Em belo texto no Village Voice, Alexis Sottile entrou no fuzuê da peça sobre a ativista americana assassinada na Palestina que foi cancelada aqui no East Village. A estréia seria no dia 22 de março (leia mais sobre o tema aqui). A diretora, uma das organizadoras do ativo grupo Theaters Against War (THAW), lembra que o cancelamento da peça é um ataque ao caráter humanista do texto de Alan Rickman. Ela lembra que o espetáculo apresenta, essencialmente, a transformação de uma típica universitária norte-americana, com um quê de provincianismo, em cidadã do mundo. Em determinado momento, a menina de 23 anos diz:
Provavelmente é apenas meu próprio amor-próprio e desejo de que as coisas vão melhorar, mas não consigo acreditar que os ricos podem ficar confortavelmente sentados, olhando impunemente o que está acontecendo aqui na Palestina.
Pode até parecer ingênuo, mas Alexis, uma das coordenadoras do abaixo-assinado contra a censura do New York Theater Workshop (que agora já conta com as assinaturas de EveEnsler e Gloria Steinem), espera que, nós, também, os artistas e cidadãos de Nova Iorque, não fiquemos confortavelmente sentados, olhando o que está acontecendo aqui no nosso quintal.
sexta-feira, março 17, 2006
ENTREVISTA/ HOWARD ZINN: "A Guerra É Imoral e Ilegal"
Saiu hoje no caderno Eu&Cultura, do Valor Econômico, a entrevista que fiz com o professor Howard Zinn, da Universidade de Boston.
"A Guerra É Imoral e Ilegal"
Um dos maiores ícones de pensamento da esquerda norte-americana lança pela primeira vez um livro no Brasil: “Você Não Pode Ser Neutro Num Trem em Movimento: Uma História Pessoal dos Nossos Tempos” (L-Dopa, 263 páginas, R$ 36). O professor da Universidade de Boston lança ao mesmo tempo, nos Estados Unidos, “Iraque: A Lógica da Retirada”, emulando “Vietnã: A Lógica da Retirada”, bíblia do movimento pacifista, escrito por Zinn em 1967. Na entrevista a seguir ele critica a invasão do Iraque, que completa três anos no domingo, e diz que acredita em uma saída pacifista para a guerra.
-É possível comparar o clamor pela retirada de tropas do Vietnã e, agora, do Iraque?
-Eu vejo claramente a história se repetindo. Os americanos foram mais uma vez levados à guerra por conta das mentiras de Washington. Mas o povo está despertando gradualmente para o que aconteceu. Veja o crescimento fantástico do movimento pacifista. As pesquisas mostram que já há um entendimento de que a invasão do Iraque também é, essencialmente, um ato de agressão ilegal e imoral.
-Mas o que aconteceu com a esquerda americana? O filósofo francês Bernard-Henri Lévy diz que o maior problema da América não são os neo-conservadores e sim a indigência da esquerda...
-O Bernard está completamente equivocado! Aliás, ele tem apenas um conhecimento superficial sobre o que está acontecendo nos EUA. Existem muito mais movimentos progressistas espalhados pelo país hoje do que nos anos 60. O problema é que as ações mais localizadas não ganham destaque na imprensa.
-O senhor pode me dar um exemplo concreto desta omissão?
-Na semana passada 300 mil pessoas foram às ruas de Chicago se manifestar a favor dos imigrantes. A cobertura foi pífia. Pensemos no episódio Cindy Sheehan. Quando ela decidiu acampar na estrada próxima ao sítio de Bush, no Texas, centenas de eventos foram organizados em para apóia-la e pouco se falou a respeito. A esquerda americana não está unida em um grande movimento social, algo muito difícil em um país tão grande e com população tão espaçada. Mas ela está, sim, muito viva!
-O senhor acha que Sheehan esteve um passo à frente da imprensa americana, ao expor de maneira clara o desejo da maioria da população de uma retirada das tropas do Oriente Médio?
-Sim, mas a imprensa americana se portou de maneira vergonhosa desde os preparativos para a invasão até os dias de hoje. Mas eu não me surpreendo com isso. Historicamente, os grandes meios de comunicação americanos sempre se portaram de modo covarde quando se tratou de qualquer guerra comandada por Washington. Demorou mais de dois anos para que o primeiro jornal pedisse a retirada dos ‘marines’ do Sudeste Asiático. A imprensa ainda funciona como mera seguidora de tendências, ela não almeja participar da liderança de nenhum movimento social, um equívoco imperdoável. Ela só passou a condenar a guerra quando a opinião pública já tinha sido conquistada.
-Mas o senhor não concorda que os escândalos de Abu Ghraib e Guanánamo, envolvendo a tortura brutal de prisioneiros, chocou os americanos com uma intensidade menor do que a esperada?
-O problema aqui é mais grave. Muito por conta do trabalho mal-feito, incompleto, e dúbio da grande imprensa, o grande público entendeu a tortura como exceção e não praxe nas ações militares americanas em tempo de guerra. Mas a verdade é que é assim que nós tratamos nossos prisioneiros – torturando-os.
-O senhor escreve que o Império Americano está encontrando suas fronteiras definitivas no Oriente Médio e que não acredita em um aumento de influência de Washington na América Latina. O que o faz pensar desta maneira?
-A supremacia dos EUA na América Latina está próxima de seu fim. Ela ainda sobrevive em situações específicas, como na Colômbia, mas as correntes de independência nunca foram tão fortes. Pense na Venezuela e na Bolívia. Eu não vejo grande descontentamento popular com o Chávez. Aliás, ele parece ser muito querido na Venezuela. Ainda é muito cedo para falarmos sobre Morales, mas há uma semelhança importante: o fato de que o povo acredita ter tomado as rédeas do Estado. Eu acho que esta é a tendência que deve prevalecer na America Latina por um bom tempo.
-O senhor também escreve que os ataques às torres gêmeas, em 2001, marcam o início da dissolução do último império contemporâneo. Mas intelectuais, como o professor Samuel Huntington, enxergam um cenário distinto, com o atentado a Nova Iorque inaugurando a ‘batalha das civilizações’, opondo o mundo cristão a estados islâmicos fundamentalistas...
-Ora, mas o Huntington tem uma visão absolutamente romântica do mundo ocidental! A história dos países que criaram a chamada ‘civilização ocidental’ é uma história de escravidão, imperialismo e capitalismo selvagem, não a do liberalismo que ele tanto valoriza. Existem elementos progressistas e profundamente atrasados nas duas ‘civilizações’. O que é mais perigoso na tese de Huntington é que ela coloca um grupo de pessoas que professa determinada fé contra outros de uma forma absolutamente irracional. É uma tese irracional.
-O senhor tinha 20 anos quando lutou na Segunda Guerra. O senhor acredita que os EUA, um dia, serão um país pacifista?
-Sejamos francos: os EUA vive em estado contínuo de guerra desde Pearl Harbor. E meu país é o mais agressivo, o mais beligerante do globo. Eu acredito piamente que um dia os americanos vão se dar conta da imoralidade e da futilidade da guerra, mas seria de uma tolice imensa eu arriscar dizer quando isso vai acontecer. Aos 83 anos, sou consciente de que o futuro é imprevisível, que ele depende exclusivamente da ação do homem, e que nós ainda não mobilizamos esta energia para criar um mundo melhor.
quinta-feira, março 16, 2006
Alguém quer as novas Marisas aí, pelamordedeus?
Ninguém imagina o que o correio nos reserva quando se vive fora da terrinha. Mesmo descontando a internet, o skype e os cartões telefônicos de US$ 2 que dão para falar duas horas sem perder o fôlego. Vem de um tudo. De um tudo. Neguinho gosta de mandar cartas. E encomendas. E presentes. Não, não estou reclamando, longe de mim. Mas aqui minha amiga Kika Serra vai entender o desconforto com precisão: esta semana me chegou uma encomenda daquelas. Os dois – dois! – novos discos da Marisa Monte. Um preto, “Infinito Particular”. O outro todo, assim, milhazes. Cores, muitas cores. “Universo Ao Meu Redor”.
Pronto, falei: eu tenho mesmo problemas com a dona Marisa. Com o pop certinho, a voz colocada, a batida um tico mais do que perfeita, tudo limpo demais. O problema, claro, é meu, todo meu. Ouço na maior cara-de-pau o novo Donald Fagen – isso mesmo, o ‘cara do Steely Dan’ – sem problemas. Confesso, confesso. “Morph The Cat”, eu comprei outro dia, tem produção impecável, certinha, quase no limite, mas seu Fagen arrisca ao tratar de temas como a paranóia reinante aqui em Bushland e oferece uma deliciosa conversa com o fantasma do...Ray Charles! Parece que desviei o assunto, mas aí é que mora o problema: sou brasileiro, cara! E ‘muzakar’ samba me dá nos nervos.
Lá atrás, no ‘Mais’, eu ouvia ‘Ensaboa” e voltava correndo para a gravação do Cartola. Dona Marisa me mandava um “Preciso Me Encontrar” e eu queria mais era Candeia ou, de novo, a versão do Cartola. Olha, a culpa é tão minha, mas tão minha, que até nas releituras de sucessos da MPB eu travava o ouvido – “O Que Me Importa”, do Cury, na vitrolinha aqui de casa só mesmo na interpretação contida do Tim Maia. Nunca tentei, mas acho que até conseguiria passar um tempo feliz com ‘Cor de Rosa Carvão’. Lá, a receita da dona Marisa, creio eu, deu mais certo.
Depois de ouvir com calma (o que um brasileiro isolado no Brooklyn acaba fazendo. Amigos, mandem mais presentes!) os dois novos discos, reconheço que são melhores, bem melhores, que o insosso “Memórias, Crônicas e Declarações de Amor”. Parênteses: a onda tribalista, daquele povo feliz porque ‘já sabe namorar, chutar a bola e beijar de língua’, nunca me pegou. Pois bem, o disco preto, o ‘pop’, tem até uma sacada genial, “Pernambucobucolismo”, lenta, que transporta o ouvinte para um lugar estranhamente calmo em que a mãe do Mano Wladimir vai e volta de Londres, de longe, em um movimento repetido, belo, inspirado. Mas a passagem é para uma faixa só. Não viajei nas outras músicas do álbum negro. No da Milhazes, o da flor, há a intenção de se mexer no samba, ‘bebopeando-o’ com ukelelês, ‘beatboxes’ e baixos acústicos. Legal, mas...não me pega não. O mix de sofisticação da Zona Sul carioca com o tal neo-hippismo das releitura diminutivas dos Novos Baianos (aqui, em “Três Letrinhas”) me beira a indigestão. Inho, inho, inho, eu já fiquei de saquinho bem cheinho. De novo, eu sei, a culpa é minha, rigorosamente minha.
Então, sabendo de antemão que ninguém vai ficar ofendido com a oferta (nem mesmo o bem-intencionado sujeito que me mandou os cedês), que muita gente fina curte a neo-diva portelense, que eles precisam urgentemente de uma boa reciclagem, alguém aí quer ganhar os dois – dois! – novos discos da Marisa Monte? A oferta, claro, é por tempo limitada e durará apenas até que o primeiro incauto se manifeste. Os discos - os dois! - embarcam, felizes, via Fedex, voando, voando, diretamente aqui do Brooklyn.
A Volta do Caveirão
A querida Ana-C leu, gostou e mandou há pouco o artigo que o Demétrio Magnolli escreveu na Folha de S.Paulo de hoje. Para quem não viu, em "A Hora e a vez do Caveirão”, o geógrafo e cientista social, das bandas da USP, olha para os ‘dez dias em que os militares abalaram as favelas cariocas’ e diz, entre otras cositas, que:
1) A negociação ‘sigilosa’ entre o Exército e o narcotráfico, representado pelo ‘Estado Paralelo’ instituído pelo Comando Vermelho no Rio de Janeiro, foi tão explícita, mas tão explícita, que só faltou os dois lados ‘trocarem embaixadores’ para agilizar o retorno das armas roubadas.
2) A mídia, encastelada em Higienópolis ou no Alto Leblon, caiu – ou quis cair – na velha narrativa do mocinho contra bandido e embarcou na batalha patriótica do Exército contra os traficantes. Cada um tem o Iraque que merece, né mesmo?
3) Fato: em dez dias de ocupação o Exército não capturou sequer um, unzinho, dos chefes do tráfico na cidade. Mas, usando de mandados judiciais ilegais (os tais ‘mandados coletivos’), revistaram os pobres (inclusive crianças) e invadiram suas casas com a complacência do Ministro da Justiça do governo dos companheiros.
4) A volta da ‘normalidade’, para quem vive na favela, é apenas a substituição do urutu pelo ‘caveirão’. Saem os tanques, voltam os carros blindados da PM com seus mega-fones intimidadores, que resumem a política de segurança dos Garotinho: a criminalização da população (até que se prove o contrario, todo favelado é suspeito) e o ‘conluio tácito com os traficantes’.
5 )Este ‘acordão ’se dá nesta nova fase da novela das drogas no país: vive-se o momento da territorialização explícita do narcotráfico, espécie de embrião de uma ‘colombianização’ do país, onde manda quem pode, negocia quem tem juízo e obedece quem não tem mais saída.
Em suma, o velho discurso de que o Estado precisa fazer sua parte nunca foi tão urgente. Ou bem se incorpora a favela ao país – com hospitais, postos de saúde, escolas, creches e, ‘ahá’, delegacias de polícia – ou estamos rumando em velocidade máxima para uma crise de soberania sem mais tamanho. Aos antropólogos da Gávea resta o consolo de que, ao menos por enquanto, ainda não estamos importando soldados ianques para fazer o trabalho sujo.
Para assinantes da Folha ou do UOL, o texto completo do professor Magnolli, uma ótima leitura, está aqui.
1) A negociação ‘sigilosa’ entre o Exército e o narcotráfico, representado pelo ‘Estado Paralelo’ instituído pelo Comando Vermelho no Rio de Janeiro, foi tão explícita, mas tão explícita, que só faltou os dois lados ‘trocarem embaixadores’ para agilizar o retorno das armas roubadas.
2) A mídia, encastelada em Higienópolis ou no Alto Leblon, caiu – ou quis cair – na velha narrativa do mocinho contra bandido e embarcou na batalha patriótica do Exército contra os traficantes. Cada um tem o Iraque que merece, né mesmo?
3) Fato: em dez dias de ocupação o Exército não capturou sequer um, unzinho, dos chefes do tráfico na cidade. Mas, usando de mandados judiciais ilegais (os tais ‘mandados coletivos’), revistaram os pobres (inclusive crianças) e invadiram suas casas com a complacência do Ministro da Justiça do governo dos companheiros.
4) A volta da ‘normalidade’, para quem vive na favela, é apenas a substituição do urutu pelo ‘caveirão’. Saem os tanques, voltam os carros blindados da PM com seus mega-fones intimidadores, que resumem a política de segurança dos Garotinho: a criminalização da população (até que se prove o contrario, todo favelado é suspeito) e o ‘conluio tácito com os traficantes’.
5 )Este ‘acordão ’se dá nesta nova fase da novela das drogas no país: vive-se o momento da territorialização explícita do narcotráfico, espécie de embrião de uma ‘colombianização’ do país, onde manda quem pode, negocia quem tem juízo e obedece quem não tem mais saída.
Em suma, o velho discurso de que o Estado precisa fazer sua parte nunca foi tão urgente. Ou bem se incorpora a favela ao país – com hospitais, postos de saúde, escolas, creches e, ‘ahá’, delegacias de polícia – ou estamos rumando em velocidade máxima para uma crise de soberania sem mais tamanho. Aos antropólogos da Gávea resta o consolo de que, ao menos por enquanto, ainda não estamos importando soldados ianques para fazer o trabalho sujo.
Para assinantes da Folha ou do UOL, o texto completo do professor Magnolli, uma ótima leitura, está aqui.
Medo 10x0 Nova Iorque
Por aqui, segue a goleada do medo. O cenário no teatro nova-iorquino anda tão modorrento, mas tão modorrento, que o tema mais palpitante do momento é o cancelamento de uma das mais aguardadas estréias da primavera. Depois de apresentada com sucesso de público e crítica em Londres, pelo Royal Court Theater, e ganhar prêmios a rodo, “Meu Nome é Rachel Corrie” corre o risco de não ser vista pelo público americano. Harold Pinter já chiou. Tony Kushner (“Angels in America”) e Vanessa Redgrave também, alem de outros, muitos outros artistas dos dois lados do Atlântico. Todos indignados com a decisão do New York Theater Workshop de cancelar a estréia do espetáculo baseado no diário e nas mensagens eletrônicas da jovem Rachel Corrie. Hoje foi o terceiro aniversário da morte da ativista americana, que teria 26 anos, e foi assassinada pelo exército israelense na Faixa de Gaza, quando tentava proteger a propriedade de uma família palestina. Sob fogo cerrado, o diretor do NYTW, James C.Nicola, disse hoje que tudo é um grande mal-entendido e que a peça não foi cancelada, apenas adiada. Depois de conversar com ‘líderes religiosos da comunidade judaica em Manhattan’, Nicola, que não viu “Meu Nome é Rachel Corrie” nos palcos de Londres, conta que decidiu modificar o calendário de seu pequeno teatro no circuito off-Broadway por conta das mudanças no Oriente Medio, com Ariel Sharon em coma, o Hamas assumindo o governo palestino e o ‘caráter claramente político da peça'. É ruim, hein? Quer dizer que os diretores do NYTW não sabiam do ‘caráter politico’ do texto quando eles incluíram a peça, com uma antecedência nova-iorquina, no calendário-2006 de seu teatro do East Village? Os responsáveis pela adaptação teatral, o genial ator Alan Rickman (o sinistro professor Severus Snape dos filmes do Harry Potter)e a editora Katharine Viner, do Guardian, disseram que não há adiamento coisíssima nenhuma e acusaram os diretores do NYTW de covardia e de promoverem censura artística. No teatro do Nicola, eles avisaram, a peça não entra mais em cartaz. Como provincianismo pouco é bobagem, Nova Iorque vê o medo, mais uma vez, triunfar. Medo que Corrie, aliás, não teve, naquela manhã em Rafah, na fronteira egípcia, há exatos três anos, quando, de acordo com o The International Solidarity Movement, foi fuzilada pelo exército de Sharon à sangue frio.
quarta-feira, março 15, 2006
ENTREVISTA/Danuza Leão
Conversei com a colunista Danuza Leão em minha mais recente temporada carioca, no terraço do Hotel Everest, na Prudente de Morais, com direito à vista para a Praia de Ipanema. Dá até saudade! Danuza conversou comigo sobre o sucesso de seu mais recente livro, "Quase Tudo", e uma porção de outras coisas mais. O bate-papo foi para a revista semanal portuguesa "Sábado", que o publicou este mês. Aí vai uma versão 'abrasileirada', maior do que a publicada, de nossa conversa.
DANUZA LEÃO
Verão carioca, sol forte e céu azulado sem nuvens na cobertura do Hotel Everest, em Ipanema. Danuza Leão, 73 anos, me chega sorrindo, óculos de sol, cabelos curtos, calçando um par de ténis caprichosamente cor-de-rosa. E disposta a contar “Quase Tudo” (Cia. Das Letras, 224 páginas), título de sua autobiografia, há 13 semanas na lista dos campeões de audiência das livrarias brasileiras. Com mais de duas centenas de fotos, este é um livro de memórias diferente. Para começar, não há lugar para nostalgia. Sim, Danuza foi casada com o jornalista Samuel Wainer, um dos príncipes de Getúlio Vargas, quiçá o mais emblemático dos presidentes brasileiros. Sim, ela conta histórias dos poderosos da política brasileira e internacional nos anos 50 e 60. E também os tiques do jet set e dos intelectuais, suas festas, seus amores, suas esquisitices. Mas não há desejo de se lembrar de tempos doirados, que não voltam mais. Autora de um livro de reminiscências que detesta olhar para o passado, Danuza descreve com detalhe suas histórias de amor, especialmente com Wainer e com o compositor António Maria, seu segundo marido. E também suas narrativas de perda, concentradas em um mesmo espaço de tempo, com as mortes da irmã Nara Leão, a musa da Bossa Nova, atacada por um tumor no cérebro, o suicídio do pai e, especialmente, o acidente na Região dos Lagos fluminense que a tomou seu filho, o jornalista Samuca Wainer. “Naquele momento pensei que nunca passaria por sofrimento maior, mas passei, e quantas vezes, e durante quantos anos – como agora”, escreveu. “Quase Tudo” também oferece aos leitores um estilo danuziano de escrever, que ela nega reconhecer, e que já se esboçava em sua coluna social no "Jornal do Brasil", em suas crónicas semanais na "Folha de S.Paulo", assim como em seu livro de etiqueta, o também campeão de vendas "Na Sala com Danuza".
-O livro surgiu mesmo de um artigo sobre a sua relação com o Getúlio?
-Quando a Folha de S.Paulo me pediu para escrever um artigo contando minha visão da morte do Getúlio, 50 anos depois do suicídio, para um caderno especial, eu gostei do resultado, sabe? Achei que humanizou a figura do presidente, que deu a visão de quem estava de dentro. Bem, dez dias depois de meu artigo ser publicado quatro editoras haviam me procurado. Mas minha resposta era uma só: não, nem pensar!
-Imagino sua reacção ao passar as últimas semanas abrindo os jornais e dando de cara com “Quase Tudo” no topo das listas dos mais vendidos...
-Agora estou mais tranquila, mas no início foi muito estressante. Fiquei um pouco histérica. Achei tudo um pouco demais, sabe?
-Sei não. O livro já começa de forma arrasadora com você partindo para Paris adolescente, a primeira modelo brasileira internacional, dividindo as atenções na Discothéque com Simone Signoret e Anouk Aimée. E nos revelando detalhes picantes como a paixão de Marlon Brando pelo actor francês Christian Marquand...
-E ele acaba dando o nome de Christian para seu primeiro filho...
-Então! “Quase Tudo” é uma delícia...
-Mas sou insegura. E tenho a consciência de que o que escrevo é inteiramente banal. Fico muito mal quando me chamam de escritora, um título pomposo. Também não gosto que me nomeiem jornalista. Tive maridos que eram jornalistas de fato – Samuel Wainer, António Maria e Renato Machado. Eu apenas sento na minha cadeira e escrevo.
-Mas eu imagino que o Samuel deveria falar de jornalismo o tempo todo...
-Sim, mas não comigo! (risos). Eu tinha vinte anos, não tinha a menor ideia do que era fazer um jornal. Mas ouvia e via tudo. Quando fui convidada, décadas depois, para fazer uma coluna diária no JB, vi como não era nada perto deles. Como eles eram incríveis e eu era uma amadora.
-Mas quando você percebeu que o livro havia conquistado os leitores?
-Foi quando a primeira edição, de 40 mil exemplares, foi para as ruas no dia 19 de Novembro. Eu marquei uma viagem para o Natal e comecei a receber telefonemas de meu editor que dizia, mandei rodar mais 20 mil. E mais 30 mil. Até que ele me disse que era assustador o que estava acontecendo.
-E você tem alguma ideia do motivo deste sucesso?
-Nenhuma. A única coisa quhttp://www.blogger.com/img/gl.bold.gife posso dizer é que eu tinha um ano e três meses para terminar o livro. E eu entreguei em nove meses. Ou seja, ele estava pronto. Era só eu contar. E meu critério foi o mais simples possível: só incluí no livro as coisas importantes da minha vida.
- Mas você manteve anotações ou mesmo um diário durante algum tempo?
-Tudo estava apenas guardado na minha memória. Inclusive histórias como a do Aga Khan (líder espiritual do Paquistão). Já idoso, o Aga vivia na Côte d’Azur e, uma vez por ano, no dia de seu aniversário, ia a Karachi e, em uma cerimónia em praça pública, subia em uma balança. Ficava de pé num dos pratos até que o outro atingisse seu peso, com diamantes e barras de ouro lá colocados. Esta lembrança me fez literalmente voltar no tempo e me recordar, por associação, da história de uma amiga que passou uma temporada no palácio de um marajá, na Índia. Todas as manhãs ela acordava e via, da varanda de seu quarto, um jardim maravilhoso, e totalmente diferente! Porque uma das delicadezas do milionário com seus hóspedes era o de trocar o jardim todas as noites. E assim as coisas vieram vindo...
-Foi um exercício de memória saboroso ou doloroso?
-Foi mais sofrido do que gostoso. Bem mais sofrido.
-Porque existiam temas em que você preferiria não ter tocado...
-Temas como as mortes de meu pai, de meu filho e de minha irmã, ou mesmo o casamento com António Maria, eu nunca jamais havia aberto minha boca para falar com ninguém. Nem em conversas com amigos, nem com meu psicanalista. Percebi que sou uma pessoa que me exprimo melhor escrevendo, sozinha, do que falando. E de repente, quando comecei a escrever, estes temas foram surgindo e me fizeram bem. E, se eu iria escrever, de verdade, não poderia omitir fatos importantes da minha vida.
-O cineasta Cacá Diegues, que foi casado com sua irmã Nara, teve a sensação de que você escreveu ‘Quase Tudo’ na terceira pessoa, como se olhasse para sua vida do prisma do leitor...
-Sabe que não tive preocupação alguma com estilo? Apenas nos momentos mais difíceis, como quando eu falava da morte de meu filho Samuca, tive o cuidado enorme de não cair na pieguice, no sentimentalismo. Mas acho que ajudou o fato de eu não ser melodramática.
-A parte que mais me emociona é quando você resolve falar da sua impossibilidade de relacionamento com Felipe, seu neto que é a cara de Samuca...
-Eu acho que escrevi ali (Ele precisava de mim, mas eu não poderia dar o que ele queria. Quando o via, via Samuca. Nunca pude chegar muito perto dele. As dores podem até melhorar, mas passar, não passam. Nunca.) o que nunca consegui falar para ele, toda esta dificuldade que eu tenho de me relacionar com ele.
-Você conta que a morte de Samuca a tornou alcoólatra. Não há como deixar de pensar em um paralelo entre a sua própria experiência, você chegou a experimentar heroína, e o outro lado da história, quando tem de lidar com seus filhos adolescentes, experimentando drigas. Você trata do tema de modo tão natural...
-Natural, sim, mas complicado! Não foi fácil o que eu passei. Vivi o dia-a-dia das intervenções médicas. E lidei com isso do jeito que foi possível, sabendo de tudo, às vezes com esperança, às vezes descrente. A realidade é que, com drogas, você nunca sabe o fim da história. Nunca. Não tem jeito. A vida é que se encarrega de ir acertando as coisas. E, olha, as drogas que a gente usa são sempre diferentes daquelas que os filhos usam, sabia? É igualzinho a sofrimento. Me dê a dor toda para mim que eu seguro tudo, mas não vai me fazer meus filhos sofrerem...
- Você traça um perfil profundo de seu pai e trata do suicídio dele, planejado nos mínimos detalhes...
-Um bom tempo depois eu fiquei me cobrando, pensando como não havia pensado nisso antes, pois era claro que aquilo iria acontecer. E a gente sempre pensa que poderia ter evitado, que as mortes que acontecem perto da gente poderiam ser estancadas. Mas meu pai estava lidando mal com a velhice e quando ele soube da doença da Nara tudo ficou ainda mais complicado. Ele era uma pessoa muito profunda, ele não suportava a ideia de ver a agonia da filha.
-Ele não viu a morte da filha e você acabou perdendo, de uma forma brutal, seu filho, em um acidente. Você aguentou...
-Ah, mas eu tinha que aguentar. Eu tinha! Evidentemente que é muito difícil comparar dores, mas se por um lado a maior dor do mundo é você perder um filho, por outro lado eu sei que foi rápido para ele. Foi instantâneo. E a dor que eu tive com Nara foi a de saber que ela, durante tantos anos, sabia o que estava acontecendo. Ela esteve consciente até o último momento. Ela me deu um outro tipo de dor, mas que também foi de matar.
-Você praticamente diz que ‘a Bossa Nova passou lá em casa em eu nem percebi’ (risos). É verdade isso, Danuza?
-Mas é claro! Eu visitava meus pais e via aqueles meninos por lá, uma galera. Não teve uma época em que um povo fazia rock na garagem? Então, eles tocavam violão na sala lá de casa (risos). Tom Jobim, João Gilberto, Carlinhos Lyra. E eu não vi nada. Na-da! (risos)
-E quando você se deu conta que era irmã de uma das figuras mais importantes da música brasileira?
-Eu acho que a ficha caiu mesmo quando eu voltei da Europa e Nara ia estrear “Opinião”. Já a tinha visto em “Pobre Menina Rica”, uma coisa mais intimista. Mas quando a vi protagonizando aquele libelo contra a ditadura eu pensei – mas aquela menina tímida, quietinha, meu Deus, a minha irmãzinha, no palco, está lá, fazendo horrores!(risos)
-A sua mãe sai do livro como uma figura quieta, misteriosa...
-Mas até hoje quando me perguntam quem foi minha mãe eu não sei direito o que responder. Não sei quem ela foi. Mas tem um momento que eu conto no livro que, para mim, foi importantíssimo. Foi crucial na minha vida. É quando minha mãe toma, sozinha, uma condução no Rio e vai para Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, e me conta que aquela foi a maior aventura da vida dela. Ali tive uma pena enorme de minha mãe, uma pessoa que não viveu. Ela simplesmente não viveu. Era como se ela lamentasse que tanta coisa havia acontecido na vida de nós todas e ela simplesmente não viveu nada.
-Você foi muito precoce, conheceu o jet set mundial com 17 anos. A cultura da celebridade mudou muito o ‘grand monde’?
- Acho que sim. Talvez a elite até tenha permanecido a mesma, mas o mundo mudou. Ela ficou ultrapassada.
-De onde vem esta naturalidade nas relações com os poderosos? Seu pai era um ser politico?
-Não. Isso vem de Samuel. Se eu não tivesse me casado com ele talvez jamais teria entrado neste mundo. E eu me interesso muito por política. Meu filho Samuca era muito interessado em politica...
-Falando em politica, como vai a cena brasileira, em que a corrupção com o PT no governo ganha aspectos até mesmo brejeiros, com os dólares sendo transportadas pelas cuecas?
-Bem, corrupção é corrupção, tem que se levar o dinheiro de algum jeito, não é mesmo? Aí não tem etiqueta (risos). Mas este facto que foi tão festejado, inclusive por mim, de eleger um operário para a presidência e que as coisas iriam mudar, se revelou uma frustração sem mais tamanho. E isso apesar do carisma de Lula, que convence, especialmente, hoje em dia, as classes menos favorecidas. Sabe o que é pior nisso tudo? É que eu nunca pensei que teria tanta saudades de Fernando Henrique Cardoso (risos).
-Então, nas eleições deste ano...
-Ainda não sei o que farei, mas não há a menor hipótese de votar novamente em Lula. E o que mais ouço com as pessoas com quem me dou, inclusive com os mais empolgados com o PT, é que eles não aguentam mais nem ouvir a voz de Lula. Quando ele aparece na televisão eles desligam o som. E Lula abusa, apela muito. Lá vem ele com as raízes, a mãe. Ah, chega, né? Esta sensação de ressaca eterna, nem com o FHC!
- Então vamos deixar a dor de cabeça para lá e falar de Portugal. Durante os anos 70 você trabalhou na TAP recebendo a elite portuguesa...
-Pois é! Eu era uma das juradas do Programa Flávio Cavalcanti, de grande sucesso na televisão. E uma das anunciantes era a a TAP, que queria melhorar sua imagem no Brasil. Tomara que ninguém fique bravo comigo em Portugal, mas o apelido da empresa por aqui era ‘tamancos aéreos portugueses’. Joaquim de Carvalho, que era o director da empresa no Brasil, começou a mudar esta imagem. Patrocinava actores que viajavam pela TAP e um dia me chamou para receber os V.I.P’s. Ele queria alguém conhecido para marcar presença e foi assim que minha história com Portugal começou.
-Um trabalho divertido...
-Sim, mas uma vez tive de recepcionar o Rui Patrício, ministro dos Negócios Exteriores do governo Marcelo Caetano. Lá, ele deu uma entrevista e disse algo como ‘nós não vamos deixar acontecer nas colónias africanas o que deixamos acontecer no Brasil’ (risos). Eu olhei para ele, mantive o sorriso, mas pensei: eu não acredito no que estou ouvindo!
-E você me contava que a publicação do livro a levou a descobrir suas origens lusas...
-Pois é. Meu pai saiu do Espírito Santo, foi para o Rio de Janeiro, e perdeu o contacto com a família. Depois que “Quase Tudo” foi publicado, recebi a carta de um primo, Zeca, que eu jamais conheci, me contando que nossa família era originalmente de Ericeira, os Barbosa Leão. E o filho que veio para o Brasil era um estroina, que estava jurado de morte. Agora, o melhor: o irmão que ficou em Portugal acabou virando Bispo de Porto. Fui para a internet e lá está o tal bispo e, apesar de não eu não ser aficionada por genealogias, fiquei impressionada com uma história que é um pouco demais para a minha cabeça – há um santo na família! Um dos Barbosa Leão foi canonizado!(risos)
-E não deu vontade de conferir isto em Ericeira?
-Eu quero muito ir a Portugal. Só tenho muito medo porque ouço dizer que está tudo muito moderno. Estou relendo pela quinta vez ‘A Cidade e As Serras”, e o que eu sonho é com o Portugal do Eça. Não quero ver auto-estrada! Queria percorrer a região do Douro. Hoje eu sei que não há nada mais que eu quero do que parar em uma quinta fantástica à beira do rio e por lá ficar.
-Você escreve que ‘deixar meus filhos livres foi uma forma de ser boa mãe’. Volta e meia você volta a esta mesma tecla - liberdade. Eu posso entender “Quase Tudo” como uma ode à liberdade?
-Pode. Pode, sim! Meu livro é uma comemoração do que eu acho que há de mais importante na minha vida – a liberdade. E esta noção da importância de ser livre me foi passada pelo meu pai, quando eu era menina. Ele me mostrou que a gente não deve se forçar a nada. Por exemplo, ontem, saí para jantar em um grupo de cinco pessoas. Que eu adoro, mas quando voltei para casa pensei: mas por que é que eu fui, hein? Estava tão feliz em casa lendo “A Cidade e As Serras”. Ora, não exerci a minha liberdade de dizer que estava felicíssima com meu . E isso é o que devemos fazer o tempo todo, na medida do possível, fazer exclusivamente o que queremos.
-Mas sem pensar na etiqueta social?
-Por favor! Não devemos fazer nada porque o social manda, as convenções ordenam. Isso é uma grande asneira. Faça só e apenas o que você quer. É engraçado, como me acham um pouco extravagante, as pessoas já encaram com naturalidade quando eu pergunto quem vai jantar, quantas pessoas estarão em tal festa. E muitas vezes eu digo ‘ah, querida, nem pensar!’. Agora, muita gente não me convida para eventos sociais por causa disso? Claro! Se é uma pena? Não, graças a Deus! (risos).
-As festas de hoje também são diferentes, não?
-Sabe que depois que o livro foi publicado eu me lembrei de algumas histórias que acabaram não entrando no livro? Outro dia li uma coluna social que era um merchandsing total. Assim: as flores são da casa fulano, o bufe de sicrano, o D.J. é a celebridade tal. Enfim, a festa é uma propaganda só. E eu dava muita festa. E não me lembro de nenhuma festa minha ter flor. Para quê flor, meu Deus? Tinha uísque, gelo e água. E as festas só tinham um objectivo: a gente se divertir, mais nada. E como nos divertíamos! Hoje as festas são para vender produtos. Não entendo isso.
-Você sente falta de algum personagem que era fundamental em suas festas?
-Eu sinto falta de mim mesma! Daquela que dava festas sem parar e que não dá mais.
- Mas, se fosse convidada, você voltaria a fazer uma coluna social?
-Nem morta! Coluna é uma pauleira e eu não estou disposta a enfrentar isso novamente. E só aceitei na época porque eu sou assim, quando o cavalo passa na minha frente encilhado, eu monto mesmo. Agora, eu adorei fazer a coluna, embora tenha apanhado muito. Por um lado, é muito vibrante fazer uma coluna. E a vida dentro da redação, especialmente aquela redação do JB dos anos 90, era uma maravilha. E tem algumas coisas que eu me lembro com grande satisfação, como as campanhas pela iluminação do morro Dois Irmãos e de se baptizar o aeroporto internacional do Rio de Janeiro com o nome de Tom Jobim. Claro, não é todas as vezes que eu olho para o morro e penso nisso, mas acho algo legal que eu fiz (risos). Eu tinha muita liberdade no JB para ter opinião, inclusive sobre política. Agora, por outro lado, é muito trabalhoso e difícil fazer uma coluna social como a que eu fazia. E você nunca vai saber, mas nunca, quem está tentando se aproveitar do espaço para se promover.
-Como é sua rotina hoje?
-Acordo todos os dias às sete horas em ponto. Como metade de um mamão papaia e corro na Lagoa. Volto, leio os jornais e às 11h faço um aula de uma hora de ginástica. Tomo banho, almoço e escrevo. Saio no máximo duas vezes por semana, para jantar fora. E volto para casa imediatamente.
-Nenhuma saudade da época em que você trabalhava na noite carioca, recebendo os famosos no Hippopotamus?
-Mas nem pensar! (risos) Outro dia eu estava saindo do jantar e passamos em frente à Praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, um lugar agitado, repleto de jovens, e pensei quanto precisariam me dar para eu entrar em naquela boate. Cinco mil dólares? Não, não entrava. Dez mil? Hum, talvez entrasse, mas não ficaria mais que vinte minutos. Fiquei ali, fazendo estas contas.(risos)
-Apesar de ‘Quase Tudo’ ser um livro de memórias, ele não cai no saudosismo. E o Brasil vive uma onda nostálgica – a série sobre os anos dourados de Juscelino Kubitschek na TV Globo, o documentário sobre Vinícius de Morais...
-Está se vendo isso, não? As pessoas têm uma certa tendência em achar o passado melhor do que o presente, mas este não é o meu caso. Sabe quando eu fui mais feliz na minha vida? Agora! “Quase Tudo” foi uma ideia do Millôr Fernandes, que adorei, já que a editora não gostou de meu título, que seria “Por Enquanto”. Mas o cerne é o mesmo, ou seja, de que nada acabou.
-Como mostra o fim do livro, no encontro especial com um misterioso homem de Cuba, no Café de Buci, em Paris, com quem você vive um romance-relâmpago...
-E aquilo foi incrível. E aconteceu. E aconteceu comigo. E há alguns poucos meses. Eu não conseguia acabar o livro de jeito nenhum. Não queria terminar dizendo que vivo uma vida tranquila, em casa, escrevendo, que quase não saio e que estou muito bem assim. Não! Peguei então um avião e achei que longe do Rio poderia me vir uma ideia melhor. Mas o que me veio foi muito mais do que uma inspiração, foi um acontecimento, mais um! (risos).
-A biografia que um jornalista brasileiro escreveu sobre seu segundo marido, António Maria, acaba de ser reeditada por conta do sucesso de ‘Quase Tudo’. Nela ele conta o episódio de um aborto que você teria feito depois do fim da relação com Maria, quando você deixou o jornalista. Isso a chateou?
-Olha, eu soube disso. Ouvi dizer. Não li o livro dele e nem vou ler. Não fiquei chateada, não vou polemizar. Minha vida foi pautada pela elegância, e ela está toda contada em meu livro.
DANUZA LEÃO
Verão carioca, sol forte e céu azulado sem nuvens na cobertura do Hotel Everest, em Ipanema. Danuza Leão, 73 anos, me chega sorrindo, óculos de sol, cabelos curtos, calçando um par de ténis caprichosamente cor-de-rosa. E disposta a contar “Quase Tudo” (Cia. Das Letras, 224 páginas), título de sua autobiografia, há 13 semanas na lista dos campeões de audiência das livrarias brasileiras. Com mais de duas centenas de fotos, este é um livro de memórias diferente. Para começar, não há lugar para nostalgia. Sim, Danuza foi casada com o jornalista Samuel Wainer, um dos príncipes de Getúlio Vargas, quiçá o mais emblemático dos presidentes brasileiros. Sim, ela conta histórias dos poderosos da política brasileira e internacional nos anos 50 e 60. E também os tiques do jet set e dos intelectuais, suas festas, seus amores, suas esquisitices. Mas não há desejo de se lembrar de tempos doirados, que não voltam mais. Autora de um livro de reminiscências que detesta olhar para o passado, Danuza descreve com detalhe suas histórias de amor, especialmente com Wainer e com o compositor António Maria, seu segundo marido. E também suas narrativas de perda, concentradas em um mesmo espaço de tempo, com as mortes da irmã Nara Leão, a musa da Bossa Nova, atacada por um tumor no cérebro, o suicídio do pai e, especialmente, o acidente na Região dos Lagos fluminense que a tomou seu filho, o jornalista Samuca Wainer. “Naquele momento pensei que nunca passaria por sofrimento maior, mas passei, e quantas vezes, e durante quantos anos – como agora”, escreveu. “Quase Tudo” também oferece aos leitores um estilo danuziano de escrever, que ela nega reconhecer, e que já se esboçava em sua coluna social no "Jornal do Brasil", em suas crónicas semanais na "Folha de S.Paulo", assim como em seu livro de etiqueta, o também campeão de vendas "Na Sala com Danuza".
-O livro surgiu mesmo de um artigo sobre a sua relação com o Getúlio?
-Quando a Folha de S.Paulo me pediu para escrever um artigo contando minha visão da morte do Getúlio, 50 anos depois do suicídio, para um caderno especial, eu gostei do resultado, sabe? Achei que humanizou a figura do presidente, que deu a visão de quem estava de dentro. Bem, dez dias depois de meu artigo ser publicado quatro editoras haviam me procurado. Mas minha resposta era uma só: não, nem pensar!
-Imagino sua reacção ao passar as últimas semanas abrindo os jornais e dando de cara com “Quase Tudo” no topo das listas dos mais vendidos...
-Agora estou mais tranquila, mas no início foi muito estressante. Fiquei um pouco histérica. Achei tudo um pouco demais, sabe?
-Sei não. O livro já começa de forma arrasadora com você partindo para Paris adolescente, a primeira modelo brasileira internacional, dividindo as atenções na Discothéque com Simone Signoret e Anouk Aimée. E nos revelando detalhes picantes como a paixão de Marlon Brando pelo actor francês Christian Marquand...
-E ele acaba dando o nome de Christian para seu primeiro filho...
-Então! “Quase Tudo” é uma delícia...
-Mas sou insegura. E tenho a consciência de que o que escrevo é inteiramente banal. Fico muito mal quando me chamam de escritora, um título pomposo. Também não gosto que me nomeiem jornalista. Tive maridos que eram jornalistas de fato – Samuel Wainer, António Maria e Renato Machado. Eu apenas sento na minha cadeira e escrevo.
-Mas eu imagino que o Samuel deveria falar de jornalismo o tempo todo...
-Sim, mas não comigo! (risos). Eu tinha vinte anos, não tinha a menor ideia do que era fazer um jornal. Mas ouvia e via tudo. Quando fui convidada, décadas depois, para fazer uma coluna diária no JB, vi como não era nada perto deles. Como eles eram incríveis e eu era uma amadora.
-Mas quando você percebeu que o livro havia conquistado os leitores?
-Foi quando a primeira edição, de 40 mil exemplares, foi para as ruas no dia 19 de Novembro. Eu marquei uma viagem para o Natal e comecei a receber telefonemas de meu editor que dizia, mandei rodar mais 20 mil. E mais 30 mil. Até que ele me disse que era assustador o que estava acontecendo.
-E você tem alguma ideia do motivo deste sucesso?
-Nenhuma. A única coisa quhttp://www.blogger.com/img/gl.bold.gife posso dizer é que eu tinha um ano e três meses para terminar o livro. E eu entreguei em nove meses. Ou seja, ele estava pronto. Era só eu contar. E meu critério foi o mais simples possível: só incluí no livro as coisas importantes da minha vida.
- Mas você manteve anotações ou mesmo um diário durante algum tempo?
-Tudo estava apenas guardado na minha memória. Inclusive histórias como a do Aga Khan (líder espiritual do Paquistão). Já idoso, o Aga vivia na Côte d’Azur e, uma vez por ano, no dia de seu aniversário, ia a Karachi e, em uma cerimónia em praça pública, subia em uma balança. Ficava de pé num dos pratos até que o outro atingisse seu peso, com diamantes e barras de ouro lá colocados. Esta lembrança me fez literalmente voltar no tempo e me recordar, por associação, da história de uma amiga que passou uma temporada no palácio de um marajá, na Índia. Todas as manhãs ela acordava e via, da varanda de seu quarto, um jardim maravilhoso, e totalmente diferente! Porque uma das delicadezas do milionário com seus hóspedes era o de trocar o jardim todas as noites. E assim as coisas vieram vindo...
-Foi um exercício de memória saboroso ou doloroso?
-Foi mais sofrido do que gostoso. Bem mais sofrido.
-Porque existiam temas em que você preferiria não ter tocado...
-Temas como as mortes de meu pai, de meu filho e de minha irmã, ou mesmo o casamento com António Maria, eu nunca jamais havia aberto minha boca para falar com ninguém. Nem em conversas com amigos, nem com meu psicanalista. Percebi que sou uma pessoa que me exprimo melhor escrevendo, sozinha, do que falando. E de repente, quando comecei a escrever, estes temas foram surgindo e me fizeram bem. E, se eu iria escrever, de verdade, não poderia omitir fatos importantes da minha vida.
-O cineasta Cacá Diegues, que foi casado com sua irmã Nara, teve a sensação de que você escreveu ‘Quase Tudo’ na terceira pessoa, como se olhasse para sua vida do prisma do leitor...
-Sabe que não tive preocupação alguma com estilo? Apenas nos momentos mais difíceis, como quando eu falava da morte de meu filho Samuca, tive o cuidado enorme de não cair na pieguice, no sentimentalismo. Mas acho que ajudou o fato de eu não ser melodramática.
-A parte que mais me emociona é quando você resolve falar da sua impossibilidade de relacionamento com Felipe, seu neto que é a cara de Samuca...
-Eu acho que escrevi ali (Ele precisava de mim, mas eu não poderia dar o que ele queria. Quando o via, via Samuca. Nunca pude chegar muito perto dele. As dores podem até melhorar, mas passar, não passam. Nunca.) o que nunca consegui falar para ele, toda esta dificuldade que eu tenho de me relacionar com ele.
-Você conta que a morte de Samuca a tornou alcoólatra. Não há como deixar de pensar em um paralelo entre a sua própria experiência, você chegou a experimentar heroína, e o outro lado da história, quando tem de lidar com seus filhos adolescentes, experimentando drigas. Você trata do tema de modo tão natural...
-Natural, sim, mas complicado! Não foi fácil o que eu passei. Vivi o dia-a-dia das intervenções médicas. E lidei com isso do jeito que foi possível, sabendo de tudo, às vezes com esperança, às vezes descrente. A realidade é que, com drogas, você nunca sabe o fim da história. Nunca. Não tem jeito. A vida é que se encarrega de ir acertando as coisas. E, olha, as drogas que a gente usa são sempre diferentes daquelas que os filhos usam, sabia? É igualzinho a sofrimento. Me dê a dor toda para mim que eu seguro tudo, mas não vai me fazer meus filhos sofrerem...
- Você traça um perfil profundo de seu pai e trata do suicídio dele, planejado nos mínimos detalhes...
-Um bom tempo depois eu fiquei me cobrando, pensando como não havia pensado nisso antes, pois era claro que aquilo iria acontecer. E a gente sempre pensa que poderia ter evitado, que as mortes que acontecem perto da gente poderiam ser estancadas. Mas meu pai estava lidando mal com a velhice e quando ele soube da doença da Nara tudo ficou ainda mais complicado. Ele era uma pessoa muito profunda, ele não suportava a ideia de ver a agonia da filha.
-Ele não viu a morte da filha e você acabou perdendo, de uma forma brutal, seu filho, em um acidente. Você aguentou...
-Ah, mas eu tinha que aguentar. Eu tinha! Evidentemente que é muito difícil comparar dores, mas se por um lado a maior dor do mundo é você perder um filho, por outro lado eu sei que foi rápido para ele. Foi instantâneo. E a dor que eu tive com Nara foi a de saber que ela, durante tantos anos, sabia o que estava acontecendo. Ela esteve consciente até o último momento. Ela me deu um outro tipo de dor, mas que também foi de matar.
-Você praticamente diz que ‘a Bossa Nova passou lá em casa em eu nem percebi’ (risos). É verdade isso, Danuza?
-Mas é claro! Eu visitava meus pais e via aqueles meninos por lá, uma galera. Não teve uma época em que um povo fazia rock na garagem? Então, eles tocavam violão na sala lá de casa (risos). Tom Jobim, João Gilberto, Carlinhos Lyra. E eu não vi nada. Na-da! (risos)
-E quando você se deu conta que era irmã de uma das figuras mais importantes da música brasileira?
-Eu acho que a ficha caiu mesmo quando eu voltei da Europa e Nara ia estrear “Opinião”. Já a tinha visto em “Pobre Menina Rica”, uma coisa mais intimista. Mas quando a vi protagonizando aquele libelo contra a ditadura eu pensei – mas aquela menina tímida, quietinha, meu Deus, a minha irmãzinha, no palco, está lá, fazendo horrores!(risos)
-A sua mãe sai do livro como uma figura quieta, misteriosa...
-Mas até hoje quando me perguntam quem foi minha mãe eu não sei direito o que responder. Não sei quem ela foi. Mas tem um momento que eu conto no livro que, para mim, foi importantíssimo. Foi crucial na minha vida. É quando minha mãe toma, sozinha, uma condução no Rio e vai para Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, e me conta que aquela foi a maior aventura da vida dela. Ali tive uma pena enorme de minha mãe, uma pessoa que não viveu. Ela simplesmente não viveu. Era como se ela lamentasse que tanta coisa havia acontecido na vida de nós todas e ela simplesmente não viveu nada.
-Você foi muito precoce, conheceu o jet set mundial com 17 anos. A cultura da celebridade mudou muito o ‘grand monde’?
- Acho que sim. Talvez a elite até tenha permanecido a mesma, mas o mundo mudou. Ela ficou ultrapassada.
-De onde vem esta naturalidade nas relações com os poderosos? Seu pai era um ser politico?
-Não. Isso vem de Samuel. Se eu não tivesse me casado com ele talvez jamais teria entrado neste mundo. E eu me interesso muito por política. Meu filho Samuca era muito interessado em politica...
-Falando em politica, como vai a cena brasileira, em que a corrupção com o PT no governo ganha aspectos até mesmo brejeiros, com os dólares sendo transportadas pelas cuecas?
-Bem, corrupção é corrupção, tem que se levar o dinheiro de algum jeito, não é mesmo? Aí não tem etiqueta (risos). Mas este facto que foi tão festejado, inclusive por mim, de eleger um operário para a presidência e que as coisas iriam mudar, se revelou uma frustração sem mais tamanho. E isso apesar do carisma de Lula, que convence, especialmente, hoje em dia, as classes menos favorecidas. Sabe o que é pior nisso tudo? É que eu nunca pensei que teria tanta saudades de Fernando Henrique Cardoso (risos).
-Então, nas eleições deste ano...
-Ainda não sei o que farei, mas não há a menor hipótese de votar novamente em Lula. E o que mais ouço com as pessoas com quem me dou, inclusive com os mais empolgados com o PT, é que eles não aguentam mais nem ouvir a voz de Lula. Quando ele aparece na televisão eles desligam o som. E Lula abusa, apela muito. Lá vem ele com as raízes, a mãe. Ah, chega, né? Esta sensação de ressaca eterna, nem com o FHC!
- Então vamos deixar a dor de cabeça para lá e falar de Portugal. Durante os anos 70 você trabalhou na TAP recebendo a elite portuguesa...
-Pois é! Eu era uma das juradas do Programa Flávio Cavalcanti, de grande sucesso na televisão. E uma das anunciantes era a a TAP, que queria melhorar sua imagem no Brasil. Tomara que ninguém fique bravo comigo em Portugal, mas o apelido da empresa por aqui era ‘tamancos aéreos portugueses’. Joaquim de Carvalho, que era o director da empresa no Brasil, começou a mudar esta imagem. Patrocinava actores que viajavam pela TAP e um dia me chamou para receber os V.I.P’s. Ele queria alguém conhecido para marcar presença e foi assim que minha história com Portugal começou.
-Um trabalho divertido...
-Sim, mas uma vez tive de recepcionar o Rui Patrício, ministro dos Negócios Exteriores do governo Marcelo Caetano. Lá, ele deu uma entrevista e disse algo como ‘nós não vamos deixar acontecer nas colónias africanas o que deixamos acontecer no Brasil’ (risos). Eu olhei para ele, mantive o sorriso, mas pensei: eu não acredito no que estou ouvindo!
-E você me contava que a publicação do livro a levou a descobrir suas origens lusas...
-Pois é. Meu pai saiu do Espírito Santo, foi para o Rio de Janeiro, e perdeu o contacto com a família. Depois que “Quase Tudo” foi publicado, recebi a carta de um primo, Zeca, que eu jamais conheci, me contando que nossa família era originalmente de Ericeira, os Barbosa Leão. E o filho que veio para o Brasil era um estroina, que estava jurado de morte. Agora, o melhor: o irmão que ficou em Portugal acabou virando Bispo de Porto. Fui para a internet e lá está o tal bispo e, apesar de não eu não ser aficionada por genealogias, fiquei impressionada com uma história que é um pouco demais para a minha cabeça – há um santo na família! Um dos Barbosa Leão foi canonizado!(risos)
-E não deu vontade de conferir isto em Ericeira?
-Eu quero muito ir a Portugal. Só tenho muito medo porque ouço dizer que está tudo muito moderno. Estou relendo pela quinta vez ‘A Cidade e As Serras”, e o que eu sonho é com o Portugal do Eça. Não quero ver auto-estrada! Queria percorrer a região do Douro. Hoje eu sei que não há nada mais que eu quero do que parar em uma quinta fantástica à beira do rio e por lá ficar.
-Você escreve que ‘deixar meus filhos livres foi uma forma de ser boa mãe’. Volta e meia você volta a esta mesma tecla - liberdade. Eu posso entender “Quase Tudo” como uma ode à liberdade?
-Pode. Pode, sim! Meu livro é uma comemoração do que eu acho que há de mais importante na minha vida – a liberdade. E esta noção da importância de ser livre me foi passada pelo meu pai, quando eu era menina. Ele me mostrou que a gente não deve se forçar a nada. Por exemplo, ontem, saí para jantar em um grupo de cinco pessoas. Que eu adoro, mas quando voltei para casa pensei: mas por que é que eu fui, hein? Estava tão feliz em casa lendo “A Cidade e As Serras”. Ora, não exerci a minha liberdade de dizer que estava felicíssima com meu . E isso é o que devemos fazer o tempo todo, na medida do possível, fazer exclusivamente o que queremos.
-Mas sem pensar na etiqueta social?
-Por favor! Não devemos fazer nada porque o social manda, as convenções ordenam. Isso é uma grande asneira. Faça só e apenas o que você quer. É engraçado, como me acham um pouco extravagante, as pessoas já encaram com naturalidade quando eu pergunto quem vai jantar, quantas pessoas estarão em tal festa. E muitas vezes eu digo ‘ah, querida, nem pensar!’. Agora, muita gente não me convida para eventos sociais por causa disso? Claro! Se é uma pena? Não, graças a Deus! (risos).
-As festas de hoje também são diferentes, não?
-Sabe que depois que o livro foi publicado eu me lembrei de algumas histórias que acabaram não entrando no livro? Outro dia li uma coluna social que era um merchandsing total. Assim: as flores são da casa fulano, o bufe de sicrano, o D.J. é a celebridade tal. Enfim, a festa é uma propaganda só. E eu dava muita festa. E não me lembro de nenhuma festa minha ter flor. Para quê flor, meu Deus? Tinha uísque, gelo e água. E as festas só tinham um objectivo: a gente se divertir, mais nada. E como nos divertíamos! Hoje as festas são para vender produtos. Não entendo isso.
-Você sente falta de algum personagem que era fundamental em suas festas?
-Eu sinto falta de mim mesma! Daquela que dava festas sem parar e que não dá mais.
- Mas, se fosse convidada, você voltaria a fazer uma coluna social?
-Nem morta! Coluna é uma pauleira e eu não estou disposta a enfrentar isso novamente. E só aceitei na época porque eu sou assim, quando o cavalo passa na minha frente encilhado, eu monto mesmo. Agora, eu adorei fazer a coluna, embora tenha apanhado muito. Por um lado, é muito vibrante fazer uma coluna. E a vida dentro da redação, especialmente aquela redação do JB dos anos 90, era uma maravilha. E tem algumas coisas que eu me lembro com grande satisfação, como as campanhas pela iluminação do morro Dois Irmãos e de se baptizar o aeroporto internacional do Rio de Janeiro com o nome de Tom Jobim. Claro, não é todas as vezes que eu olho para o morro e penso nisso, mas acho algo legal que eu fiz (risos). Eu tinha muita liberdade no JB para ter opinião, inclusive sobre política. Agora, por outro lado, é muito trabalhoso e difícil fazer uma coluna social como a que eu fazia. E você nunca vai saber, mas nunca, quem está tentando se aproveitar do espaço para se promover.
-Como é sua rotina hoje?
-Acordo todos os dias às sete horas em ponto. Como metade de um mamão papaia e corro na Lagoa. Volto, leio os jornais e às 11h faço um aula de uma hora de ginástica. Tomo banho, almoço e escrevo. Saio no máximo duas vezes por semana, para jantar fora. E volto para casa imediatamente.
-Nenhuma saudade da época em que você trabalhava na noite carioca, recebendo os famosos no Hippopotamus?
-Mas nem pensar! (risos) Outro dia eu estava saindo do jantar e passamos em frente à Praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, um lugar agitado, repleto de jovens, e pensei quanto precisariam me dar para eu entrar em naquela boate. Cinco mil dólares? Não, não entrava. Dez mil? Hum, talvez entrasse, mas não ficaria mais que vinte minutos. Fiquei ali, fazendo estas contas.(risos)
-Apesar de ‘Quase Tudo’ ser um livro de memórias, ele não cai no saudosismo. E o Brasil vive uma onda nostálgica – a série sobre os anos dourados de Juscelino Kubitschek na TV Globo, o documentário sobre Vinícius de Morais...
-Está se vendo isso, não? As pessoas têm uma certa tendência em achar o passado melhor do que o presente, mas este não é o meu caso. Sabe quando eu fui mais feliz na minha vida? Agora! “Quase Tudo” foi uma ideia do Millôr Fernandes, que adorei, já que a editora não gostou de meu título, que seria “Por Enquanto”. Mas o cerne é o mesmo, ou seja, de que nada acabou.
-Como mostra o fim do livro, no encontro especial com um misterioso homem de Cuba, no Café de Buci, em Paris, com quem você vive um romance-relâmpago...
-E aquilo foi incrível. E aconteceu. E aconteceu comigo. E há alguns poucos meses. Eu não conseguia acabar o livro de jeito nenhum. Não queria terminar dizendo que vivo uma vida tranquila, em casa, escrevendo, que quase não saio e que estou muito bem assim. Não! Peguei então um avião e achei que longe do Rio poderia me vir uma ideia melhor. Mas o que me veio foi muito mais do que uma inspiração, foi um acontecimento, mais um! (risos).
-A biografia que um jornalista brasileiro escreveu sobre seu segundo marido, António Maria, acaba de ser reeditada por conta do sucesso de ‘Quase Tudo’. Nela ele conta o episódio de um aborto que você teria feito depois do fim da relação com Maria, quando você deixou o jornalista. Isso a chateou?
-Olha, eu soube disso. Ouvi dizer. Não li o livro dele e nem vou ler. Não fiquei chateada, não vou polemizar. Minha vida foi pautada pela elegância, e ela está toda contada em meu livro.
ENTREVISTA/Mario Vargas Llosa
A conversa com Mario Vargas Llosa foi publicada na revista semanal portuguesa 'Sábado' na última semana de dezembro. Aqui embaixo vai uma versão mais ou menos'abrasileirada' da entrevista.
MARIO VARGAS LLOSA
É peruano e tem nacionalidade espanhola - passa grande parte do tempo em Madrid. É escritor e também político - em 1990 candidatou-se à presidência do Peru, mas perdeu para Alberto Fujimori. Tem 69 anos e três filhos.
"Todos Temos Os Nossos Demônios"
Eduardo Graça, de Nova Iorque - Eterno candidato ao Prêmio Nobel de Literatura, Mario Vargas Llosa foi um dos participantes do Rolex and Mentor Protégé Arts Initiative, um incrementado programa de apoio às artes que teve sua noite de gala em Manhattan. Durante um ano, foi o mentor de um jovem escritor colombiano: Antonio García Ángel, 38 anos mais jovem do que ele, às voltas com seu primeiro romance. Um dos ícones do liberalismo na América Latina, Vargas Llosa conversou com a SÁBADO no Salão Verde do Teatro Estadual de Nova Iorque, dentro do Linclon Center. Confortavelmente instalado em uma cadeira de veludo, o escritor falou sobre o nome romance que acaba de escrever, o regresso de Fujimori à América do Sul e aquele que considera ser o maior problema de nossos tempos: a intolerância religiosa. "O que acontece hoje no Oriente Médio é muito, mas muito similiar com o que se viu em Canudos, no sertão baiano", diz o autor de "A Guerra do Fim do Mundo".
-O senhor passou o último ano trabalhando com um jovem escritor, às voltas com a publicação de seu segundo romance. Como o senhor se saiu no papel de tutor?
-Eu juro que me policiei para não interferir muito no ato íntimo de escrever do António. Sei que cada um de nós tem suas próprias manias, medos e demónios. Depois que ele me mostrava um capítulo, oferecia-lhe minha opinião, algumas sugestões, conversávamos sobre o tipo de problema que ele estava enfrentando em determinada etapa da criação. Mas sempre tinha em mente que o importante era ele descobrir o tipo de escritor que ele gostava de ser. E nós fomos descobrindo juntos que este escritor é bem diferente do que eu sou. Ainda bem! (risos)
-E que tipo de escritor o senhor é?
-Hum...Isso é mais bem observado por quem está de fora. Acho que pouquíssimos escritores tiveram uma ideia clara de que tipo de artista seriam quando estavam começando. É algo que se descobre escrevendo, publicando, enfrentando o mundo.
-E qual foi a maior surpresa neste trabalho a quatro mãos?
-O António me mostrou o projecto que tinha para um romance e eu o achei engraçado e inteligente. Mas o fantástico é que, neste ano em que trabalhamos juntos, ele mudou tudo. Aquele que seria um personagem pequeno na trama, por exemplo, se transformou no protagonista.
-E o senhor diria que também aprendeu com o António?
-Eu aprendi sim. Fiquei absolutamente fascinado, por exemplo, pela maneira como ele foi criando a história dele. E tive a oportunidade de observar como um outro escritor ia traçando, passo a passo, sua narrativa. E nossas conversas, nossas divergências de opinião ou entusiasmo comum sobre diferentes autores, se impregnaram em nosso trabalho.
-O senhor teve a oportunidade, quando jovem, de contar com um mestre?
-Faulkner! William Faulkner! (risos). Se eu pudesse, ele teria sido meu mestre. Mas acho que aprendi muito lendo seus livros. Eu li todo Faulkner acompanhado de um pedaço de papel e um lápis, fascinado com suas construções, com seu poder de invenção, sua noção de tempo, sua capacidade de criar atmosferas e de apresentar seu ponto de vista de uma forma exacta. Ah, como teria sido fantástico! Ou não. Pois quem sabe eu ficaria completamente paralisado pela presença do mestre? (risos)
-E o que o senhor tem escrito nos últimos tempos?
-Acabei de terminar um romance, que tem o título provisório de “Travessuras da Menina http://www.blogger.com/img/gl.bold.gifMá”, e o que posso adiantar é que se trata de uma história de amor. Um caso amoroso que dura décadas, começa em Lima nos anos 50, passa pela Paris dos 60, a Londres dos 70 e Madrid dos 80.
-Pelo roteiro dá para perceber que o livro tem um quê de autobiografia...
-Não! (risos) Apenas no cenário, porque de fato vivi nestas cidades naqueles períodos, mas o romance, que é o cerne do livro, é completamente fictício.
-António é colombiano, o senhor é peruano. Violência e miséria são características das duas sociedades andinas. Fico cá a pensar como se davam as suas conversas sobre a América Latina...
-Você pode imaginar, pois nós não vivemos uma situação lá muito brilhante, não é? Existe apenas um aspecto que preciso destacar sempre, e com voz alta: nós temos muito menos ditadores do que tivemos no passado. E este é um avanço importantíssimo. Por outro lado, recentemente há um aumento enorme do populismo no continente, muitas vezes conectado com corrupção, um obstáculo grande à democratização total do continente. Diria que falávamos o tempo todo de uma América Latina complicada, mas que não está mais em estado de desespero.
-O Peru vai eleger um novo presidente em Março e pesquisas de opinião mostram parte da população favorável ao retorno do ex-presidente Fujimori, acusado de assaltar o tesouro peruano. O senhor perdeu as eleições de 1990 para Fujimori e prometeu nunca mais voltar à politica. Como vê a aceitação popular de um homem que governou seu país como ditador?
-Não é algo que me surpreenda nem um pouco. O que me surpreende, na realidade, é o fato de menos de 50% das pessoas desejarem que ele retorne. A tradição do caudilho ainda é muito forte na América Latina. O próprio Trujillo, tema central de meu mais recente livro, “A Festa do Chibo”, era adorado na República Dominicana, apesar de toda repressão. Mas, sabe de uma coisa? Não são apenas os países do Terceiro Mundo que sucumbem a esta tentação do caudilho não. Até mesmo civilizações muito fortes se esquecem das tradições e abraçam, aqui e ali, o tipo do governo do homem forte, que poderá resolver todos os seus problemas. Basta olhar para os lados.
-Como o senhor viu a absorção da globalização nos diferentes países em que viveu?
-As experiências foram bem diversas. Eu acho que o país que entendeu melhor a globalização, que criou politicas mais adequadas para a nova realidade, e que prosperou mais, foi a Espanha. Quando penso na Espanha de hoje vejo uma das mais vibrantes e modernas democracias do globo, que se abriu economicamente e, ao mesmo tempo, se recusa a ser dependente. Já na França, houve uma resistência muito maior para se entender que o mundo mudou.
-O senhor faria uma relação desta dificuldade de aceitar a nova realidade com as recentes manifestações populares, algumas delas extremamente violentas, na França?
-Eu acho que um dos motivos fundamentais deste pandemónio é justamente o arcaísmo da sociedade francesa, que segue marginalizando milhares de imigrantes, pessoas que não têm uma possibilidade real de se integrar na sociedade.
-Mas e o aspecto religioso? Tanto na Espanha como na França está presente uma minoria religiosa, islâmica, que se sente excluída da Europa cristã...
-Este é o grandes problema de nosso tempo. E seu nome é fundamentalismo. O fanatismo religioso – seja islâmico, seja cristão – sempre cria tensões. Agora, não podemos desconsiderar que certas crenças são, por sua própria natureza, menos propensas à integração. O islamismo resiste à integração de forma intensa. Outras sociedades européias, como a holandesa e a britânica, fizeram um esforço imenso para integrar suas comunidades muçulmanas. E, como vimos, não deu certo. Infelizmente, não tenho uma receita para esta questão. Mas é sempre importante lembrar que a maioria dos imigrantes busca, sempre, a integração. E que foi um pequeno grupo de fanáticos que transformou o fundamentalismo no maior desafio do século XXI, na maior fonte de violência e de terror de nossos tempos.
-O senhor escreveu sobre o fanatismo de uma forma visceral em “A Guerra Do Fim do Mundo”, em que trata de António Conselheiro e seus seguidores em Canudos, no nordeste brasileiro, no fim do século XIX. Este é um tema que, de certa forma, o persegue?
-Ouso dizer que o que aconteceu no Brasil, no sertão baiano, é muito, mas muito similar com o que acontece agora no Oriente Médio. Um era cristão, o outro é muçulmano, mas o fundamentalismo é o mesmo. A pobreza e a ignorância são as mesmas. O messianismo é o mesmo. As raízes, meu caro, são exactamente as mesmas.
MARIO VARGAS LLOSA
É peruano e tem nacionalidade espanhola - passa grande parte do tempo em Madrid. É escritor e também político - em 1990 candidatou-se à presidência do Peru, mas perdeu para Alberto Fujimori. Tem 69 anos e três filhos.
"Todos Temos Os Nossos Demônios"
Eduardo Graça, de Nova Iorque - Eterno candidato ao Prêmio Nobel de Literatura, Mario Vargas Llosa foi um dos participantes do Rolex and Mentor Protégé Arts Initiative, um incrementado programa de apoio às artes que teve sua noite de gala em Manhattan. Durante um ano, foi o mentor de um jovem escritor colombiano: Antonio García Ángel, 38 anos mais jovem do que ele, às voltas com seu primeiro romance. Um dos ícones do liberalismo na América Latina, Vargas Llosa conversou com a SÁBADO no Salão Verde do Teatro Estadual de Nova Iorque, dentro do Linclon Center. Confortavelmente instalado em uma cadeira de veludo, o escritor falou sobre o nome romance que acaba de escrever, o regresso de Fujimori à América do Sul e aquele que considera ser o maior problema de nossos tempos: a intolerância religiosa. "O que acontece hoje no Oriente Médio é muito, mas muito similiar com o que se viu em Canudos, no sertão baiano", diz o autor de "A Guerra do Fim do Mundo".
-O senhor passou o último ano trabalhando com um jovem escritor, às voltas com a publicação de seu segundo romance. Como o senhor se saiu no papel de tutor?
-Eu juro que me policiei para não interferir muito no ato íntimo de escrever do António. Sei que cada um de nós tem suas próprias manias, medos e demónios. Depois que ele me mostrava um capítulo, oferecia-lhe minha opinião, algumas sugestões, conversávamos sobre o tipo de problema que ele estava enfrentando em determinada etapa da criação. Mas sempre tinha em mente que o importante era ele descobrir o tipo de escritor que ele gostava de ser. E nós fomos descobrindo juntos que este escritor é bem diferente do que eu sou. Ainda bem! (risos)
-E que tipo de escritor o senhor é?
-Hum...Isso é mais bem observado por quem está de fora. Acho que pouquíssimos escritores tiveram uma ideia clara de que tipo de artista seriam quando estavam começando. É algo que se descobre escrevendo, publicando, enfrentando o mundo.
-E qual foi a maior surpresa neste trabalho a quatro mãos?
-O António me mostrou o projecto que tinha para um romance e eu o achei engraçado e inteligente. Mas o fantástico é que, neste ano em que trabalhamos juntos, ele mudou tudo. Aquele que seria um personagem pequeno na trama, por exemplo, se transformou no protagonista.
-E o senhor diria que também aprendeu com o António?
-Eu aprendi sim. Fiquei absolutamente fascinado, por exemplo, pela maneira como ele foi criando a história dele. E tive a oportunidade de observar como um outro escritor ia traçando, passo a passo, sua narrativa. E nossas conversas, nossas divergências de opinião ou entusiasmo comum sobre diferentes autores, se impregnaram em nosso trabalho.
-O senhor teve a oportunidade, quando jovem, de contar com um mestre?
-Faulkner! William Faulkner! (risos). Se eu pudesse, ele teria sido meu mestre. Mas acho que aprendi muito lendo seus livros. Eu li todo Faulkner acompanhado de um pedaço de papel e um lápis, fascinado com suas construções, com seu poder de invenção, sua noção de tempo, sua capacidade de criar atmosferas e de apresentar seu ponto de vista de uma forma exacta. Ah, como teria sido fantástico! Ou não. Pois quem sabe eu ficaria completamente paralisado pela presença do mestre? (risos)
-E o que o senhor tem escrito nos últimos tempos?
-Acabei de terminar um romance, que tem o título provisório de “Travessuras da Menina http://www.blogger.com/img/gl.bold.gifMá”, e o que posso adiantar é que se trata de uma história de amor. Um caso amoroso que dura décadas, começa em Lima nos anos 50, passa pela Paris dos 60, a Londres dos 70 e Madrid dos 80.
-Pelo roteiro dá para perceber que o livro tem um quê de autobiografia...
-Não! (risos) Apenas no cenário, porque de fato vivi nestas cidades naqueles períodos, mas o romance, que é o cerne do livro, é completamente fictício.
-António é colombiano, o senhor é peruano. Violência e miséria são características das duas sociedades andinas. Fico cá a pensar como se davam as suas conversas sobre a América Latina...
-Você pode imaginar, pois nós não vivemos uma situação lá muito brilhante, não é? Existe apenas um aspecto que preciso destacar sempre, e com voz alta: nós temos muito menos ditadores do que tivemos no passado. E este é um avanço importantíssimo. Por outro lado, recentemente há um aumento enorme do populismo no continente, muitas vezes conectado com corrupção, um obstáculo grande à democratização total do continente. Diria que falávamos o tempo todo de uma América Latina complicada, mas que não está mais em estado de desespero.
-O Peru vai eleger um novo presidente em Março e pesquisas de opinião mostram parte da população favorável ao retorno do ex-presidente Fujimori, acusado de assaltar o tesouro peruano. O senhor perdeu as eleições de 1990 para Fujimori e prometeu nunca mais voltar à politica. Como vê a aceitação popular de um homem que governou seu país como ditador?
-Não é algo que me surpreenda nem um pouco. O que me surpreende, na realidade, é o fato de menos de 50% das pessoas desejarem que ele retorne. A tradição do caudilho ainda é muito forte na América Latina. O próprio Trujillo, tema central de meu mais recente livro, “A Festa do Chibo”, era adorado na República Dominicana, apesar de toda repressão. Mas, sabe de uma coisa? Não são apenas os países do Terceiro Mundo que sucumbem a esta tentação do caudilho não. Até mesmo civilizações muito fortes se esquecem das tradições e abraçam, aqui e ali, o tipo do governo do homem forte, que poderá resolver todos os seus problemas. Basta olhar para os lados.
-Como o senhor viu a absorção da globalização nos diferentes países em que viveu?
-As experiências foram bem diversas. Eu acho que o país que entendeu melhor a globalização, que criou politicas mais adequadas para a nova realidade, e que prosperou mais, foi a Espanha. Quando penso na Espanha de hoje vejo uma das mais vibrantes e modernas democracias do globo, que se abriu economicamente e, ao mesmo tempo, se recusa a ser dependente. Já na França, houve uma resistência muito maior para se entender que o mundo mudou.
-O senhor faria uma relação desta dificuldade de aceitar a nova realidade com as recentes manifestações populares, algumas delas extremamente violentas, na França?
-Eu acho que um dos motivos fundamentais deste pandemónio é justamente o arcaísmo da sociedade francesa, que segue marginalizando milhares de imigrantes, pessoas que não têm uma possibilidade real de se integrar na sociedade.
-Mas e o aspecto religioso? Tanto na Espanha como na França está presente uma minoria religiosa, islâmica, que se sente excluída da Europa cristã...
-Este é o grandes problema de nosso tempo. E seu nome é fundamentalismo. O fanatismo religioso – seja islâmico, seja cristão – sempre cria tensões. Agora, não podemos desconsiderar que certas crenças são, por sua própria natureza, menos propensas à integração. O islamismo resiste à integração de forma intensa. Outras sociedades européias, como a holandesa e a britânica, fizeram um esforço imenso para integrar suas comunidades muçulmanas. E, como vimos, não deu certo. Infelizmente, não tenho uma receita para esta questão. Mas é sempre importante lembrar que a maioria dos imigrantes busca, sempre, a integração. E que foi um pequeno grupo de fanáticos que transformou o fundamentalismo no maior desafio do século XXI, na maior fonte de violência e de terror de nossos tempos.
-O senhor escreveu sobre o fanatismo de uma forma visceral em “A Guerra Do Fim do Mundo”, em que trata de António Conselheiro e seus seguidores em Canudos, no nordeste brasileiro, no fim do século XIX. Este é um tema que, de certa forma, o persegue?
-Ouso dizer que o que aconteceu no Brasil, no sertão baiano, é muito, mas muito similar com o que acontece agora no Oriente Médio. Um era cristão, o outro é muçulmano, mas o fundamentalismo é o mesmo. A pobreza e a ignorância são as mesmas. O messianismo é o mesmo. As raízes, meu caro, são exactamente as mesmas.
Diretinho da Redação (42)
A coluna da semana é sobre esta bobagem de que o Rio tem 'vocação de cidade aberta'. Ela também pode ser lida no Direto Da Redação.
Para Ser Gay No Rio É Preciso Ser Macho
É comum ouvir de amigos cariocas que o preconceito contra homossexuais no Rio de Janeiro é obra de ficção. Que a cidade está cada vez mais aberta para o ‘gay way of life’ e em eventos como o famoso festival de música realizado no Museu de Arte Moderna (MAM) uma gente bonita, livre e sem preconceitos curte a vida como se a capital fluminense fosse a Berlim dos anos 20. Não foi exatamente o que aconteceu neste carnaval em Ipanema.
Quando o casal Hyldo, 24, e Maurílio, 23, resolveu se beijar à luz do sol da Vieira Souto, o pau comeu. Os jovens não só foram agredidos por um grupo de ‘pit boys’ como ridicularizados por policiais. De acordo com testemunhas, os militares se recusaram a reprimir os agressores e sequer anotaram seus nomes. E os civis desencorajaram os namorados a registrar a ocorrência. Para quê? Afinal, não vai dar em nada mesmo, diziam.
Pode-se argumentar que este é um caso isolado. Não é. Esta semana a jornalista Paula Autran, do Globo, acompanhou o ‘beijaço’ que reuniu na mesma Ipanema namorados de todas as preferências sexuais em um protesto contra a agressão sofrida por Hyldo e Maurílio. A repórter conta que uma pesquisa fresquinha, realizada pelo Grupo Arco-Íris em parceria com a UERJ e Universidade Cândido Mendes com homossexuais cariocas, mostra que 60% dos gays da cidade já sofreram algum tipo de agressão física apenas e tão-somente por conta de sua sexualidade. Como se trata de uma das metrópoles mais violentas do planeta, a distinção é importante – para ser gay e viver no Rio de Janeiro é preciso ser muito, mas muito macho.
Hyldo e Maurílio engrossam a triste estatística. Levaram socos e pontapés e foram agredidos verbalmente, na frente de quem tentava apenas curtir o baticum na praia mais famosa da cidade. A cena, de acordo com o deputado Carlos Minc, uma das poucas vozes interessantes da depauperada cena política carioca, depõe contra a vocação de ‘cidade aberta’ do Rio, berço da democracia morena, em que todos têm voz e vez. Balela.
O Rio da ‘barbárie homofóbica’ segue sendo a província de sempre, em que o que é considerado imoral pela maioria da população é tolerado – vá lá, até festejado - em locais como o festival de música com ingressos a R$ 100, mas condenado ao menor risco de o comportamento virar discurso. Quando isso muda? Um bom começo é denunciar o comodismo perigoso dos guetos culturais e parar de acreditar que os modernosos do MAM fazem, sozinhos, o carnaval.
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