sexta-feira, julho 28, 2006
ENTREVISTA/Michael Mann
O Valor Econômico publicou hoje minha entrevista com o sociólogo Michael Mann, que acaba de lançar no Brasil, pela Record, "O Império da Incoerência".
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O Produto Externo Bruto Americano
Por Eduardo Graça, para o Valor
28/07/2006
O sociólogo Michael Mann, 64 anos, especializado em história contemporânea pela Universidade de Oxford, é um dos nomes mais celebrados da Universidade da Califórnia. Suas análises contundentes sobre o papel dos EUA no século XXI são leitura obrigatória para quem pretende entender o que passa pela cabeça da elite cultural, financeira e militar do país. Um dos primeiros intelectuais a denunciar tanto a invasão do Afeganistão quanto a ocupação do Iraque como atos atrapalhados de um império dirigido de modo equivocado pelos que controlam o poder em Washington, ele não poderia ser mais claro: "Os EUA vão ter de sair do Iraque e do Afeganistão, derrotados".
Com três anos de atraso, a editora Record acaba de lançar no Brasil "O Império da Incoerência", uma narrativa lúcida e apaixonada sobre a ascensão dos EUA à posição de potência única no globo. O livro rendeu a Mann o prestigioso prêmio da Fundação Friedrich Ebert, de Berlim, como melhor obra de caráter político de 2003. Receberam a honraria anteriormente Richard Sennett, Vaclav Havel e Norberto Bobbio.
Na entrevista concedida ao Valor, Mann fala das recentes ações militares no Líbano, Palestina e Israel, da natureza do poder americano, da nova confluência de forças no Extremo Oriente, e se arrisca a imaginar um mundo depois da queda do império ianque.
Valor: Como o senhor analisa a ação americana na crise do Líbano?
Michael Mann: A política de unilateralismo do império americano, alicerçada no direito de invasão prévia, está se desmilingüindo. O triste é que, com ela, também se deteriora ainda mais a estabilidade do Oriente Médio. O que a invasão de Gaza e do Líbano evidencia do ponto de vista do império? Ora, a total incapacidade do governo Bush de conter Israel. Ironicamente, o fracasso e a incompetência dos neoconservadores aumentam consideravelmente os riscos de instabilidade regional na Ásia.
Valor: Então, a influência do chamado "lobby judaico" aumentou em Washington com o retorno dos republicanos ao poder?
Mann: Quem vive fora dos EUA precisa entender que, hoje em dia, nenhum partido político interessado em chegar ao poder pode se dar ao luxo de combater abertamente o lobby judaico. O motivo é simples e rasteiro: há uma imensa e rica comunidade judaica tanto em Nova York, um estado importante, quanto na Flórida, o maior dos chamados "swing states", isto é, estados que ora votam e financiam os republicanos, ora os democratas. Mas as políticas do império, neste momento, parecem condenadas a confirmar uma espécie de profecia que se alimenta de sua própria desgraça.
Valor: Pode explicar melhor este conceito?
Mann: As ações do governo americano alimentam como nunca o terrorismo internacional contra o Ocidente. Foram elas que fizeram com que a "guerra contra o terror" ficasse mais realista. Podemos sentir as conseqüências nos atentados e nas bombas, mas também, é claro, no resultado das eleições em todo o Oriente Médio. Sufrágios mais ou menos democráticos no Iraque, na Palestina, no Líbano e no Egito reafirmaram a força popular de candidatos que vou chamar aqui de "extremistas antiimperialistas", políticos essencialmente contrários ao novo império. Ao mesmo tempo, este "surpreendente retrocesso" no mundo islâmico gera um outro, inversamente proporcional, nos EUA. Estou falando da justificativa encontrada para se aprovar os métodos da "guerra contra o terror". É o "retrocesso no Oriente Médio", e sua lógica, que determinam quem são os terroristas desta guerra. No momento, o Hizbollah, o Hamas e os sunitas iraquianos, e não Israel e o próprio governo americano.
Valor: Daí a incoerência fundamental deste novo império, símbolo da desordem mundial...
Mann: Ora, estamos lidando com extremistas dos dois lados do tabuleiro. E enquanto eles continuarem se sustentando politicamente, este império continuará com seu padrão incoerente e belicoso ainda por bom tempo.
Valor: A intervenção no Afeganistão e a invasão do Iraque, inicialmente, pareciam ter fortalecido Washington, ao menos internamente...
Mann: As quedas do Talibã e de Saddam Hussein foram tarefas relativamente fáceis. Mas os republicanos esqueceram de considerar um fator vital para a sobrevivência de qualquer império: é preciso ter apoio, no território ocupado, dos "clientes locais", uma fatia da população com quem se possa contar para governar o território conquistado. Os curdos são os únicos que, talvez, poderiam assumir este papel no norte do Iraque. Mais ninguém. Por isso, o que vemos hoje é a erupção de conflitos entre facções, não apenas no Iraque, mas no Afeganistão também.
Valor: Ou seja, exerce-se o poder, mas não a autoridade. Mas apesar disso há toda a pressão contra o Irã e as ameaças de que os EUA não aceitarão um estado xiita com armas nucleares.
Mann: Se o próximo passo for invadir o Irã, os resultados serão ainda piores para o império. Ao mesmo tempo, é importante lembrar que os EUA ainda não se voltaram novamente para a península coreana por causa dos riscos de destruição que um ataque de Kim Jong II causaria a Seul. Tanto a Coréia do Norte quanto o Irã têm sido estimulados nos últimos anos a desenvolver seus arsenais nucleares. Inicialmente, só para combater a política agressiva dos neoconservadores. Depois, quando os governos desses países perceberam a fragilidade do discurso republicano.
Valor: Mas há um inegável desgaste do governo Bush perante a opinião pública. Até que ponto novas ações militares no Oriente Médio podem modificar o cenário político no centro do império?
Mann: Acredito que a situação no Iraque e no Afeganistão não deve melhorar do ponto de vista do império. Os EUA vão se render, e este ato será visto pela maioria dos americanos como uma pesada derrota. É claro, precisamos levar em conta que o novo império resolveu intervir em uma região especialmente complexa. Historicamente, tanto o império britânico quanto o francês tiveram mais dificuldade em estabelecer seu domínio em colônias ocupadas por uma população majoritariamente muçulmana. O Islã foi se transformando, durante todo o século XX, em uma religião cada vez mais anti-imperialista. Há uma impossibilidade clara de haver qualquer apoio aos americanos, aos invasores, a partir da lógica do islamismo contemporâneo. Quem der sustentação aos EUA, como estamos vendo, corre o risco de perder o apoio das elites e também da população local.
Valor: Foi a partir desse cenário de conflitos que o senhor decidiu escrever "O Império da Incoerência"?
Mann: Sim, comecei a escrever "O Império da Incoerência" alarmado e enojado pelas ações da política externa de meus dois países, EUA e Inglaterra, já que tenho dupla cidadania. Ao estudar o mundo contemporâneo, mas também com base em minhas pesquisas sobre os impérios do passado, não foi difícil para mim prever o desastre no Iraque e o beco sem saída a que chegamos no Afeganistão. E, sabe de uma coisa? Não estou nem um pouco surpreso com o acerto que agora vejo em minhas predições.
Valor: O senhor diria que esse império incoerente foi de fato imaginado pelos ideólogos neoconservadores?
Mann: Quando a União Soviética desmoronou, boa parte da elite americana entendeu este fato histórico como uma "carta branca" para intervir em todo o mundo, da maneira como Washington bem entendesse. Eles realmente acreditaram que suas intervenções poderiam, ao mesmo tempo, consolidar os interesses econômicos dos EUA e tornar o mundo mais pacífico, menos turbulento e até mais democrático. De fato, todos os impérios procuram aproximar seus próprios interesses do que seriam os ideais de benevolência para todas as nações do globo. No caso do império americano, os republicanos criaram nos anos 1990 um mito para si próprios. O de que Ronald Reagan, e não o povo russo, havia destruído a URSS. Este é o que denomino o "mito fundador" dos neoconservadores. É olhando para esse mito que eles exigem que os EUA intervenham, unilateralmente, de maneira prévia e com o uso militar contra determinados países que, inicialmente, foram denominados de "Estados párias" e depois "eixo do mal". E a oportunidade que eles estavam esperando apareceu com o 11 de Setembro. Os ataques eram o evento perfeito para que finalmente conquistassem apoio maciço da população. A estratégia imperialista estava revelada: intervenções militares, de caráter "preventivo", justificadas pela guerra contra o terror.
Valor: O senhor acha possível estabelecer um paralelo entre o império incoerente e seus similares do passado?
Mann: O império americano é completamente diferente dos que conhecemos no passado. Desde 1912, quando os filipinos conseguiram alcançar um nível substancial de autonomia política, os EUA não possuem colônia alguma. É exatamente por isso que a maioria dos americanos nega a existência de um império. Mas é absolutamente claro que estamos lidando com o que alguns historiadores chamam de um "império militar informal", semelhante ao que os britânicos impuseram na América Latina na maior parte do século XIX.
Valor: Em que países não são anexados, mas perdem o direito real de se governarem...
Mann: Os americanos não impõem sua lei em países estrangeiros, mas exercem um imenso poder sobre suas "pseudocolônias", pelo simples fato de possuírem uma capacidade militar única no mundo. É ela que lhes permite interferir - abertamente ou de forma mais subterrânea - no dia-a-dia dessas nações. A outra faceta desse "império informal", é claro, são as inúmeras formas de coerção econômica desenvolvidas no século XX, a partir das políticas cuidadosamente denominadas de "programas de ajuste estrutural".
Valor: Mas as resistências ao chamado Consenso de Washington têm aumentado, especialmente na América Latina...
Mann: De fato, desde 1995 a resistência dos países de classe média, como o Brasil (no sentido de que não são nem países ricos, nem países pobres), contra a maneira pela qual o império exerce o poderio econômico no globo, é cada vez maior. Os programas de auxílio estruturais são menos numerosos e a OMC vive um impasse permanente. E neste exato momento os EUA se vêem frente a uma escolha cada vez mais clara. Estão obrigados a estabelecer um compromisso possível com opositores moderados do império, como Lula, única e exclusivamente pelo medo de que a intransigência de oponentes populistas, como Hugo Chávez, ganhe ainda mais combustível.
Valor: Vivemos, então, os dias da decadência do império americano?
Mann: Os dias desse império militar informal estão contados, mas ninguém, neste momento, pode se contrapor aos EUA. A ONU não pode. Muito menos a Europa. E a Rússia e a China não demonstram muito interesse, mesmo unidas, em contrabalançar o poder ianque. Há uma razão prática, é claro: para tentarem chegar perto do poder militar americano, Rússia e China teriam de investir muito mais no aumento de seu poderio militar do que fazem hoje. E seria algo proibitivo, a meu ver, economicamente, para esses dois gigantes. E a Europa parece manter-se em seu discurso pacífico. Ou seja, militarmente, os EUA são imbatíveis, exceto pelos guerrilheiros dispostos a morrer por sua causa. Mas, até agora, o impacto maior que eles podem causar é contribuir no absurdo índice de violência e mortes ao nosso redor. E, em termos de poder econômico, o império também é formidável. Hoje, os EUA representam 28% de tudo o que se produz no mundo, contra 22% em 1970.
Valor: Mas há o impressionante crescimento econômico da China e a nova realidade do Pacto de Xangai, que já conta com Pequim e Moscou, e insinua movimentos em direção a Teerã...
Mann: Apesar de isso ser impossível no momento, não há solução a longo prazo para a China e para a Índia continuarem crescendo sem aumentar o peso de sua oposição ao império. A não ser que decidam de fato se enfrentar abertamente, para decidir quem será a grande potência asiática. De um modo ou de outro, este será o fim da era do império informal americano, o epílogo de nossa era.
Valor: O senhor acredita que veremos a ascensão de um novo império, vindo da Ásia?
Mann: A queda do império americano representará o fim da opção histórica imperialista. O globo será comandado por princípios de ação multilateral. Mas isso ainda demora. Até lá, o império incoerente continuará oferecendo ao mundo mais guerra ou uma paz desordenada, centrada em noções equivocadas de ordem e democracia.
quarta-feira, julho 26, 2006
Diretinho da Redação (48)
O texto da semana já está na coluna do DR.
Publicada em: 26/07/2006
O BASTA DA MÍDIA AMERICANA
Eduardo Graça
Já é possível dizer que a imprensa norte-americana está cobrindo a guerra no Líbano de modo diverso ao que relatou as invasões do Afeganistão e do Iraque. Aqui e acolá os repórteres caem no cacoete de classificar o avanço das tropas israelenses no sul do Líbano como ‘o mais novo capítulo da guerra contra o terror’. Mas, com exceção da Fox, vê-se uma redução drástica das terríveis bravatas anti-islâmicas. Analistas dos mais diversos campos políticos dizem que se trata de uma espécie de ‘basta’, uma reação à onda de nacionalismo cego que tomou conta da mídia após os atentados às Torres Gêmeas.
Ajuda muito, é claro, a falta de credibilidade interna do governo republicano e o anúncio de que mais soldados americanos irão partir para o Iraque – onde nos últimos dois meses 100 pessoas foram assassinadas por dia – a fim de conter o que já começa a ser reconhecido por aqui como um ‘estado de guerra civil’. O resultado é que, por aqui, na cobertura do conflito entre o Hezbollah e Israel, até mesmo a televisão aberta resolveu perseguir esta aparentemente banal regra do jornalismo e saiu a campo para, imaginem só, ‘ouvir os dois lados’ da história.
A reportagem mais impressionante até agora ficou por conta do ‘Nightline’, o programa de reportagens especiais da ABC. Decidiu-se que o norte da cobertura seria mostrar como cada bombardeio israelense aumenta exponencialmente a popularidade do Hezbollah, para muito além da comunidade xiita do país. E para ilustrar a tese a equipe de repórteres espalhado pelo Oriente Médio dedicou o programa desta segunda-feira à maneira como a guerra está sendo percebidas pelas crianças dos dois países.
Em Elon, no norte de Israel, a poucos quilômetros da fronteira com o Líbano, 40 meninos e meninas que lembram muito os adolescentes norte-americanos passam o dia em abrigos anti-aéreos construídos com material especial, que resistiria aos mísseis do Hezbollah. Sem aulas, sem escola, eles brincam o dia todo entre quatro paredes, só diminuindo o volume da algazarra para escutarem, atentos, o barulho de bombas e tiros. Para eles, lá fora, é mais uma guerra que em algum momento vai acabar, com a vitória de seus soldados e o retorno a uma quase-normalidade. Foi assim quando seus pais eram, eles mesmos, crianças, nas guerras dos anos 80, 70 e 60, dizem.
Mas ainda mais impressionante é a visita dos repórteres a um dos abrigos construídos pelo Hezbollah no subsolo de uma espécie de shopping center, também erguido pelo grupo terrorista, localizado no bairro xiita de Beirute. Lá, as crianças podem brincar enquanto as ruas ao redor são severamente bombardeadas pelas Forças Armadas israelenses. A sensação de estranhamento é maior para a audiência americana: os jovens não são ocidentalizados. Mas já falam inglês.
Uma menina de 9 anos, mas com feições de alguém muito mais vivida, foi a única a convidar o repórter da ABC para sentar em sua tenda estendida no chão, ao lado do escorregador. Encarando a câmera, disse que suas esperanças estavam todas com o Hezbollah. E voltou a brincar. Insatisfeito, o repórter procurou desvendar ali mesmo os mistérios da atração do fundamentalismo religioso. E voltou a abordá-la. A resposta da pequena cidadã libanesa à questão mais simples da noite – ‘mas por que você torce pelos terroristas do Hezbollah?’ – veio com objetividade desconcertante: “Porque eles não querem nos matar”. Silêncio. E antes que o repórter fizesse novo questionamento ela quase se corrigiu:”Porque eles não querem ME matar”.
A quem interessar possa, a imprensa americana não está cobrindo a invasão do Líbano travestida da vanguarda do neo-iluminismo cristão no atrasado mundo muçulmano. Já não era sem tempo.
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