domingo, fevereiro 18, 2007

SHOW/ Lou Reed no Brooklyn (14/12/2006)




Hoje voltamos do Caribe - sem a mala, que não apareceu na esteira da American Airlines (a lama, a lama!) - e, na montanha de jornais, cartas e encomendas empilhadas na escada da entrada de casa estava a BIZZ de fevereiro. Nela, o textinho que segue abaixo, um relato do show sensacional que tive o prazer de conferir em dezembro, aqui no Brooklyn, com Lou Reed apresentando pela primeira vez nos palcos um de meus discos favoritos, o maldito Berlin.

O espetáculo, dirigido por Julian Schnabel, mais gordo do que nunca, aconteceu em uma noite fria de fim de outono. Fui à pé para a St.Ann's Warehouse, uma casa alternativa nos moldes do que seria o Espaço Sérgio Porto, no Rio, se este fosse bem-cuidado. Mas esta é outra história. A St. Ann's fica aqui no Dumbo, entre as pontes do Brooklyn e de Manhattan, de frente para o East River.

Aí vai o texto completo (na revista impressa saiu um tiquinho menor):

ENTRE TAPAS E BEIJOS

O Romantismo dolorido de Berlin

Por Eduardo Graça para a BIZZ

Barba imensa, sorriso trêmulo, quem abre a noite da estréia mundial de Berlin, disco-espetáculo concebido por Lou Reed em 1973, é o artista plástico e cineasta Julian Schnabel, diretor de Basquiat e Antes Que Anoiteça. “Preciso confessar. Não conheço ninguém com 50 anos que ainda esteja casado com o mesmo companheiro (a) daquela época. O Lou compôs, com perfeição, a trilha sonora da minha vida”, agradecia o responsável pela cenografia do espetáculo que chega aos palcos nova-iorquinos exatos 33 anos depois de aparecer, para imenso desgosto de crítica e público, nas lojas de disco do mundo todo.

O Brooklyn não fica em Berlim, mas bem que poderia. Detalhes geográficos à parte, Lou Reed, camisa de malha vermelha colada no corpo musculoso, óculos de aros tranparentes, cabelos grisalhos, ocupa o palco da St.Ann’s Warehouse, à beira da Ponte do Brooklyn, como se a inevitável ressaca da primeira metade dos anos 70 ainda nos doesse as cabeças. Berlin é a obra-prima pouco compreendida (uma famosa revista de rock intitulou sua resenha do álbum assim: Adeus, Lou!) que se seguiu à graça irresistível de Transformer, a bíblia do glam rock que reunia em um só álbum coisas como Walk on the Wild Side, Satellite of Love e Perfect Day. Em certo sentido, Berlin lhe é o avesso exato – uma narrativa curta (dez faixas), amarga e deprimida das desventuras amorosas de Jim e Caroline na cidade-símbolo da guerra fria.



O disco pode ser ‘lido’ como um conto, a história trágica de um romance destruído por drogas, traições e muita, muita violência. Um cabaré anti-punk que exigia cordas, violinos e sopros, Berlin finalmente chegou aos palcos como deveria: deprimidíssimo, mas sem perder um milímetro de sua força. Lá estão o mago do indie rock Antony Hogarty, muito branco, todo vestido de negro; a diva do retro soul Sharon Jones, muito negra, toda de vermelho; e o estranhíssimo (aqui, um brutal elogio) Brooklyn Youth Corus, formado por adolescentes de todas as cores do mais multirracial dos distritos nova-iorquinos, apresentando a introdução do pungente Sad Sad Song. Um sofá verde pende do teto, na vertical, o estofado gasto, separado por papel de parede vermelho com temas asiáticos enquanto uma grande gaiola de zoológico cerca os instrumentos de percussão. Tudo aqui parece fora de lugar. Na platéia, pouco mais de mil pessoas sentadas em cadeiras de ferro observam a tudo em um silêncio menos respeitoso do que hipnótico.

Um retrato ao mesmo tempo monótono, doentio e assustadoramente real do relacionamento de uma mulher promíscua e um homem envolto com drogas pesadas, Berlin não tem nada de hermético. Seus fãs – que, acanhados, foram saindo das trevas à medida em que o álbum envelhecia quase tão bem quanto seu idealizador – deixam de piscar os olhos a fim de louvar com maior respeito a beleza da música, a poesia reediana em seu ápice, a impressionante força cenográfica e o namoro nada envergonhado com a melhor tradição dos musicais americanos, além de um romantismo dolorido e raivosamente urbano.

É verdade que, antes de o espetáculo começar, novos modernos do Brooklyn e velhos acólitos do poeta de Manhattan perguntavam-se, ansiosos, se haveria algum sentido, afinal, neste encontro adiado por três décadas para celebrar aquele que é muitas vezes considerado (vide o cartaz original do show que jamais aconteceu em 1973) o Sgt.Peppers dos anos 70. “Eu apenas queria contar uma história. E a situei em Berlim porque, na época, era uma cidade dividida. Achei que era uma senhora metáfora”, lembra Reed, que nunca havia pisado em Berlin quando da feitura do álbum. Não obstante, o resultado é tão alemão quanto Brecht. E valeu cada centavo dos US$ 65 (ou R$ 143) desembolsados pelos pagantes.

Ao vivo, deslocado no tempo, Berlin ganha dimensão ainda maior. A guitarra de Steve Hunter (que tocou nas gravações) é mais bela em Lady Day. Possuído, ele sola como se estivesse em um estádio de rock, para o deleite de Reed, punho cerrado lançado ao ar em desespero nada calculado. Cinto de prata e cobre cintilante, ele encara a imagem de soldados em guerra que se forma no vídeo localizado no fundo do cenário enquanto canta a cínica Men of Good Fortune.

Chega a hora de Caroline Says 1 e não deixa de ser engraçado ouvir gritinhos de prazer vindos da parte feminina, de todas as idades, quando o compositor repete, pausadamente, a abertura que informa: Caroline says that i am just a toy/ she wants a man/not just a boy!.

A esta altura o público já está de pé, se aproximando de Reed e embasbacado frente a uma big-band especialmente convocada para as quatro noites de casa repleta na St.Ann’s. Lá estão os baixistas Rob Wasserman e Fernando Saunders, o batera Tony ‘Thunder’ Smith, o trompetista Steve Bernstein e a cellista Jane Scarpantoni. Quem segura a batuta é ninguém menos do que o mítico produtor e arranjador Bob Ezrin (do próprio disco e, claro, de The Wall, do Pink Floyd). De costas para o público, ele deixa à mostra apenas o grafite em suas costas: Berlin. Impossível não lembrar que, aqui na St.Ann's, Reed e John Cale, seu parceiro de Velvet Underground, compuseram Songs For Drella, a mais bela declaração de amor jamais feita a Andy Warhol.

Tudo conspira para que a noite seja perfeita. Ao fundo, o vídeo de Shnabel agora oferece variações sobre H20. Exato. Águas mansas, tsunamis, torneiras, pinga-pingas, oceanos, a chuva. E a atriz Emanuelle Seigner, a senhora Polanski, com seu rosto tristíssimo. Mas sem chorar, afinal, lembra Reed, ela é tão fria quanto o Alaska.

Vem então o massacre de The Bed, que narra o suicídio de Caroline, narrado por Jim, aqui marcado pela impressionante seqüência harmônica do coral de adolescentes, a partir da repetição infinita dos versos fantasmagóricos And i said/ oh oh oh oh/what a feeeling/. E, mais uma vez, a beleza terrível de Sad Song.

Após um rápido intervalo, Reed retorna para um bis especialmente feliz, com as velvetianas Sweet Jane e Candy Says (esta última em um arrebatador dueto com Antony, que vi pela primeira vez no show que os Johnsons fizeram ano passado no Carnegie Hall) e o muito mais recente Rock Minuet, do álbum Ecstasy (2000). “Berlin é apenas mais um daqueles meus álbuns que não vendeu nada”, despistou Reed, com seu famoso mau-humor, quando o projeto de finalmente levar o disco ao palco saiu do papel. Paradoxalmente, também afirmou que este fora ‘um projeto de uma vida inteira, pretensioso mesmo’, e assumidamente influenciado pela obra de William S. Burroughs, Allen Ginsberg e Raymond Chandler. Os tempos, obviamente, são muito outros. Mas a depressão que gerou Berlin não parece ter se dissipado nas duas margens do East River. Aqui na noite fria de fim de outono de Nova Iorque, o velho Lou nos lembra que ela é apenas mais profunda.