sexta-feira, janeiro 27, 2006

No Valor Econômico

Saiu no caderno deste fim de semana do Valor minha conversa com o diretor norte-americano Bob Wilson e a atriz francesa Isabelle Huppert. Olhem só:

Espetáculo em Preto-e-Branco

Inspirado em Virginia Woolf, nova montagem dirigida por Bob Wilson, "Orlando" estréia nos EUA e virá ao Brasil em 2007

Nova Iorque, teatro da City University (CUNY). Todos prendem a respiração quando o vídeo começa. No palco, Isabelle Huppert. E não muito mais. Pela primeira vez no continente americano o público confere trechos da encenação de “Orlando”, inspirada no livro de Virginia Woolf, apresentada na França em 1994. A peça foi um marco na incomparável trajetória do diretor norte-americano Robert (Bob) Wilson, radicado há muitos anos na Europa e que veio, com Huppert à tiracolo, prestigiar o evento e anunciar, em primeira mão, a remontagem do espetáculo, que deve excursionar pelos Estados Unidos em 2006 e chegar aos palcos brasileiros no ano seguinte.

Terno cinza, mãos escondidas nos bolsos, Wilson sorri sozinho ao observar a francesa recitando - vá lá, cantando - as palavras de Woolf. Depois de reclamarem do trânsito infernal da cidade – Huppert, 52 anos, atrasou 25 minutos contados na ponta do relógio enquanto Wilson, 64, a esperava pacientemente – os dois deixaram a modéstia de lado para se deslumbrarem com a gestação, em “Orlando”, de uma nova linguagem, algo que mais tarde seria identificado por críticos embasbacados como ‘verborragia huppertiana’. É que a atriz francesa interpretava “Orlando” em altíssima velocidade, entre eventuais pausas para respirar.

Wilson e Huppert se conheceram nos anos 70, quando o diretor americano era o ‘talk of the town’ de Paris, onde acabara de apresentar seu “O Olhar do Surdo”, uma espécie de ópera do silêncio, imaginada a partir de sua convivência com Raymond Andrews, um rapaz surdo-mudo que Wilson adotara. Críticos decidiram que o teatro do mais europeu dos diretores norte-americanos representava a vitória da ‘comunicação visual’ sobre a palavra. O tal do Teatro-Imagem. Da platéia, o escritor francês Louis Aragon (1897-1982) ia além: “Bob Wilson conseguiu fazer o que nós, criadores do surrealismo, imaginamos que poderia ser realizado. Ou melhor, ele ultrapassou nossos sonhos”.

Naquele momento, a Europa de Pina Bausch, Peter Brook e Peter Stein e do Théâtre du Soleil de Mnouchkine e a Nova Iorque do Living Theatre seriam os palcos per se do experimentalismo anunciado por Wilson. Questões como a apropriação de novas linguagens, o estudo do gesto, e a possibilidade da criação coletiva no mundo multifacetado que se seguiu ao desbunde criativo dos ‘sixties’ estavam na pauta do dia e, no Brasil, tocaram com maior e menor intensidade criadores como Antunes Filho, Zé Celso e Gerald Thomas. “Imagine, quando eu conheci a Isabelle nosso papo girava em torno da idéia que eu tinha de montar um espetáculo que duraria sete dias (risos). Pois é, ele não aconteceu, mas já pensávamos em fazer algo juntos. Primeiro seria a ‘Fedra’, de Racine, depois surgiram outras opções até que cheguei, duas décadas mais tarde, a Virginia Woolf. E Isabelle topou. Eu conseguia ver claramente nela o menino e, obviamente, a mulher do século XX, imaginados por Woolf. E o talento de Isabelle era perfeito para a peça”, conta Wilson.

Os artistas se reuniram em Nova Iorque graças à parceria entre o governo francês e a CUNY dentro da série “Carta Branca: Diálogos Franco-Americanos”. E a temporada parisiense de 1993-1994 esteve sempre presente no animado bate-papo. Huppert, que na época co-editava a mítica revista “Cahiers du Cinema” e tinha em Wilson um de seus interlocutores mais freqüentes, conta que o que a atraiu mais no projeto foi justamente a ‘aparente rigidez’ do teatro do diretor texano. “O interessante é que foi justamente a disciplina matemática do Bob que me permitiu voar. É, voar! As regras do Bob não têm muitas nuances, mas, ali, com ele no palco, nunca me senti tão próxima de mim mesmo”, revela a atriz.

Uma década depois do sucesso de público e crítica, Wilson gosta de pensar em ‘Orlando’ como aquele espetáculo em que ele queria muito contar com um ator que não ‘interpretasse’. “Já me explico. Eu queria que o público ‘lesse’ os personagens todos de Virginia Woolf através daquela atriz. Nosso papel seria o de ajudar o público a viajar através e dentro dos personagens imaginados por Woolf, que atravessassem conosco os séculos e as transformações de gênero daquele ser humano”, diz o encenador. Ele contou com três atrizes para realizar o feito: Jutta Lampe, Miranda Richardson e Isabelle Huppert. “E elas me proporcionaram lidar com três Orlandos completamente diversos. Foi muito divertido ver como cada uma se encaixava naquela idéia que eu tinha de Orlando”, lembra.

“Orlando”, curiosamente, foge de uma das mais famosas características do teatro de Wilson – a sua peculiar noção do ‘tempo’ teatral. Espetáculos como “A Vida e A Época de Stalin” chegaram a ter 12 horas de duração. “Aqui, eu decidi condensar o tempo, já que a narrativa atravessa séculos”, diz. “É, mas em nenhum momento você sacrificou a transmissão da informação”, interrompe Huppert. A atriz acha que esta é uma das razões pela qual esta parceria dá tão certo: “Quando penso no que faço, em atuar, cada vez mais acho que está muito mais próximo do ato de se transmitir informação. Acho que na maioria das vezes os atores não acreditam na história que estão transmitindo. E muito menos no passado daquela história. Eles querem adicionar coisas, trazer experiências que casem com o que já está ali, com o que já é. Eu acredito cada vez mais que a boa atuação tem muito mais a ver com suprimir do que com adicionar. Ora, em “Orlando”, você pode sugerir todos os personagens, o menino, a mulher, sem grandes modificações exteriores. Isso pode soar abstrato, mas eu juro, é justamente o oposto. Vou além: esta é a única possibilidade de se transformar o teatro em algo real. E para mim teatro só interessa quando é real”.

O realismo de Wilson a que Huppert se refere é conquistado às custas de ensaios exaustivos. “Sim, mas também muito divertidos. Bob exige disciplina total, mas estamos falando da disciplina de se encontrar aquela coreografia exata dos movimentos, você compreende? Porque o Bob busca a precisão. Isso pode levar as pessoas a pensar que há algum tipo de limitação. Não, não há! Bob trabalha com o paradoxo da liberdade infinita e do confinamento infinito. Nós trabalhamos separadamente a linguagem corporal, cada gesto”, diz. “Os olhos, os olhos!”, agora é a vez de Wilson interromper. Em “Orlando”, cada expressão de olhar de Huppert foi minuciosamente estudada pelo diretor. “É difícil explicar este estado de consciência inconsciente que nasce no teatro do Bob. É como tentar explicar quem é você. Eu falo muito rapidamente em cena, e ele acentuou isso em ‘Orlando’. É claro que eu sei que o público se perde aqui e acolá, deixa de entender uma ou outra palavra, mas ali criamos, de fato, uma ‘escultura da palavra’, em que o espectador apreende pela entonação da minha voz”, explica Huppert.

O diretor jura que é exatamente este estranhamento que o atrai no fazer teatral. “É que eu tenho um enorme problema com pessoas que vão aos espetáculos artísticos e, a cada cinco minutos, se entreolham e perguntam: você entendeu? Conseguiu pegar a idéia do que o artista queria passar? Parem! Parem! Não tem problema se você se perdeu. Nós, seres humanos, espectadores, não precisamos entender todas as sacadas. O que eu mais amei em nosso ‘Orlando” foi que a gente se perdeu no livro. E a audiência se perdeu junto, se entregou. Isso é que foi genial”, diz Wilson. Neste momento da conversa, visivelmente empolgado, encara a atriz francesa com o canto dos olhos e confessa: “Sabe que volta e meia me perguntam se há alguma diferença em se trabalhar com artistas de Hollwood? Eu digo que é muito melhor! Meu teatro é muito parecido com os filmes. Há marcas rígidas no palco, a luz que vem de trás, o zoom da câmera. O olhar vagando no palco que, de repente, foca-se em algum ponto específico”.

La Huppert sorri com gosto, dando a deixa para Wilson voltar a falar do que mais gosta. Do gesto: “Veja bem, o gesto e a coreografia, sozinhos, são chatíssimos, né? É como uma moldura vazia. São seus sentimentos, a maneira com que você os expressa, que importam. Eles são o conteúdo desta moldura. Meu teatro é físico. Ele precisa ser voluntário, essencialmente externo. Ele vem de fora. É gesto e mecânica. Olha, sabe que em 40 anos, eu nunca falei para um ator como ele deveria pensar ou falar no palco?”. À declaração segue-se novo riso. Wilson diverte Huppert. “Mas é a mais pura verdade, eles vão tomando conta do personagem, é algo muito pessoal. A forma é chatérrima, sempre. Pense nos 500 bailarinos que fazem ‘Giselle” todos os anos. Apenas um ou dois serão geniais e vão se destacar. Você vê algo que não estava lá. E uma coisa fortíssima sobre a Isabelle é que ela não tem medo de ser fria”, dispara Wilson.

Agora a atriz se esconde por um segundo nas vastas mangas da camisa negra. Pode-se ouvir um ‘ai, meu Deus!” charmoso antes que ela siga animada: “Ás vezes me perguntam se eu encaro certos convites que recebo como um desafio. Mas que bobagem! Não vejo nada em termos de risco. Não tenho a menor ambição de provocar os outros. Eu simplesmente vou lá e faço. Se quisesse riscos seria piloto de avião e não atriz (risos)”. Mas é interrompida pelo diretor, interessado em fazer com que sua nova platéia entenda – ou melhor, vivencie – o que é atuar como Isabelle Huppert. “É como se...olha, uma vez eu estava trabalhando com uma cantora lírica, que iria fazer a ‘Brunilda” e disse para ela que deveria deixar o corpo congelar, mas a música precisava seguir quente, fervendo. Esta capacidade de carregar os dois extremos dentro de si é que é fascinante. A primeira vez em que me encontrei com a Marlene Dietrich, na França, em 1971, eu disse, maravilhado: ‘Mas você é tão fria!”. E ela retrucou, curta e exata: “É, mas preste atenção na minha voz!”. É isso! Isabelle é quente, mas sabe ser fria”, encerra a discussão.

Ou quase. “Engraçado você dizer isso pois nunca me vejo depois de uma atuação. Hoje foi uma exceção com o vídeo. Simplesmente me recuso. Atuar já é algo tão voltado para si mesmo, para explorar o seu eu, que, se ainda precisar me ver depois é um pouco demais. Haja ego!(risos)”, diz Huppert. A atriz e o diretor concordam, no entanto, quanto ao alto teor poético das encenações de Wilson. “Mas, Bob, você sabe que uma das coisas em que eu mais peno é como atuar poeticamente em filmes? Como levar a poesia para o cinema? Um diretor de cinema se vê como um poeta? Hoje em dia? Difícil, não? Quando fizemos “Orlando” eu não pensava conscientemente – ‘Isabelle, você tem que se encaixar nesta poesia’. Não. Mas um de meus desafios mais nítidos foi o de descobrir que poesia era aquela, viva, ali, no palco. E...bem, não era poesia coisa nenhuma!(risos)Era algo que libertava a minha imaginação e buscava, ao mesmo tempo, captar o inconsciente do público. Era o público que me dizia quando eu deveria rir, quando tinha que chorar. E isso, para mim, é Virginia Woolf”, lembra Huppert.

Bob Wilson ressalta que, como o texto da escritora britânica já era tão rico em imagens, ele reduziu o número de elementos cênicos ao mínimo: “A linguagem era tão rica que decidi trabalhar apenas com linhas verticais, inventei uma arquitetura bem básica para o palco. Na segunda parte tínhamos uma árvore, ou melhor, um tronco, a idéia de uma árvore, que é quando se dá a transformação de gênero. E a parte final era toda branca. Taí. Esta é melhor definição que já cunhei para um espetáculo meu, inspirado em Isabelle: “Orlando” é meu espetáculo em preto-e-branco”.

Ma-fé ou Incompetência?

Por sorte minha, não li o tal ‘manual do terrorista contemporâneo’ publicado pela Abril, mas vejam o que fala o Hamilton Octavio de Souza, na Caros Amigos de janeiro:

Clara Charf, viúva do ex-deputado Carlos Marighela, líder da ANL morto pela ditadura militar, moveu ação contra a Editora Abril para que retire de circulação e corrija o livro Os 10 Maiores Terroristas do Mundo, pois o ex-guerrilheiro aparece como um dos dez, ao lado de terroristas como Bin Laden. O livro faz uma confusão danada entre luta armada, que é um direito de o povo se defender contra regimes de opressão, e as ações de terrorismo inconseqüente. Má-fé ou incompetência?

quarta-feira, janeiro 25, 2006

Diretinho da Redação (40)


Ei, Você Aí, Me Dá Um Dinheiro Aí!

Interrompi minhas férias no Rio para ler, com calma, a matéria de capa que a “Carta Capital” – da qual me orgulho de ser colaborador bissexto em Nova Iorque – publicou na semana passada com o ministro da Cultura, Gilberto Gil. Tanto o texto de Ana Paula Sousa quanto a entrevista dada a Pedro Alexandre Sanches são leituras obrigatórias para se entender o ‘melê’ em que a inteligência brasileira se meteu. Historicamente dependente do governo, parte da chamada ‘elite cultural’ (de pensadores? de criadores? de produtores?) chia feio desde que os companheiros chegaram ao poder, lá se vão quatro anos.

O motivo? As novas diretrizes do patrocínio cultural público, que vêm saindo das estatais (o ministério sempre teve um orçamento irrisório, duplicado graças aos esforços do ministro do Partido Verde) e chegando a novos bolsos, a partir de regras bem diversas das que foram estabelecidas nos governos Itamar e FHC. Fala-se em stalisnismo, totalitarismo e dirigismo político. Nas rodas de Ipanema, gente que se beneficia do mecenato público desde os tempos da Embrafilme acusa o governo Lula de um descaso especial com os chamados ‘nomes de apelo popular’. É natural que em um país sitiado pela cultura da celebridade, em que o período entre o Ano Novo e o Carnaval aparece no calendário como um gigantesco intervalo comercial dedicado ao Big Brother Brasil, reine a confusão entre o que é, de fato, popular – do Aurélio: ‘do, ou próprio do povo’; ‘democrático’ - e o que recebe atenção maior dos meios de comunicação de massa.

Em 2003-2004 participei indiretamente do que o ministro Gil classificou na entrevista à “Carta Capital” de ‘processo de criação de políticas públicas de fomento cultural mais abertas e democráticas’. O Programa Petrobras Cultural (PPC), que, como um dos assessores de imprensa responsáveis então pela área de Patrocínio Cultural da maior empresa do Brasil, acompanhei do nascedouro, é um claro exemplo de êxito desta nova ação pública de apoio à cultura brasileira. O balcão foi substituído por uma iniciativa séria, com as ações de mecenato da Petrobras se pautando por uma política cultural de alcance social e de nítida afirmação da identidade brasileira. Esta chegou ao público recentemente em filmes como o delicado “Cinema, Aspirinas e Urubus”, de Marcelo Gomes, espetáculos como os de Ivaldo Bertazzo, o indispensável Projeto Pixinguinha, espaço fundamental para o surgimento de novos músicos, e em livros como o que contou, pela primeira vez, aos brasileiros, a saga dos imigrantes poloneses no Paraná.

Mas, então, por que tanta chiadeira? E de artistas do gabarito de um Ferreira Gullar e de um Caetano Veloso, nomes que se confundem, para nossa alegria, com a própria idéia do ‘ser brasileiro’? Distorções existem, é claro. Nunca entendi bem por que motivo o PPC conta com consultores permanentes nas áreas de Cinema, Música e Patrimônio, mas nenhum especialista em Artes Cênicas. Há, por sinal, um consenso de que a produção teatral foi a mais afetada pela gestão petista. Pouco se fala ou se escreve, no entanto, sobre a diminuição do patrocínio das grandes corporações e empresas privadas à cultura em geral e ao teatro em particular.

Gilberto Gil disse a meu colega Pedro Alexandre que em sua gestão há mesmo uma ‘discriminação positiva’. Ele reconhece que nestes quatro anos tentou focar o patrocínio público em áreas deixadas de lado pelos governos anteriores: “estabelecemos um conflito com a chamada elite cultural com uma intensidade que não existia antes, pois estes tinham acesso a recursos que estão sendo redistribuídos”. Pois é.

A entrevista com Gil dá muito o que pensar. E contém ao menos uma epifania. Ela se dá quando o ministro da Cultura, tocado por algum anjo subversivo, destes que só descem à Terra nos momentos de crise mais intensa, assume que faz parte da ‘classe dominante’. A elite brasileira – política, cultural, econômica – mesmo quando sai em bloco exigindo o corte de cabeças, marchando desesperada ao som de ‘ei, você aí, me dá um dinheiro aí!”, receia vestir a carapuça. Devem ter lá os seus motivos.