora Rachel Maddow prefere acreditar que o maior legado da era Bush foram os atos corajosos dos indivíduos que desafiaram o ‘poder imperial de Washington e denunciaram que a lei havia sido burlada pela burocracia governamental’.

Gente como Thomas Tamm , funcionário do Departamento da Justiça, que denunciou a gravação ilegal de conversas de milhares de cidadãos americanos, o embaixador Joseph Wilson, que revelou nas páginas de opinião do New York Times os falsos relatórios de inteligência dando conta da existência de armas de destruição em massa no Iraque, justificativa inicial da invasão norte-americana, o sargento Joseph Darby, que apresentou as fotografias dos abusos a prisioneiros iraquianos em Abu Ghraib, os advogados americanos, como Zachary Katznelson, que decidiram defender de graça os presos de origem árabe de Guantánamo por acreditarem no direito de defesa e a ativista Elena Ruth Sassower, que aqui nesta Carta Capital contou sua experiência como a primeira cidadã americana presa por protestar publicamente contra a nomeação de um juiz federal pelo governo Bush. Anos depois de Sassower deixar sua cela – em que contou com a simbólica companhia da Constituição Americana, sua leitura diária durante o confinamento – o aparelhamento político do Judiciário se tornou importante peça de propaganda dos democratas para a reconquista da Casa Branca.

Na semana em que o presidente mais impopular da história dos EUA, há pouco mais de um mês do fim de seu derradeiro mandato, decidiu discutir, ao vivo e a cores, no Iraque e nos EUA, o legado de uma era marcada pelos ataques terroristas de 2001, a invasão do Iraque e do Afeganistão, o confisco de liberdades individuais dos norte-americanos, a desastrosa resposta à tragédia causada pelo furacão Katrina no sul do país, o nepotismo nas escolhas para cargos de interesse público, o uso de tortura contra prisioneiros de guerra, a criação da prisão-goulag de Guantánamo e o esfacelamento do sistema financeiro, a reação nas ruas de Nova Iorque foi a do público de Neil Young. Nas palavras de Andrew James Slater, “no fim, atônitos, percebemos que o principal legado de Bush, queira ele ou não, é Barack Obama. Ele jamais teria sido eleito, não teríamos uma mudança tão radical na Casa Branca, se não fosse pelos oito inesquecíveis anos de George W. Bush”.

terça-feira, dezembro 16, 2008

A CRISE IMPRESSA/Carta Capital

A Carta Capital desta semana publicou meu texto sobre a crise da imprensa norte-americana. Aí vai:

Nosso Mundo

A CRISE IMPRESSA

MÍDIA NOS EUA A concordata do grupo Tribune indica: a debacle econômica deve apressar a decadência de jornais e revistas

POR EDUARDO GRAÇA,
DE NOVA YORK


Para onde vai a imprensa escrita norte-americana? Enquanto os canais de tevê de notícias 24 horas celebram espetaculares índices de audiência desde o início da prolongada campanha presidencial e a internet se revelou fundamental ao fenômeno Barack Obama, jornais e revistas seguem perdendo leitores. A Tribune Company, que publica dois dos mais importantes títulos do país, o Los Angeles Times e o Chicago Tribune, entrou com um pedido de falência e o New York Times anunciou que vai hipotecar seu edífico-sede, um belo prédio de 52 andares projetado pelo arquiteto italiano Renzo Piano, inaugurado com pompa no ano passado.

A melhor ilustração para entender a que ponto chegou a indústria jornalística dos EUA talvez seja a já famosa reunião do bilionário Samuel Zell com a equipe do Orlando Sentinel no início do ano. Magnata do mercado imobiliário, Zell arrematou o já combalido conglomerado de jornais Tribune - mais algumas redes de televisão - por 8,2 bilhões de dólares. Em seu primeiro encontro com os editores do jornal da Flórida, foi direto: "Estava cá pensando como pedereia descrever meu trabalho para vocês. Creio que, grosso modo, meu desafio é levantar uma instituição de 126 anos, não? Pois bem, pensem em mim como um Viagra". Tempos depois, em reunião com a equipe do Los Angeles Times, o mesmo Zell teria garantido "não ter vindo para ser o capitão do Titanic".

As infelizes metáforas, que se transformaram em anedotas em capítulo infame de uma das mais ricas tradições joranlísticas do país, não pararam nos domínios do Tribune. Em entrevista à NPR, a corporação pública de rádio dos EUA, o editor-executivo do jornal mais influente do país, Bill Keller, disse na terça-feira ue, se tivesse de escolher uma manchete para definir a atução situação do seu The New York Times, esta seria "Nós Sobreviveremos", em caixa altíssima.

Ironicamente, a mesma NPR, apesar de manter uma audiência sólida de 26,4 milhões de ouvintes por mês, anunciaria dois dias depois o corte de 7% de sua força de trabalho e o cancelamento de dois programas, o Day to Day, com audiência de 2 milhões de ouvintes, e o News & Notes, voltado para a comunidade negra.

A revista Newsweek, uma das mais influentes semanais e parte do grupo The Washington Post, também estaria, de acordo com o The Wall Street Journal, preparando uma 'remodelação', dimunindo de formato e aumentando o espaço para fotos e opinião, reduzindo as mais custosas reportagens. A revista cortaria entre 500 mil e 1 milhão dos 2,6 milhões de exemplares semanais. Analistas afirmam que a Newsweek seria a primeira revista de notícias norte-americana a seguir a receita da britânica The Economist, transformando-se em um fórum de discussão, deixando grandes reportagens e denúncias em segundo plano. Neste ano, as duas principais semanais dos EUA, a Time e a Newsweek, prederam, respectivamente, 17% e 21% em anúncios em relação ao ano passado.

Especialista em políticas públicas que trabalhou até há pouco tempo no gabinete do então senador e vice-presidente eleito Joe Biden, Harry Moroz acredita que a diminuição de publicidade e assinantes tende a afetar mais sensivelmente, com a velocidade da crise financeira, as publicações locais. Um dos dados mais impressionantes, ele aponta, é o relatório divulgado pela firma Fitch Ratings, dando conta que "diversas cidades americanas perderão seus diários até 2010, com o fechamento de jornais e a debacle de conglomerados de mídia impressa por conta de um aumento nas quedas de circulação e publicacidade ao mesmo tempo que os custos tendem a incrementar". Entre os grupos com "outlook negativo" no relatório está o terceiro maior conglomerado de jornais do país, o McClatchy, dono do Miami Herald.

"
É claro que há uma certa dose de alarmismo. Mas conversei com analistas da Fitch e a expectativa é de que ao menos um jornal de um grande centro urbano feche as portas ainda em 2009", diz Moroz. Para o analista "o que está havendo é um processo de acomodação, uma estratégia das empresas jornalísticas de redução das despesas, cortando o investimento na produção de notícias de âmbito nacional e se concentrando cada vez mais na cobertura local, um setor que os blogs ainda não conseguiram tomar de assalto. Mas esta mudança de foco da massa de jornais do interior significa uma redução perigosa do jornalismo investigativo".

Moroz não aposta em uma transformação dos grandes títulos para a versão eletrônica exclusiva. "Talvez um exemplo a seguir seja o do Wall Street Journal, que vem conseguindo, paulatinamente, conduzir seus assinantes na migração, para sua página na internet:, diz. Moroz, curiosamente, publicamente uma coluna eletrônica no The Huffington Post, um dos sites jornalísticos de maior sucesso, criado há pouco mais de três anos.

Ao convidar medalhões do jornalismo, celebridades e intelectuais para escreverem em tempo real em seu site, Ariana Huffington, ex-mulher do magnata do petróleo Michael Huffington, conseguiu chegar aos 4,5 milhões de visitantes individuais em setembro, quadruplicando sua marca no mesmo mês do ano passado. Números que fazem com que sua companhia tenha um valor estimado no mercado de pouco menos de 100 milhões de dólares, de acordo com Fred Harman, da Oak Investment Partners. Neste mês, o site, que agora se identifica como o "Jornal da Internet", recebeu uma injeção de 25 milhões de dólares da Oak em uma aposta no que Harmam identifica como o novo modelo de "jornalismo sério on-line, poderoso nas últimas eleições".

Bill Keller lembra, porém, que o sucesso do jornalismo eletrônico pode acabar beneficiando também as grandes marcas, como a de seu New York Times, que, em outubro, chegou à marca de 1 bilhão de páginas visitadas. "Jornalismo de qualidade custa caro. E você não vai encontrar blogs e sites de ONGs abrindo escritórios em Bagdá. Há, em geral, uma escassez no mercado daquilo que eu qualificaria como jornalismo de primeiro nível", disse à NPR>

Mas o fato é que até os organizadores do Prêmio Pulitzer renderam-se à era digital. A partir de 2009, o Pulitzer premiará reportagens feitas exclusivamente na internet. Pare serem considerados pelo painel de julgadores da Universidade de Colúmbia, os sites precisarão ter uma periodicidade diária ou semanal. Uma doa sugestão de coluna a ser premiada pelos figurões do Pulitzer, interessados, de acordo com o chefe de seu corpo editorial, Sig Gissler, "em manter-se atualizados com as mudanças no cenário da mídia nos EUA", foi a publicada por Maureen Dowd no New York Times na última semana de novembro. A jornalista contava a história do Pasadena Now, um jornal local de Los Angeles que não apenas abandonou sua versão impressa, mas contratou jornalistas exclusivamente baseados em Bangalore, na Índia. Repórteres com salários incomparavelmente mais baixos do que os americanos, apurando notícias de Pasadena por telefone e com o auxílio de ferramentas de busca da internet.

De acordo com o dono do Pasadena Now, James Macpherson, "a mídia impressa dos EUA vive seu momento GM, com a agravante de que não haverá plano de resgate do governo". Ele descobriu o pulo-do-gato de investir na mão-de-obra estrangeira depois de uma experiência no mercado têxtil, lidando com trabalhadores vietnamitas. Os indianos recebem, a cada mil palavras, 7,50 dólares, algo inconcebível no mercado norte-americano. Maureen Dowd não se fez de rogada e resumiu, com humor característico, o turbilhão pelo qual passa a imprensa ianque: "Um centavo por meus pensamentos? Agora tenho certeza de que meus dias estão contados. E me peguei imaginando quanto tempo demorará para um cidadão de Bangalore começar a escrever, da Índia, minha coluna sobre o presidente Obama"

domingo, dezembro 14, 2008

ENTREVISTA/Fareed Zakaria, para o Valor Econômico

Na semana que passou o Valor Econômico publicou a entrevista que fiz com a estrela da CNN e da Newsweek, Fareed Zakaria, que acaba de lançar no Brasil seu best-seller O Mundo Pós-Americano. A conversa foi por telefone, em meio ao fechamento da revista semanal que ele edita. Segue o bate-papo e, já pelo título, dá para ver que o homem é extremamente otimista em relação ao Brasil:

Um futuro absolutamente garantido
Por Eduardo Graça, para o Valor, de Nova York
04/12/2008

"O Mundo Pós-Americano" - Fareed Zakaria. Trad. de Pedro Maia Soares.

Companhia das Letras. 312 págs. R$ 49
Bloomberg
Zakaria: "A classe média brasileira estará em condições melhores do que a classe média do mundo industrializado"

Editor da "Newsweek International", Fareed Zakaria é um dos mais influentes intelectuais dos Estados Unidos. Durante o governo Bush, foi recebido inúmeras vezes na Casa Branca para discutir aspectos da política externa americana. Em seu programa na rede CNN, ele conversa com líderes mundiais e especialistas em relações exteriores sobre os novos protagonistas no teatro das potências, estrelas de seu "O Mundo Pós-Americano". Zakaria, que nasceu na Índia e naturalizou-se americano, saudou a revolução conservadora de Ronald Reagan e apoiou com entusiasmo a invasão do Iraque, é um ótimo papo e um entusiasta do Brasil, visto como uma das "novas potências emergentes" no tabuleiro mundial. E a crise financeira global, garante, apenas apressa o passo da "ascensão do restante do mundo", representada por sua Índia natal (a reportagem do Valor conversou com Zakaria antes dos ataques terroristas a Mumbai), a China, "que nada em dinheiro", e o Brasil, "estável como nunca antes em sua história".

Valor: De que modo a ascensão do restante do planeta será afetada pela crise financeira global?

Fareed Zakaria: O primeiro impacto da crise foi lembrar-nos de que o sistema financeiro é de fato globalizado. Não existe mais abrigo. O capital é de fato global e move-se de forma cada vez mais instantânea. Todas as bolsas de valores e sistemas financeiros do planeta estão interligados de um modo singular e novo. Mas nos próximos seis meses creio que começaremos a perceber uma diferença nas diversas performances econômica dos países.

Valor: Depois do choque da crise...

Sim. Não há dúvida de que os Estados Unidos e a Europa passarão por uma severíssima recessão. Será a pior recessão nos Estados Unidos em 40 anos. Mas não acho que o mesmo acontecerá nas economias emergentes. China, Índia e Brasil, especialmente, deverão sofrer menos. Seus consumidores não estão endividados em bancos, que, por sua vez, estão mais saudáveis do que as instituições daqui.

Valor: De onde vem essa certeza?

Zakaria: A China vinha crescendo 9%, os Estados Unidos 3% ao ano. A melhor projeção do PIB para os Estados Unidos em 2009 é de 0,5%, mas há a real possibilidade de decréscimo. No caso da China, os dados mais pessimistas prevêem um crescimento de 6%. Se a China crescia, antes da crise, em uma velocidade três vezes maior do que os Estados Unidos, tende a dobrar essa vantagem no mundo pós-recessivo. O Brasil deve crescer entre 2% e 4%. Mesmo com o planeta crescendo de modo mais vagaroso, a recessão vai acelerar a ascensão do mundo pós-americano. E creio que a estagnação dos Estados Unidos e da Europa Ocidental continuará por mais três ou quatro anos, talvez além, aumentando ainda mais a transferência do poder econômico para Brasil, China e Índia.

Valor: Há receio no Brasil de que a crise financeira possa jogar por terra algumas conquistas recentes, como a emergência da nova classe média. O sr. acredita em um retrocesso social no Brasil e em um achatamento do mercado consumidor interno?

Zakaria: Não. Não tenho dúvidas de que haverá uma retração no crescimento econômico e na qualidade de vida de todo o planeta. A Idade de Ouro acabou. Mas se você olha para o Brasil vê que nem a classe média está perigosamente endividada nem a economia depende intensamente da exportação. Diria que o setor exportador no Brasil será afetado de forma sensível, mas, sem exagero, a classe média brasileira estará em condições melhores do que a classe média do chamado mundo industrializado.

Valor: Assim que Obama começou a formar seu gabinete, o sr. escreveu em sua coluna na "Newsweek" que "o presidente eleito não deveria ouvir os conservadores e sim o novo mundo em ascensão". Pode explicar melhor suas palavras?

Zakaria: Não há nada mais importante para este novo governo do que entender como o mundo mudou nos últimos anos. Essa mudança é o cerne de meu livro. Os novos centros de poder, como China, África do Sul, Brasil e Índia, vieram para ficar. O Brasil pode passar até alguns anos difíceis, mas continuará sendo politicamente e economicamente estável, como nunca antes em sua história. Washington precisa aprender a interagir com esse novo mundo. Estes são tempos sensacionais, em que pela primeira vez vivemos em uma sociedade economicamente global de fato. Temos que aproveitar da melhor maneira possível esta realidade. Não há como pensar em voltar a padrões de conflito estabelecidos na Guerra Fria, como fez o governo de George W. Bush.

Valor: Mas há o outro lado da moeda. O professor Ian Buruma, por exemplo, bate na tecla de que a ascensão da China diminui o poder de pressão das democracias ocidentais em relação a questões de direitos humanos básicos ignoradas por Pequim. Como lidar com essa China tão poderosa?

Zakaria: De um modo genérico, Buruma está correto. Mas a China, uma civilização milenar, está passando por um processo de transformação social e econômica extremamente complexo. Insistir em que a China se transforme em um modelo de democracia ocidental da noite para o dia é ao mesmo tempo arrogante, historicamente equivocado e contraproducente. Não precisamos deixar de denunciar os abusos a prisioneiros políticos, mas você perde a perspectiva do desenvolvimento das sociedades humanas ao exigir que as novas potências sejam um espelho do chamado Primeiro Mundo. Muitos liberais são espantosamente cegos para esse aspecto da discussão.

Valor: O senhor apoiou a invasão do Iraque desde o início. Acredita de fato que os iraquianos se beneficiarão de alguma maneira da ocupação americana?

Zakaria: Talvez sim, a longo prazo. Talvez se construa um país mais moderno, mais democrático, mais aberto, que poderá influenciar de forma positiva o mundo árabe, que é quase na totalidade governado por ditadores ou monarcas autoritários. Concordo que a ocupação foi conduzida violentamente e com uma precariedade tal que o mundo árabe vê o Iraque não como um experimento democrático, mas como um governo tirânico de maioria xiita na região. Mas creio que se chegará à conclusão de que o processo foi, sim, positivo para o país. De qualquer forma, creio que a única possibilidade de intervenção hoje é uma ação multilateral, comandada pelos americanos. Um bom exemplo é a Bósnia, na Era Clinton, uma intervenção consensual, com a colaboração de dezenas de países com real legitimidade política e abençoada pela ONU. Creio que será feito um esforço em Washington para reestruturar o papel dos Estados Unidos na ONU, que é um sistema ainda antiquado, mas é o único órgão de fato global. Uma mudança necessária, por exemplo, é a inclusão urgente de Brasil e Índia no Conselho de Segurança. Daí a necessidade de novos fóruns para se resolver os problemas do planeta, como o G-20.

Valor: O presidente Lula, um dos maiores entusiastas do G-20, chegou a declarar que o G-8, que reúne as oito nações mais ricas do globo, é irrelevante...

Zakaria: Acho que o G-8 deve ficar, mesmo sendo cada vez mais irrelevante. Talvez o G-20 devesse se tornar um órgão institucional permanente, destinado exclusivamente a resolver problemas globais, sejam relacionados a meio-ambiente, economia ou terrorismo. Se você quer resolver os problemas econômicos do mundo, terá de contar com os países que têm "cash", como a China, o Japão e a Arábia Saudita, e com os que mais crescem, como Brasil e Índia. Acho que, no fim, a declaração do presidente Lula será vista como absolutamente certeira.

ENTREVISTA/Ian Buruma, para o Valor Econômico

Faz um tempão desde a última postagem aqui, tenho viajo e trabalhado sem parar. É hora de uma atualização! Neste fim de semana o Valor Econômico, em seu caderno de fim de semana, publicou a entrevista que fiz com o professor Ian Buruma, em um dos dias mais gélidos deste começo de inverno nos EUA. Tive de cruzar quase toda Manhattan para encontrá-lo no Harlem, mas valeu a viagem. Segue o texto:

A Sedutora e o Pensador
Por Eduardo Graça, para o Valor, de Nova York
12/12/2008

Faz um frio maldoso no fim de outono na ilha de Manhattan. O café do Harlem escolhido para a entrevista por Ian Buruma, um dos intelectuais mais festejados da academia americana, está repleto de cadeiras extras, em que chapéus, casacos, cachecóis e luvas formam amorfas pilhas coloridas. Casaco de couro, gorro usado em dias de frio ártico, Buruma chega ávido por um chá e pronto para conversar sobre o mundo que o cerca, com a exceção das "porções do globo que não conheço. Não tenho absolutamente nada de interessante para falar do Brasil e da América Latina".
Bloomberg
Buruma: "Há o risco de um aumento de populismo, tanto de direita quanto de esquerda. Mais personagens como Hugo Chávez e lideres radicais de direita ganharão terreno"

O aviso é quase respeitado de forma integral. Buruma acaba de lançar nos Estados Unidos seu primeiro romance em 17 anos, "The China Lover" (Penguin.392 págs.), em que utiliza a figura de Yoshiko (ou Shirley) Yamaguchi, uma celebridade japonesa, para tratar do poder da fantasia coletiva no mundo moderno. Sua história é narrada por três homens que em determinado momento da camaleônica vida da diva permaneceram em sua órbita (ela ajudou os americanos a difundir os ideais de democracia no cinema japonês do pós-guerra, zanzou pela Palestina de Arafat, casou-se com o escultor Isamu Noguchi e nos anos 1970 foi eleita para o parlamento por um partido ultra-nacionalista).

Reuters
Calma na prosperidade: Buruma acha que não há risco de insurgência de fato importante na China enquanto a classe média continuar satisfeita com a vida que leva
O único título de Buruma traduzido para o português é "Ocidentalismo: o Ocidente aos Olhos de seus Inimigos" (Jorge Zahar. 168 págs.), publicado em 2004 em parceria com um dos nomes mais respeitados da esquerda israelense, o filósofo Avishai Margalit. O livro - que remete ao "Orientalismo" de Edward Said - tornou-se leitura obrigatória para os interessados em escarafunchar as raízes do pensamento antiocidental, não apenas no Oriente Médio, mas também na China, Japão, Rússia e Alemanha de Hitler. Em seus artigos reproduzidos em "The Guardian" e em livros e palestras ministradas nos Estados Unidos, Buruma, que nasceu na Holanda e viveu na Inglaterra e Japão, tem tratado de modo singular das relações entre Ocidente e Oriente. Professor da cátedra de Democracia, Direitos Humanos e Jornalismo na Universidade de Bard, no Estado de Nova York, ele conversou com o Valor sobre o novo papel dos Estados Unidos no cenário internacional, o significado da eleição de Obama para o restante do planeta e as forças sociais que a crise econômica global pode despertar.

Valor: Yoshiko Yamaguchi é uma personalidade no Japão, um ícone nacional, mas não é especialmente conhecida nos Estados Unidos. O sr. viveu em Tóquio. Foi lá que entrou em contato com esta personagem tão peculiar e decidiu escrever o livro?

Ian Buruma: Foi um processo longo, com vários começos falsos. A primeira vez que a vi, era um estudante de cinema na Tóquio dos anos 1970. Estava pesquisando no Arquivo Nacional de Cinema e comecei a ver filmes feitos durante a Segunda Guerra Mundial. E Yoshiko era uma das principais estrelas do cinema japonês. Fiquei de fato impressionado e pensei que ela renderia uma bela história...

Valor: No Japão, ela virou enredo de uma novela de televisão...

Buruma: Sim. E também de uma ópera, um musical, e por aí vai. Por isso a idéia de fazer algo ficcional a partir de uma história já tão bem contada pelos japoneses ficou na minha cabeça, mas sem que eu tocasse de fato o projeto.

Valor: É possível compará-la com alguma personalidade do mundo ocidental?

Buruma: Ela é um mix de Marlene Dietrich e Leni Riefenstahl. Não consigo pensar, por exemplo, em um equivalente americano. E pensei que talvez pudesse escrever algo sobre ela, um ensaio, nada ficcional. Mas seria difícil fugir da lenda oficial de Yamaguchi, cantada em prosa, verso e muitas biografias no Japão. E pensei, depois de muitas tentativas que não deram certo, que, mais do que sua própria vida, o que de fato me interessava era a maneira como os homens de seu tempo projetavam suas fantasias na figura daquela mulher, como eles a imaginaram. Nunca ficou muito claro até que ponto ela era uma manipuladora de homens ou se eram eles que a transformavam no que bem entendessem. Passei a vê-la como a Lulu da trilogia de [Frank] Wedekind e pensei: Por que não escrever um livro sobre ela a partir da perspectiva de homens que a conheceram em momentos diversos de sua vida, como Lulu?

Valor: Há 17 anos o sr. não escrevia um texto ficcional...

Buruma: Para mim, é muito mais difícil escrever ficção. As coisas não funcionam como se eu decidisse que "agora vou escrever um romance". Não, quem manda é o tema. Algumas idéias são claramente melhor exploradas como biografias, outras como ensaios, outras como críticas, outras como ficção. Por exemplo, meu livro anterior, "Murder in Amsterdam" (Penguin. 288 págs.), é uma não-ficção em que uso técnicas de romance para contar a história de Theo Van Gogh e falar sobre os limites da intolerância.

Valor: O hibridismo entre realidade e romance o interessa especialmente?

Buruma:

Valor: E como foram seus contatos com Yoshiko?

Buruma: Cheguei a entrevistá-la algumas vezes para publicações americanas. Uma das últimas vezes em que nos falamos, por telefone, foi logo após os atentados de 11 de setembro em Nova York.

Valor: Qual foi a reação dela? Depois da guerra, ela se aproximou de Yasser Arafat e conviveu de perto com o pensamento islâmico antiocidental mais radical...

Buruma: Você não vai acreditar, mas a conversa que tivemos foi completamente banal. Ela disse apenas "mas que mundo estranho é este em que vivemos, não?" e nada mais. Acho que seria de esperar uma resposta assim. Ela, de certo modo, viveu qual um fantasma. Uma mulher extremamente elusiva e, ao mesmo tempo, aberta a que outros a reinventassem o tempo todo.

Valor: Um de seus temas mais constantes é a interação, e os choques, entre o Ocidente e o Oriente. "The China Lover" apresenta um Japão que mudou depois da ocupação americana. No caso do Iraque, pode-se fazer alguma comparação?

Buruma: Os neoconservadores gostam de fazer essa comparação, mas são situações completamente diversas. O Japão atacou os Estados Unidos e perdeu uma guerra. A maioria dos japoneses se sentiu grata pelo fato de os americanos se proporem restaurar o país, oferecendo-lhes mais liberdade. O Iraque é um outro cenário. Não sei ainda se a ocupação trará algo de positivo para a sociedade iraquiana. Ainda é muito cedo para afirmar que há algum progresso em áreas específicas. Um claro avanço é que Saddam Hussein já não está no poder. Mas os custos para tal mudança talvez tenham sido muito altos. E se a saída das tropas americanas no ano que vem levar a uma guerra civil sangrenta, estará configurada uma catástrofe sem tamanho.

Valor: O sr. acredita que, depois dos anos Bush e das ocupações do Afeganistão e do Iraque, ainda existe espaço para o intervencionismo americano, a la Bósnia, em locais como o Sudão?

Buruma: O cenário, hoje, é muito mais complexo. Mas não quero dizer que casos extremos não oferecerão uma oportunidade para o intervencionismo americano. A Bósnia é um caso em que considero a intervenção necessária. Mas muitas vezes essas ações acabam levando a situações piores do que as que existiam. Digo mais, acho que seria muito fácil as forças armadas americanas transformarem o Sudão em um lugar ainda pior do que é hoje. É preciso entender que a situação em países como o Sudão é muito mais complicada do que a velha idéia de que mandar soldados vai resolver algo. Existem problemas insolúveis. No caso do Sudão, não quero dizer que é melhor não fazermos nada. Mas também sou cético a respeito de qualquer idéia simplista de que homens armados vão resolver algo.

Valor: Como o governo Obama, com Hillary Clinton como secretária de Estado [era uma possibilidade na ocasião da entrevista], lidará com o xadrez geopolítico?

Buruma: Não acredito que eles tentem um novo experimento, algo como invadir outro país, usar força militar, depois do que aconteceu no Iraque, com a premissa de que se trata de disseminar democracia. Acho que haverá uma política de retrocesso em termos de invasões armadas, o que é uma boa notícia para o mundo.

Valor: E a ajuda material a grupos oposicionistas em países como Birmânia?

Buruma: Não creio que isso possa acontecer. Um sinal do novo mundo multipolar é que, na Birmânia, por exemplo, os jogadores com poder de fogo são a China e a Índia. E se eles não quiserem se mexer, e aposto que os chineses não estão nem um pouco interessados em mudanças na Birmânia, há muito pouco que os Estados Unidos possam fazer no Sudeste Asiático.

Valor: Há um aparente consenso aqui nos Estados Unidos de que a crise financeira internacional ratificou uma nova ordem mundial, mais multipolar, em que grandes democracias populares, como Índia e Brasil, e potências autocráticas, como China e Rússia, têm mais voz. O presidente Lula chegou a dizer na reunião das 20 maiores economias, em Washington, que o Grupo dos 8 (reunião dos países mais ricos do planeta) hoje é irrelevante...

Buruma: O poder econômico que um país como a China hoje tem faz com que eles necessariamente sejam considerados um parceiro primordial planetário das economias ocidentais. Mas não há como questionar o fato de que esta nova posição dos chineses diminui o poder de pressão sobre os abusos aos direitos humanos por lá. Isso significa que os Estados Unidos e a Comunidade Européia terão de parar de tratar de questões como os direitos individuais e a democratização da China? De forma alguma. Mas nossas expectativas serão ainda mais limitadas a partir de agora. Melhoras nesse setor terão de vir, necessariamente, de dentro do regime. Dificilmente forças extra-Pequim poderão fazer alguma diferença.

Valor: Há, na chamada civilização ocidental, e voltamos aqui ao caso da ocupação do Japão, mas também da redemocratização da Alemanha e da Itália, exemplos contrários a essa tese logo após o fim da Segunda Guerra Mundial...

Buruma: Sim, mas são maus exemplos, no sentido de que, ali, governos totalitários atacaram democracias e perderam uma guerra. Esses três países foram dizimados e houve clara cooperação da maior parte da população na reinvenção de suas nações. Eles partiram do nada e entenderam que não havia nada melhor do que liberdade e democracia para reemergirem no cenário mundial. Mas esses casos são raríssimos. As novas potências totalitárias dão menos espaço para as democracias ocidentais exportarem suas idéias.

Valor: No caso específico dos tibetanos, por exemplo, que acabaram de discutir uma nova atitude frente a Pequim...

Buruma: Não vejo como os governos ocidentais possam intervir nesse caso. Não há ninguém dentro do Tibet, hoje, com capacidade para comandar os tibetanos e iniciar um movimento. Seria então o caso de apoiar de forma mais decisiva o governo tibetano no exílio, na Índia? Mais do que apoio moral ao Dalai Lama, seria tolo para as potências ocidentais apoiarem qualquer tentativa de golpe ou provocações. Mais uma vez, neste caso, não há como se criar um movimento de fora para dentro. Não vejo a menor chance de isso acontecer, especialmente agora, com a crise econômica, que aumentou a importância das boas relações entre os Estados Unidos e a China. O governo Obama não pode nem pensar em colocar em risco a relação Washington-Pequim.

Valor: O sr. escreveu em artigo recente que padrões culturais não podem ser usados como argumento para a China negar a seus cidadãos direitos básicos...

Buruma: O que os governos ocidentais podem fazer é apoiar grupos que lutam pela defesa dos direitos humanos, fiscalizar as corporações ocidentais atuando na China, obrigando-as a tratar os trabalhadores de forma decente. Mas não tem jeito. No fim, mudanças terão de vir dos chineses.

Valor: E o sr. acredita que elas virão?

Buruma: Sim, embora talvez em um ritmo bem lento. Mas a crise poderá afetar também a velocidade das mudanças. Na China, elas são relacionadas ao humor da classe média nos grandes centros urbanos. Enquanto o regime permitir que continuem prosperando, não há haverá qualquer rebelião. Mas se a situação econômica se deteriorar, tudo muda de figura.

Valor: Grande parte da população brasileira se beneficiou de programas de combate à pobreza e do aumento do valor das matérias-primas no mercado global. Há o receio de que a crise possa levar de volta para a miséria milhares de cidadãos em países em desenvolvimento. Como o sr. vê essa questão?

Buruma: Com apreensão. Há o risco de um aumento de populismo, tanto de direita quanto de esquerda. Mais personagens como Hugo Chávez e lideres radicais de direita, com plataformas nativistas, antiimigração, ganharão terreno. Há um risco real de que isso ocorra nas democracias mundo afora.

Valor: E quanto à Rússia? O país foi um personagem interessante nas eleições americanas, com as declarações pró-Georgia de John McCain e a mensagem desafiadora do presidente Dmitri Medvedev para o recém-eleito Obama...

Buruma: Novamente, as aspirações de ajudar a Rússia a se tornar mais democrática devem ser mínimas. São assuntos domésticos. Teremos que lidar com a Rússia de Medvedev e Putin. E eles vêm agindo de uma forma bem russa, por assim dizer, ora olhando para a Europa, ora para suas raízes asiáticas. Aqui também, mudanças serão muito difíceis, ainda que por razões diferentes. Usar força militar contra a Rússia está completamente fora de questão. E ser um antagonista por princípio não ajuda a ninguém. É preciso ser muito cuidadoso, por que lidar com a Rússia também significa pensar em nossas atitudes em relação à Ucrânia, à Geórgia. É uma tolice sem tamanho convidar esses dois países a fazer parte da Otan se você não está preparado para usar a força no caso de uma invasão militar. É injusto para com a população desses países. Uma injustiça dividida com os líderes desses países, que garantem a seus eleitores a "proteção da Otan".

Valor: E o projeto do governo Bush de instalação de um novo sistema de defesa antimísseis em países como Polônia e República Tcheca, que até os anos 1980 estavam na esfera de influência de Moscou? Aparentemente, há uma indefinição sobre a continuidade desse projeto na gestão Obama.

Buruma: Muito provavelmente, trata-se de outra tolice.

Valor: O sr. escreveu recentemente que a Obamamania reabilitou a imagem dos Estados Unidos na Europa. O sr. acredita que a vitória de Obama trará mudança também para as relações entre os Estados Unidos e a Europa?

Buruma: Sim. Símbolos são importantes. E a esperança de uma nova autoridade americana ajuda a nós todos. Creio que ele ajudará a criar maior cooperação entre os países do mundo ocidental e também aumentará o prestígio da idéia de democracia liberal. É inegável que, com sua eleição, Obama deu à maior democracia ocidental mais credibilidade. Mas ele não é a resposta a todos os problemas do planeta. Para resumir, acho que, com Obama, ficou um pouquinho mais fácil encontrar um consenso planetário.

Valor: A provável escolha de Hillary Clinton para comandar a política externa do governo Obama foi uma decisão sábia do novo presidente? [Quando da entrevista, a escolha de Hillary não estava confirmada]

Buruma: Creio que sim. Ela tem experiência e é uma personalidade planetária. Não há quem não saiba quem ela é. Há muitos fatores positivos e alguns negativos, um deles o conflito de interesses entre sua nova posição e as atividades profissionais de seu marido. Embora a imagem de Bill Clinton no exterior não seja ruim. No fim, acho que não é uma má escolha.

Valor: Quando o senhor apresenta casos de direitos humanos em seu curso, além do totalitarismo chinês e russo, das doenças sociais no mundo em desenvolvimento, os abusos cometidos pelos Estados Unidos estão na pauta do dia?

Buruma: Sim, claro. E embora eu, propriamente, não tenha dado aulas sobre Abu Ghraib e Guantánamo, por exemplo, vários de meus colegas têm sido especialmente enfáticos sobre essas contradições. A eleição de Obama muda também, creio, a percepção dessas questões por aqui. Mas, por exemplo, o que será feito de Guantánamo? Não é uma questão simples de resolver. Você não pode mandar os prisioneiros de volta sem saber o que acontecerá com eles em seus países de origem. Como julgar essas pessoas? Não é possível sequer usar a Corte Internacional em Haia, já que os americanos não reconhecem sua função máxima. Com que direito, então, você os julgará? Não são respostas simples. Não basta fechar as portas daquela prisão e pronto, acabou. Essa é uma herança terrível que o futuro governo receberá dos anos Bush. E, creio, vai ser uma constante nos primeiros anos do governo Obama.

Valor: O sr. acabou de fazer uma série de conferências na Universidade de Princeton sobre as relações entre religião e democracia nos Estados Unidos, na Europa, no mundo islâmico, no Japão e na China...

Buruma: Essas palestras serão transformadas em um livro com publicação prevista para o ano que vem. Procurei analisar as inúmeras tentativas de se separar religião e poder político nessas civilizações e a dicotomia entre liberdade religiosa e mecanismos utilizados para impedir a religião de se tornar um instrumento importante na luta pelo poder.

Valor: O sr.encontrou algum modelo ideal?

Buruma: Todos os modelos que pesquisei têm problemas. É claro que preferiria viver no Reino Unido do que na Arábia Saudita, mas não há caso perfeito na relação entre religião e democracia. Um dos aspectos mais interessantes do mundo contemporâneo é justamente o fato de que países como Turquia, Malásia e Indonésia, por um lado, vêm se modernizando a passos largos, e por outro passam por um processo de islamização, um certo populismo islâmico, que não é, necessariamente, antidemocrático. Fui à Turquia no verão e irei à Malásia em fevereiro. Creio que minhas próximas investigações ficarão mais concentradas nesse tema.

sexta-feira, novembro 28, 2008

ENTREVISTA/Leonado DiCaprio - Rede de Mentiras


Hoje saiu na Folha de S.Paulo a entrevista que fiz com Leonardo DiCaprio, em Los Angeles, por conta do lançamento de Rede de Mentiras, hoje, nos cinemas brasileiros.

A íntegra da entrevista - e a retranca, com sir Ridley Scott e Russell Crowe, seguem abaixo:

DiCaprio volta nervoso em thriller

Em "Rede de Mentiras", de Ridley Scott, ator vive um agente da CIA enviado ao Oriente Médio para encontrar terrorista

Em entrevista à Folha, astro nega que filme seja panfletário, diz querer trabalhar com Walter Salles e elogia política brasileira


Eduardo Graça, colaboração para a Folha de S.Paulo, de Los Angeles

Leonardo DiCaprio quer ir para casa. O mais rapidamente possível. Para se jogar no sofá e descansar. O ator de 34 anos concedeu uma entrevista exclusiva para a Ilustrada na semana em que Barack Obama e John McCain se enfrentariam pela segunda vez em um dos debates cruciais da corrida eleitoral norte-americana. Mas DiCaprio não quer apenas conferir o duelo sossegado. Ele quer ter seu recanto de volta para si. Nos três dias anteriores à entrevista ele reunira em uma de suas casas em Malibu uma legião de famosos – entre eles Julia Roberts, Tom Cruise, Scarlett Johanson, Cameron Diaz, Harrison Ford, Sascha Baron Cohen personificando Borat, Will Smith e Steven Spielberg – para a gravação de um anúncio incitando os jovens a votarem nas eleições.

A consagração de Barack Obama, para DiCaprio, é o sinal mais forte de que o enredo de Rede de Mentiras, novo longa de Ridley Scott que estréia nesta sexta-feira nos cinemas brasileiros, poderá ficar rapidamente datado. No filme, ele é o agente da C.I.A. Roger Ferris, deslocado para o Oriente Médio a fim de desbaratar células terroristas. Do outro lado do mundo, Russell Crowe é Ed Hoffman, um balofo burocrata, principal contato de Ferris em Washington. Também protagonista de um filme cotado para a corrida do Oscar-2009, Revolutionary Road, que será lançado no Brasil em janeiro, DiCaprio falou sobre a vontade de trabalhar com Walter Salles, as diferenças de estilo entre Ridley Scott e Martin Sorsese (seu diretor mais constante) e até, quem diria, de sua admiração pela política energética de Brasília.

- Você e Russell trabalharam juntos há 13 anos, no western Rápida e Mortal, quando você tinha 21 anos. Foi muito diferente reencontrá-lo no set de filmagem?
- Sim. Aquele foi nosso primeiro filme de estúdio de fato. Éramos dois neófitos em Hollywood. Lembro que todo mundo falava daquele ator australiano fenomenal que estava chegando. Se não me engano foi Sharon Stone quem pediu para colocar a gente no elenco. E ficamos nós dois bem quietinhos e com os olhos bem abertos, prestando atenção em tudo. É o que me lembro. E em Rede de Mentiras somente trabalhamos juntos por algumas semanas, em Washington e no Marrocos. E o que mais gosto em Russell é que ele especialmente sério trabalhando. Isso me agrada muito.

- O roteirista de Rede de Mentiras, William Monahan, é o mesmo de Os Infiltrados, outro filme de ação que você protagonizou. São experiências muito diversas ser dirigido por Ridley Scott e Martin Scorsese?
- Eles são bem diferentes. Não quero dizer que Ridley não seja meticuloso no que faz, mas Marty presta atenção a cada detalhe, cada câmera, cada momento do filme. E Ridley é um diretor que já edita em sua própria cabeça, simultaneamente controlando cinco ou seis câmeras e mantendo o foco. Ele sabe o que está acontecendo em cada câmera e confia muito em seu instinto, uma qualidade fenomenal. Ele vai te dizer imediatamente se acreditou ou não no que viu na tela. E fará as mudanças que bem entender naquele exato momento. E você precisa estar preparado para estas mudanças radicais. A adrenalina diária no set é algo singular. Você tem câmeras te filmando o tempo todo dos mais diversos ângulos. E Ridley está sempre aberto para improvisações, inclusive de cenário, ele adora ter opções. Já Marty requer um trabalho mais intenso do ator, ele estuda minuciosamente cada cena com uma grande antecedência. Agora, para o ator, creio, há benefícios nos dois estilos.

- Durante o lançamento de O Gângster, Denzel Washington declarou que se viu tímido no set ao ter dividir as cenas com o Russell, com quem Ridley trabalhou tantas vezes (O Gladiador, Um Bom Ano). O mesmo aconteceu com você?
- Peraí! Tem alguma coisa errada com esta declaração. O Denzel, tímido? (risos). Então tá! Acho que tímido não é o termo correto para mim. É mais ‘em total adrenalina’. Nunca havia filmado deste jeito. E Russell e Ridley trabalham de um jeito muito especial. Eles murmuram algo um para o outro e quando você viu, a cena mudou completamente. Você fica meio tentando descobrir como é que aquilo aconteceu tão rapidamente. Você precisa entrar no ritmo deles. Um ritmo ao qual não estou acostumado e que me deixava ao mesmo tempo completamente esgotado e cheio de energia. Eles são assim.

- Imagino que você não teve esta mesma sensação de excitamento e esgotamento filmando The Revolutionary Road...
- Foi o oposto. Quase que como filmar uma peça de teatro. Aliás, jamais tive uma experiência legítima no teatro, queria muito fazer um dia um espetáculo off-Broadway, mais experimental. Em The Revolutionary Road tivemos conversas sem fim sobre o relacionamento de duas pessoas, como eles estariam se sentindo em determinadas situações. Passei um tempo enorme confinado com Kate Winslet e Sam Mendes em uma casa no subúrbio americano e no mês seguinte já estava correndo para cima e para baixo no Marrocos com Ridley enquanto helicópteros jogavam mísseis na minha cabeça. Nada mais diferente, mas esta é minha rotina nesta roda-gigante de Hollywood, de filmar, filmar, filmar. Como disse queria muito trabalhar com outros estilos de direção no teatro, e também no cinema, mas, neste caso, fora dos EUA. Adoraria trabalhar com Ang Lee, Alejandro Iñáritu e Walter Salles. Quem sabe nos próximos anos eles não surjam com um projeto com algum lugar para mim?

- Afinal, o que o atraiu mais em Rede de Mentiras? Fazer mais um thriller ou o aspecto político, já que a trama acontece durante a explosão do terrorismo no Oriente Médio?
- As duas coisas. Adoro o fato de que este é um filme permanente quando se pensa em interpretações no cinema da Era do Terror. De certa forma, ele é um símbolo das relações estabelecidas pelos EUA com os países do Oriente Médio – ou do modo como elas foram percebidas – nos últimos anos. Ao mesmo tempo, não acho que o filme penda para uma seara política específica, não é panfletário. Ele pincela algumas possibilidades de realidade mas deixa que a audiência tire suas próprias conclusões.

- Você é extremamente aberto sobre suas escolhas políticas...
- Sou simpatizante do Partido Democrata e adoraria ver Obama eleito. Mas o que realmente gostaria de ver é um movimento de jovens norte-americanos que pudessem tomar as rédeas deste país, sabe? Estes jovens viram aonde nosso país foi parar recentemente e precisam moldar o país à sua semelhança. O que quero é que eles sejam ouvidos da fato, não importa se votando à direita ou à esquerda.

- Por que não dirigir um segundo documentário? Depois de A Última Hora, focado no aquecimento global, um dedicado aos jovens eleitores?
- Bem, nos próximos três dias vou editar uma campanha viral, uma propaganda com várias celebridades voltada diretamente para a internet, convocando os jovens a votarem. Mas já que você mencionou A Última Hora preciso dizer aqui que tenho a maior admiração pela maneira como o Brasil lida com energias alternativas. Vocês são pioneiros. Se os EUA tivessem feito um terço do que vocês fizeram não estaríamos mais tão dependentes da exportação de petróleo. Quando estávamos filmando Rede de Mentiras ficou muito claro que as guerras que estamos lutando neste momento, neste país, têm tanto a ver com o combate ao terrorismo quanto com a necessidade de se assegurar o abastecimento de petróleo para nossa economia. E a política energética do Brasil é um exemplo para países no mundo todo. O novo governo dos EUA precisa seguir o exemplo do Brasil. Estamos oito anos atrasado, no mínimo, em relação a vocês.

*****

Rede de Mentiras não é de forma alguma um filme político. Tampouco funciona como metáfora para a desastrosa política externa do governo Bush no Oriente Médio. É o que diz Sir Ridley Scott, três vezes indicado para o Oscar de melhor direção (por Thelma & Louise, Gladiador e Falcão Negro em Perigo) e responsável por Alien e Blade Runner, sobre sua mais recente obra. “Não, não e não. O filme é uma ótima história de espionagem. Por isso me interessou tanto”, conta.

Adaptado por William Monahan – o premiado roteirista de Os Infiltrados – a partir do livro homônimo do jornalista David Ignatius, uma das estrelas do The Washington Post, Rede de Mentiras foi recebido com frieza pela crítica americana e não se transformou em um sucesso de bilheteria. O The New York Times chegou a dizer que o filme levanta uma questão capciosa: o terrorismo se tornou enfadonho por que os terroristas se tornaram figuras rotineiras da vida contemporânea ou é a cultura de massa norte-americana que segue tendo o poder de transformar qualquer tema em thrillers tediosos e sem vida? Qualquer que seja a resposta, Scott não fica bem na fita.

O experiente diretor, no entanto, não se rende. Neste filme ele retorna a um tema que lhe é caro. Rede de Mentiras trata, ele ensina, de um estudo sobre a honra em que o pano de fundo, desta vez, é o mundo da espionagem nos anos que se seguiram à Guerra Fria. “Não sou um cínico. Fiz um filme em que a honra é, sim, um valor fundamental. E acredito que ela ainda o seja, no mundo contemporâneo. Quando decidi levar a história de Ignatius e Monahan à tela, percebi rapidamente que eu precisava, especialmente por conta da velocidade da narrativa, trabalhar com atores especialmente inteligentes. E, não tenha dúvida, estrelas de cinema quase sempre são inteligentes. É um pré-requisito. Eles precisam saber perguntar as questões certas na hora exata sobre os temas pertinentes. E Russell e Leo foram um time afinadíssimo de mentes brilhantes”, diz.

Rabo-de-cavalo, sorriso largo, Russell Crowe disse que seu personagem em Rede de Mentiras, segundo o próprio ator australiano, é um dos ‘tipos mais asquerosos na história de Hollywood’. E que só foi descobrir de fato quem era Ed, o burocrata de Washington com uma mente brilhante e quase nenhum escrúpulo, ao adotar “aquela voz dúbia, aquele murmurar”. “Veja bem, não preciso gostar dos personagens que encarno. Sou completamente avesso às tradições do teatro, àquela idéia que você ‘deve amar o seu personagem’ para encontrá-lo de fato. Em minha trajetória, descobri que é exatamente o contrário, que se você ama o personagem, necessariamente destrói a objetividade necessária para construí-lo”. Mas jamais uma personalidade fictícia ganhou o coração do Gladiador? “De verdade? Somente um. O Jim Braddock de Cinderella Man – A Luta pela Esperança. Ele era um sujeito e tanto, tão sensacional, mas tão sensacional, que foi uma honra tê-lo feito completamente apaixonado por aquele homem”.(Eduardo Graça).

domingo, novembro 16, 2008

Um Filme: Happy-Go-Lucky

Já passou no festival do Rio e, imagino, entrará em cartaz no Brasil logo. Não percam. Happy-Go-Lucky é o filme perfeito para se enfentar a crise - que, aqui, é cada vez mais visível a olho nu, nas esquinas do Brooklyn e nas filas vazias dos supermercados orgânicos que chegaram à cidade nos últimos anos.

De volta ao filme, Sally Hawkins já é minha atriz favorita de 2008. Aliás, a direção de atores é sensacional: Alexis Zegerman como a melhor amiga e Eddie Marsan como o instrutor neurótico da auto-escola nos lembram como era bomWoody Allen quando Woody Allen era bom. A Londres de Leigh é completamente diferente da Europa asséptica para milionários que Allen vem retratando nos últimos anos. Também é um alívio sua aversão a estrelas de Hollywood.
Leigh - o homem por detrás de coisas pesadíssimas como Segredos e Mentiras e Vera Drake - faz uma comédia otimisma, para cima, deliciosa, com uma protagonista (Hawkins, com sua Poppy) tão otimista quanto real (a derradeira cena, com as duas amigas em um bote, é antológica). Tão bom escrever sobre algo de que se gosta.

quarta-feira, novembro 05, 2008

VENCEMOS!

Si, Se Puede!

terça-feira, novembro 04, 2008

ENTREVISTA/Spike Lee

Na Folha de S.Paulo de hoje saiu a entrevista que fiz com Spike Lee, sobre seu nome filme e, claro, as eleições de hoje. Lee fala baixinho e, pessoalmente, é muito menos estridente do que a figura espoleta que nos acostumamos a ver nas torcidas de equipes esportivas ou em protestos de rua aqui nos EUA. Gostei da figura.

Ó só como ficou:

ENTREVISTA

SPIKE LEE: Todos os sacrifícios agora fazem sentido Cineasta retrata batalhão de negros na 2ª Guerra e diz que Obama redime seus heróis

EDUARDO GRAÇA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE NOVA YORK

Camisa branca de malha, óculos de aro multicolorido, é impossível não reconhecê-lo: lá está Spike Lee na convenção do Partido Democrata que acaba de oficializar a candidatura à Presidência de Barack Obama. Os olhos pequeninos miram a câmera confiantes e anunciam, solenes: "A partir do dia 4 de novembro dividiremos a história de um modo diferente. Será antes de Obama (aO) e depois de Obama (dO)".

Se a possibilidade da eleição de um negro à Casa Branca galvanizou a comunidade afro-americana, não poderia ser diferente com seu cineasta mais representativo. A balbúrdia eleitoral encontrou Lee, 51, lançando seu primeiro filme pela Disney.

"Milagre em Santana", uma história romanceada do heróico batalhão formado por soldados negros durante a Segunda Guerra Mundial, estreou nos EUA em setembro, teve uma recepção dura pela crítica, que condenou a narrativa longa, com mais de duas horas e meia de duração, e chega aos cinemas brasileiros em fevereiro.

Foi no escritório da companhia mais famosa por seus desenhos animados e dramas voltados para a família que o diretor de "Malcom X" conversou com a imprensa sobre seu novo filme, as mutações do racismo nos EUA e, claro, a candidatura Obama. O senador de Illinois costuma contar com orgulho que em sua primeira ida ao cinema ao lado da então namorada, Michelle, os dois se maravilharam com "Faça A Coisa Certa", de Spike Lee.

Em "Milagre em Santana", o diretor segue interessado na maneira como as minorias são retratadas por aqueles que se aventuram em contar a história dos EUA na tela grande. Natural de Atlanta, Geórgia, Lee bate na madeira três vezes sempre que se menciona a possibilidade do democrata terminar a noite de hoje como o novo presidente do país. É que, por aqui, lembra o professor de cinema da Universidade de Nova Iorque (NYU), nunca é demais pedir a proteção do sobrenatural em momentos de mudanças tão radicais.


FOLHA - "Milagre em Santana" conta a história de quatro soldados negros e uma das cenas mais fortes é aquela em que eles percebem serem mais reconhecidos como cidadãos na Itália liberta do que nos EUA de Jim Crow [leis segregacionistas]...
SPIKE LEE - Os negros que se alistaram para lutar por seu país em 1944 encontraram as forças armadas norte-americanas completamente segregadas.
Linchamentos ainda eram comuns. Eles eram considerados cidadãos de segunda classe. Nós improvisamos bastante, mas uma frase que se repetia na conversa com os veteranos é a de que eles "se sentiram mais em casa na Itália do que jamais haviam se sentido nos EUA".
Aliás algo que James Baldwin, Josephine Baker e Miles Davis afirmaram sentir também.

FOLHA - O que o sr. descobriu sobre os homens do Buffalo Soldiers, o primeiro batalhão de negros do Exército americano?
LEE - Conheci vários veteranos do 92º Batalhão de Infantaria. São heróis americanos, grandes patriotas, que tinham todos os motivos para serem mais amargos pela maneira com que os EUA os trataram, mas que estão felicíssimos, pois jamais imaginaram que um dia poderiam votar em Barack Obama para a Presidência desta República que é deles também. Há, para eles, mais do que nunca, a certeza de que todos os sacrifícios que fizeram fazem um enorme sentido.
FOLHA - Estes soldados negros voltaram para um EUA ainda segregado, especialmente no sul do país...
LEE - Sim, e eu mesmo cresci no Brooklyn vendo filmes de guerra e tudo o que via era John Wayne. Só soube dos Buffalo Soldiers porque meu pai e meus irmãos ouviam e contavam histórias de amigos motoristas de caminhão que haviam sido voluntários negros da Segunda Guerra e transportaram munição até Berlim, dirigindo à noite, sem luz, escondidos, para ajudar na derrocada final de Hitler. Aliás, você sabia disso?
Não, né? Outro fato que poucos sabem é que boa parte dos alemães capturados foi mandada para o sul do país, onde dividiram espaço com soldados negros.

FOLHA - O que remete à cena da lanchonete no filme...
LEE - Exato. Pense nesses jovens negros que se alistaram e eram treinados para matar nazistas e viam os brancos alemães recebendo melhor comida, tratamento médico e alojamento do que eles. Este fato histórico é uma insanidade total. Por isso resolvi incluir a cena em que os alemães são mais bem tratados do que os negros em uma lanchonete na Louisiana. O que me interessa é a formação da mitologia da guerra que no cinema. Por exemplo, ninguém fala dos fuzileiros navais negros de Iwo Jima, que ajudaram a derrotar o Japão. E isso não aconteceu há tanto tempo assim! Mas graças a Deus os EUA progrediram muito nestas seis décadas e Obama é a maior evidência dessa evolução. Sinceramente, eu jamais pensei que veria um negro na iminência de se tornar o 44º presidente dos EUA. E algo me diz que isso vai acontecer hoje.

FOLHA - Já que falamos de tempos outros, o sr. acredita que a realidade do soldado negro americano é diferente em desafios mais recentes, como a ocupação do Iraque?
LEE - A maioria do Exército americano é, hoje, formada por negros e hispânicos. Mas é preciso lembrar que a experiência da guerra não muda por conta de diferenças étnicas. Não importa quem você seja, a experiência é avassaladora. Basta ver o número de suicídios dos jovens que lutaram no Iraque e no Afeganistão. É astronômico. E os que se matam depois de voltar? Você já viu a quantidade que acaba envolvida em agressões contra mulheres, maridos e familiares? Nossas Forças Armadas estão mal-equipadas, e é uma desgraça nacional o fato de não estarmos tratando desses veteranos que se propuseram a dar suas vidas pelo país com a dignidade que eles merecem.

FOLHA - O sr. teve dificuldades em conseguir financiamento para terminar "Milagre em Santana", que acabou sendo feito com algo como US$ 45 milhões, um orçamento pequeno para um filme de guerra. Houve quem creditasse a escassez de fundos justamente a seu conflito com Clint Eastwood, já que o sr. foi enfático na crítica tanto a "Cartas de Iwo Jima" quanto a "A Conquista da Honra", duas histórias sobre a Segunda Guerra Mundial em que não há destaque na tela para sequer um soldado negro (Eastwood, um dos poucos simpatizantes do Partido Republicano em Hollywood, respondeu que Lee deveria se calar e o cineasta negro continuou a polêmica, dizendo que os tempos das grandes plantações, em que a escravidão determinava quem tinha o direito à voz, já havia terminado)...
LEE - Isso não é verdade. Não mesmo! As declarações que fiz sobre os dois filmes dele sobre a guerra foram feitas em maio, em Cannes. Havia terminado de filmar "Milagre" em janeiro.
E, olha, você tem de fazer cinema com o que tem. Adoraria ter mais de US$ 100 milhões. Mas não tive. Em "Ela Quer Tudo", de 1986, filmei com US$ 175 mil. Quando estávamos filmando, criamos uma cofrinho de moedas e foi assim que conseguimos comprar dois rolos de filme para terminar as filmagens. As coisas não mudaram tanto assim. Você tem de ser um lutador para ser um cineasta. Se não tem a tendência para a luta, então este não é seu meio. Ainda estou esperando, por exemplo, o financiamento para a biografia de James Brown que quero fazer.