sábado, julho 02, 2005

Estados Imaginados

Eu o conheci cinco anos atrás. Naquela época ele também morava aqui no Brooklyn. Hoje ele vive no exílio, em sua Paris natal. Já naquela época, o fotógrafo Eric Baudelaire se equilibrava na ponte aérea Nova Iorque-Pirlimpimpim. Mas não vamos misturar lé com cré. Meu amigo Ricola não leu Monteiro Lobato, mas devorou Kafka a ponto de se inspirar em seus castelos invisíveis para criar, jutamente com seu amigo de infancia, o professor do Kings College Dov Lynch, o fantástico projeto “Imagined States”, que em setembro vira exposição e livro de luxo para inglês e francês verem.

Neste fim de semana escrevi para o Valor Econômico uma reportagem sobre o tema central do projeto artístico e político da dupla – os países do chamado “Quarto Mundo”, que, embora tenham proclamado sua independência, possuam poderes executivos respeitados por milhares de almas, não são reconhecidos pela comunidade internacional. Vivem num limbo estranhíssimo, ‘como se estivessem ao mesmo tempo no século XIX e no XXI’, nas palavras de Lynch, cientista político e consultor da Comunidade Européia.

Eles são a Transnístria e a Abcázia, Nagorno-Karabakh e Ossétia Meridional, todos na região entre o Mar Negro e o Mar Cáspio, parte esquecida do mundo desde o colapso da União Soviética, que por quase um século dominou a região. Mas também entram na definição dos ‘estados de fato’ – mas não ‘de direito’ – a Chechênia e Taiwan, a Somalilândia, na África, e o Tibet, o Curdistão, que existe nos corações de milhares de curdos espalhados pelo Iraque, Irã, Síria e Turquia. Sem esquecer de Sealand, uma ilhota, antiga fortaleza militar britanica na Segunda Guerra Mundial, que proclamou sua independência em 1967. Lá vive o cidadão britânico Paddy Roy Bates e sua mulher, a Princesa Joan. O Príncipe Roy cunhou sua própria moeda, passaporte e até um lema nacional (“Do Mar, Liberdade!”).

Quem quer conhecer mais as histórias incríveis dos países do “Quarto Mundo” pode ler a reportagem nas bancas no Valor deste fim de semana (um trecho está online em www.valor.com.br) ou correr para o belíssimo site de Baudelaire – http://anthropic.net/eric/ - em que se pode observar algumas de suas fotografias tiradas na região do Cáspio. Inspirada no projeto, a BBC acaba de passar na Inglaterra e na Espanha a série “Lugares Que Não Existem”.

Um dos programas mais chocantes é o que mostra jovens e velhos da Transnístria – área ocupada pela minoria eslava (russa e ucraniana) da Moldávia, por sua vez parte da Romênia – dizendo que não desejavam o fim da União Soviética, têm horror ao McDonald’s e ao Starbucks e que, definitivamente, não querem se tornar um estado à imagem e semelhança das democracias ocidentais. No mínimo, intrigante.

quinta-feira, junho 30, 2005

Diretinho da Redação (21)



O texto abaixo pode ser lido tambem no www.diretodaredacao.com e trata da praga nossa de cada dia, a corrupção.

Dia desses um amigo brasileiro me disse que uma de suas alegrias era saber que eu não precisava acompanhar de lá a lama ocupando cada vez mais espaço nos prédios de nossas instituições nacionais. Muito que bem. Na quinta-feira desliguei todas as conexões eletrônicas que me transportavam para Brasília e, ecoando o amigo, resolvi encarnar o presonagem que vive a quilômetros de distância do centro da crise do governo e do PT. Andei cinco blocos e me enfiei no centro cultural aqui perto de casa. Fui assistir “Hécuba”, com Vanessa Redgrave, 68 anos, no papel-título, à frente dos atores da Royal Shakespeare Company.

A adaptação do poeta britânico Tony Harrison prometia uma passagem, via Grécia Antiga, para o campo de destruição de Bagdá e adjacências. As críticas ao governo Bush e ao caráter belicoso dos norte-americanos seria o centro desta nova encenação. Mas nem bem me acomodo na belíssima sala de espetáculos do século XIX e a rainha de Tróia fala do grande vício da humanidade – a corrupção. Não dá para escapar.

Ali por volta de 425 A.C., em meio à Guerra do Peloponeso, Eurípedes viajou oito séculos no passado e situou sua tragédia logo após a queda de Tróia. Ou, como Redgrave prefere dizer, ‘durante a primeira grande guerra conhecida entre o Ocidente e o Oriente, comandada por uma coalização de estados que invade e pilha uma área da Ásia’. No palco, tendas verde-oliva aglomeradas umas nas outras remetem a um campo de prisioneiros povoado por desespero, tortura e ódio.

Rainha sem coroa de Tróia, Hécuba-Redgrave nos diz que será transportada para a Grécia em breve com todas as mulheres de Tróia. Que seus filhos foram mortos, um a um. Que sua filha acaba de ser assassinada pelo exército ocupado. E que ela está organizando, de modo racional, uma vingança sangrenta, ávida que está por fazer justiça pelas próprias mãos. Não parece familiar? Além de esfregar na cara dos americanos o desespero de mães palestinas, bósnias e iraquianas, “Hécuba” trata de traição e corrupção, do abandono de princípios éticos em favor do ouro e do poder.

Do palco, Redgrave nos encara. Redgrave, a que declarou publicamente seu apoio a Fidel nos anos 60. A que recusou o título de nobreza do Reino Unido. A que advogou em Hollywood, ao receber o Oscar em 1977, em favor dos palestinos. A embaixadora da UNICEF que pagou a fiança de US$ 50 mil para libertar o separatista Akhmed Zakayev, da Chechênia, preso pelo governo russo. Olhos nos olhos ela nos conta que, pior do que a guerra, pior do que a escravidão, só mesmo a corrupção. Onipresente, ela não é o mal do século. É o mal da humanidade, nos garante a rainha-escrava.

Nos anos 80, a atriz foi acusada de participar de um equema de corrupção no Partido Revolucionário dos Trabalhadores (WRP), organização marxista inglesa de tendência trotskista, comandada por, entre outros, seu irmão, Corin, e da qual foi militante até 1986. A acusação era a de que o partido receberia ajuda financeira do Iraque de Hussein e da Líbia de Khadafi. Em tempo: nada ficou provado contra os Redgrave.