quinta-feira, setembro 21, 2006

FILME/ THE U.S. VS. JOHN LENNON



US. X John Lennon
Eduardo Graça, de Nova Iorque e Toronto, para a Bizz


Saiba como é o filme sobre John Lennon que virou a capa da Bizz 205

A primeira reação é quase um reflexo à fauna que anda em direção ao Bowery ou ao Soho nas cercanias do Landmark Sunshine Cinema, casa do documentário Os Estados Unidos Contra John Lennon: decepção. Não com o filme, mas com o momento. Três décadas depois que o governo Nixon tentou deportar o ex-beattle e Yoko Onno, vivemos tempos intensamente mais chatos. As canções de protesto não mobilizam mais multidões, Nova Iorque rende-se cada vez mais à ditadura do mainstream e não há no horizonte uma só celebridade disposta a usar conscientemente o mito criado em torno de sua imagem para alcançar um objetivo político. Bono Vox? Então, tá.

Em uma das cenas mais marcantes do documentário de pouco mais de uma hora e meia dirigido por David Leaf e John Scheinfeld, John Lennon diz que só quis fazer uma coisa na vida: tocar em uma banda de rock. E isso jamais iriam tirar dele: "Sou acima de tudo um músico, depois um político". A frase pode ser lida de trás para a frente: ele fora político ao revelar, ao som do iê-iê-iê, que 'I wanna hold your hand'. Em tempos de guerra do Vietnã, pedia, com a mesma ludicidade, 'to give peace a chance'.

Não foi por isso, apenas, que o governo Nixon resolveu mandar Lennon para fora dos EUA. A justificativa oficial do processo era a detenção do Beatle em Londres, anos atrás, por posse de maconha. Antecedentes criminais. Balela. "Quase todas as estrelas do rock que entram a todo momento nos EUA foram detidas em algum momento de sua carreira pelo uso de drogas. Mas nenhum deles pensa como eu. Ou, melhor, não é explícito sobre como vê o mundo politicamente”, dizia Lennon.


O conflito era ainda mais profundo: o ex-Beatle e Ono passaram a última metade dos anos 60 e a primeira dos 70 financiando movimentos da esquerda americana, como os Panteras Negras. Entrevistados pelos diretores, figuras importantes do F.B.I. pré-Watergate e próceres da televisão populista de direita por aqui, como o apresentador Geraldo Rivera, abordam o mito Lennon da forma que mais os convém: era um ingênuo, explorado pelas mentes perversas dos jovens ‘comunas’, filhos da rebelião de 68. E precisava ser detido.

Do outro lado do flanco, o escritor Gore Vidal, o mais lennoniano dos entrevistados, lembra que ‘Lennon representava a vida, do mesmo modo que Nixon, e agora Bush, representam a morte’. Na mesma linha seguem Tariq Ali e Noam Chomsky, o primeiro revelando que o pensamento político de Lennon o influenciou decisivamente.

Os EUA Contra John Lennon
é um documentário construído pela e para a tevê. Leva a assinatura do canal VH1 e padece das limitações de seu gênesis. Mas o momento em que chega aos cinemas dos norte-americanos é mais do que propício. Em Toronto na semana passada para apresentar seu filme em um dos mais importantes festivais de cinema da América do Norte, os diretores Leaf e Scheinfeld lembraram que ‘há toda uma nova geração que se vê novamente enfrentando uma guerra sem sentido e pergunta: cadê nosso John Lennon quando mais precisamos dele?”.

Os tempos são outros, a esquerda radical dissipou-se, os inimigos da ocasião são religiosos, os ricos nunca lucraram tanto, a música pop lida com seus próprios fantasmas representados pela revolução da internet e a pirataria musical e a oposição democrata, que tinha líderes do quilate de um Bob Kennedy e de um senador George McGovern (candidato derrotado por Nixxon em 72), hoje pena para unir em um mesmo programa o discurso de segurança nacional (fundamental para alcançar a amedrontada classe média) e a manutenção das liberdades individuais e dos avanços democráticos que, séculos a fio, traduziram o que há de melhor no experimento norte-americano.

O tempo, repito, é modorrento. E não existirão dois Lennons. Voltemos ao filme. Perguntado de forma agressiva pela imprensa quanto havia gasto para colocar em outdoors de grandes cidades americanas e da Europa a famosa propaganda ‘The war is over! If you want it” (A guerra acabou, se você quiser), o compositor respondeu de imediato: ‘menos do que vale a vida de um soldado americano’.

“De fato, não haverá outro Lennon. Ao mesmo tempo, o Lennon que inspira Bono Vox e a todos nós continua presente em sua música, mais relevante do que nunca. Sua inteligência e carisma ainda nos tocam. Mas acima de tudo sua coragem. A coragem de usar sua arte para abraçar a causa da paz e lutar contra o governo dos Estados Unidos da América”, dizem os diretores, completamente seguros de quem venceu a batalha cultural retratada em Os EUA Contra John Lennon. A que acontece hoje, do lado de fora da sala de cinema do Landmark Sunshine, é uma outra história.

Diretinho da Redação (50)


A coluna da semana, que já está no DR, é sobre o genial filme Half Nelson, produção independente em cartaz aqui nos EUA infelizmente ainda sem distribuição garantida no Brasil.


HALF NELSON

Eduardo Graça

Nova Iorque - Há um pequeno grande filme em cartaz nos cinemas americanos. Chama-se Half Nelson, alusão a uma posição da luta-livre que imobiliza o adversário mas pode acabar se voltando contra o atacante. O filme poderia ser apenas a história do encontro de um professor branco viciado em crack com sua aluna negra de 13 anos, que tenta de todas as maneiras não ser recrutada pelo exército do tráfico. Mas vai muito além desta síntese simplista.

Half Nelson passa-se na fronteira do Gowanus Canal, uma espécie de linha divisória do Brooklyn dos anos Bloomberg: de um lado as áreas ‘resgatadas’ que caminham para se tornar uma nova Manhattan (ao norte), repletas de restaurantes e butiques da moda. Do outro o decadente e esquecido distrito industrial, ocupado predominantemente por negros, ao sul do canal. O filme é dirigido por Ryan Fleck, que foi quase tão saudado pela crítica quanto seu protagonista, Ryan Gosling, o professor de História Dan Dunne, comparado a Marlon Brando por sua interpretação impressionista, repleta de silêncios e de uma intensidade sem par.

Enquanto esta produção independente vai acumulando prêmios nos festivais de cinema europeus e se fala abertamente da possível indicação de Gosling a melhor ator no Oscar do ano que vem (o que, quem sabe, animaria algum distribuidor a colocar o filme em cartaz no Brasil), Half Nelson conquista fãs aqui nos EUA ao mesclar de forma nada didática o golpe militar chileno, a luta pelos direitos civis dos negros e homossexuais e a epopéia dos imigrantes sem oferecer fórmulas possíveis de redenção. É um filme que, ao contrário de peças menos ousadas como as Torres Gêmeas de Oliver Stone, não tem medo de apresentar aos espectadores uma visão política que passa pela necessidade – e dificuldade – nossa de transportar a ética e a moral para a esfera pessoal. Aqui, a única possibilidade de cura parece ser o contato humano. Mas, mesmo assim, ainda quando se decide prender a respiração e adentrar na intimidade do outro, o resultado quase sempre não é recompensador.

Half Nelson revela-se universal ao reconhecer que hoje o ser humano pode mesmo quase tudo, inclusive destruir-se com intensidade sem par. Mas o filme de Fleck, abençoado pela atuação magistral de Gosling, é essencialmente uma obra de arte nova-iorquina, na medida em que, justamente como a cidade mais rica da mais rica das nações, abraça com orgulho a tolerância ao diferente, sem no entanto jamais buscar entendê-lo.