terça-feira, dezembro 16, 2008

A CRISE IMPRESSA/Carta Capital

A Carta Capital desta semana publicou meu texto sobre a crise da imprensa norte-americana. Aí vai:

Nosso Mundo

A CRISE IMPRESSA

MÍDIA NOS EUA A concordata do grupo Tribune indica: a debacle econômica deve apressar a decadência de jornais e revistas

POR EDUARDO GRAÇA,
DE NOVA YORK


Para onde vai a imprensa escrita norte-americana? Enquanto os canais de tevê de notícias 24 horas celebram espetaculares índices de audiência desde o início da prolongada campanha presidencial e a internet se revelou fundamental ao fenômeno Barack Obama, jornais e revistas seguem perdendo leitores. A Tribune Company, que publica dois dos mais importantes títulos do país, o Los Angeles Times e o Chicago Tribune, entrou com um pedido de falência e o New York Times anunciou que vai hipotecar seu edífico-sede, um belo prédio de 52 andares projetado pelo arquiteto italiano Renzo Piano, inaugurado com pompa no ano passado.

A melhor ilustração para entender a que ponto chegou a indústria jornalística dos EUA talvez seja a já famosa reunião do bilionário Samuel Zell com a equipe do Orlando Sentinel no início do ano. Magnata do mercado imobiliário, Zell arrematou o já combalido conglomerado de jornais Tribune - mais algumas redes de televisão - por 8,2 bilhões de dólares. Em seu primeiro encontro com os editores do jornal da Flórida, foi direto: "Estava cá pensando como pedereia descrever meu trabalho para vocês. Creio que, grosso modo, meu desafio é levantar uma instituição de 126 anos, não? Pois bem, pensem em mim como um Viagra". Tempos depois, em reunião com a equipe do Los Angeles Times, o mesmo Zell teria garantido "não ter vindo para ser o capitão do Titanic".

As infelizes metáforas, que se transformaram em anedotas em capítulo infame de uma das mais ricas tradições joranlísticas do país, não pararam nos domínios do Tribune. Em entrevista à NPR, a corporação pública de rádio dos EUA, o editor-executivo do jornal mais influente do país, Bill Keller, disse na terça-feira ue, se tivesse de escolher uma manchete para definir a atução situação do seu The New York Times, esta seria "Nós Sobreviveremos", em caixa altíssima.

Ironicamente, a mesma NPR, apesar de manter uma audiência sólida de 26,4 milhões de ouvintes por mês, anunciaria dois dias depois o corte de 7% de sua força de trabalho e o cancelamento de dois programas, o Day to Day, com audiência de 2 milhões de ouvintes, e o News & Notes, voltado para a comunidade negra.

A revista Newsweek, uma das mais influentes semanais e parte do grupo The Washington Post, também estaria, de acordo com o The Wall Street Journal, preparando uma 'remodelação', dimunindo de formato e aumentando o espaço para fotos e opinião, reduzindo as mais custosas reportagens. A revista cortaria entre 500 mil e 1 milhão dos 2,6 milhões de exemplares semanais. Analistas afirmam que a Newsweek seria a primeira revista de notícias norte-americana a seguir a receita da britânica The Economist, transformando-se em um fórum de discussão, deixando grandes reportagens e denúncias em segundo plano. Neste ano, as duas principais semanais dos EUA, a Time e a Newsweek, prederam, respectivamente, 17% e 21% em anúncios em relação ao ano passado.

Especialista em políticas públicas que trabalhou até há pouco tempo no gabinete do então senador e vice-presidente eleito Joe Biden, Harry Moroz acredita que a diminuição de publicidade e assinantes tende a afetar mais sensivelmente, com a velocidade da crise financeira, as publicações locais. Um dos dados mais impressionantes, ele aponta, é o relatório divulgado pela firma Fitch Ratings, dando conta que "diversas cidades americanas perderão seus diários até 2010, com o fechamento de jornais e a debacle de conglomerados de mídia impressa por conta de um aumento nas quedas de circulação e publicacidade ao mesmo tempo que os custos tendem a incrementar". Entre os grupos com "outlook negativo" no relatório está o terceiro maior conglomerado de jornais do país, o McClatchy, dono do Miami Herald.

"
É claro que há uma certa dose de alarmismo. Mas conversei com analistas da Fitch e a expectativa é de que ao menos um jornal de um grande centro urbano feche as portas ainda em 2009", diz Moroz. Para o analista "o que está havendo é um processo de acomodação, uma estratégia das empresas jornalísticas de redução das despesas, cortando o investimento na produção de notícias de âmbito nacional e se concentrando cada vez mais na cobertura local, um setor que os blogs ainda não conseguiram tomar de assalto. Mas esta mudança de foco da massa de jornais do interior significa uma redução perigosa do jornalismo investigativo".

Moroz não aposta em uma transformação dos grandes títulos para a versão eletrônica exclusiva. "Talvez um exemplo a seguir seja o do Wall Street Journal, que vem conseguindo, paulatinamente, conduzir seus assinantes na migração, para sua página na internet:, diz. Moroz, curiosamente, publicamente uma coluna eletrônica no The Huffington Post, um dos sites jornalísticos de maior sucesso, criado há pouco mais de três anos.

Ao convidar medalhões do jornalismo, celebridades e intelectuais para escreverem em tempo real em seu site, Ariana Huffington, ex-mulher do magnata do petróleo Michael Huffington, conseguiu chegar aos 4,5 milhões de visitantes individuais em setembro, quadruplicando sua marca no mesmo mês do ano passado. Números que fazem com que sua companhia tenha um valor estimado no mercado de pouco menos de 100 milhões de dólares, de acordo com Fred Harman, da Oak Investment Partners. Neste mês, o site, que agora se identifica como o "Jornal da Internet", recebeu uma injeção de 25 milhões de dólares da Oak em uma aposta no que Harmam identifica como o novo modelo de "jornalismo sério on-line, poderoso nas últimas eleições".

Bill Keller lembra, porém, que o sucesso do jornalismo eletrônico pode acabar beneficiando também as grandes marcas, como a de seu New York Times, que, em outubro, chegou à marca de 1 bilhão de páginas visitadas. "Jornalismo de qualidade custa caro. E você não vai encontrar blogs e sites de ONGs abrindo escritórios em Bagdá. Há, em geral, uma escassez no mercado daquilo que eu qualificaria como jornalismo de primeiro nível", disse à NPR>

Mas o fato é que até os organizadores do Prêmio Pulitzer renderam-se à era digital. A partir de 2009, o Pulitzer premiará reportagens feitas exclusivamente na internet. Pare serem considerados pelo painel de julgadores da Universidade de Colúmbia, os sites precisarão ter uma periodicidade diária ou semanal. Uma doa sugestão de coluna a ser premiada pelos figurões do Pulitzer, interessados, de acordo com o chefe de seu corpo editorial, Sig Gissler, "em manter-se atualizados com as mudanças no cenário da mídia nos EUA", foi a publicada por Maureen Dowd no New York Times na última semana de novembro. A jornalista contava a história do Pasadena Now, um jornal local de Los Angeles que não apenas abandonou sua versão impressa, mas contratou jornalistas exclusivamente baseados em Bangalore, na Índia. Repórteres com salários incomparavelmente mais baixos do que os americanos, apurando notícias de Pasadena por telefone e com o auxílio de ferramentas de busca da internet.

De acordo com o dono do Pasadena Now, James Macpherson, "a mídia impressa dos EUA vive seu momento GM, com a agravante de que não haverá plano de resgate do governo". Ele descobriu o pulo-do-gato de investir na mão-de-obra estrangeira depois de uma experiência no mercado têxtil, lidando com trabalhadores vietnamitas. Os indianos recebem, a cada mil palavras, 7,50 dólares, algo inconcebível no mercado norte-americano. Maureen Dowd não se fez de rogada e resumiu, com humor característico, o turbilhão pelo qual passa a imprensa ianque: "Um centavo por meus pensamentos? Agora tenho certeza de que meus dias estão contados. E me peguei imaginando quanto tempo demorará para um cidadão de Bangalore começar a escrever, da Índia, minha coluna sobre o presidente Obama"

domingo, dezembro 14, 2008

ENTREVISTA/Fareed Zakaria, para o Valor Econômico

Na semana que passou o Valor Econômico publicou a entrevista que fiz com a estrela da CNN e da Newsweek, Fareed Zakaria, que acaba de lançar no Brasil seu best-seller O Mundo Pós-Americano. A conversa foi por telefone, em meio ao fechamento da revista semanal que ele edita. Segue o bate-papo e, já pelo título, dá para ver que o homem é extremamente otimista em relação ao Brasil:

Um futuro absolutamente garantido
Por Eduardo Graça, para o Valor, de Nova York
04/12/2008

"O Mundo Pós-Americano" - Fareed Zakaria. Trad. de Pedro Maia Soares.

Companhia das Letras. 312 págs. R$ 49
Bloomberg
Zakaria: "A classe média brasileira estará em condições melhores do que a classe média do mundo industrializado"

Editor da "Newsweek International", Fareed Zakaria é um dos mais influentes intelectuais dos Estados Unidos. Durante o governo Bush, foi recebido inúmeras vezes na Casa Branca para discutir aspectos da política externa americana. Em seu programa na rede CNN, ele conversa com líderes mundiais e especialistas em relações exteriores sobre os novos protagonistas no teatro das potências, estrelas de seu "O Mundo Pós-Americano". Zakaria, que nasceu na Índia e naturalizou-se americano, saudou a revolução conservadora de Ronald Reagan e apoiou com entusiasmo a invasão do Iraque, é um ótimo papo e um entusiasta do Brasil, visto como uma das "novas potências emergentes" no tabuleiro mundial. E a crise financeira global, garante, apenas apressa o passo da "ascensão do restante do mundo", representada por sua Índia natal (a reportagem do Valor conversou com Zakaria antes dos ataques terroristas a Mumbai), a China, "que nada em dinheiro", e o Brasil, "estável como nunca antes em sua história".

Valor: De que modo a ascensão do restante do planeta será afetada pela crise financeira global?

Fareed Zakaria: O primeiro impacto da crise foi lembrar-nos de que o sistema financeiro é de fato globalizado. Não existe mais abrigo. O capital é de fato global e move-se de forma cada vez mais instantânea. Todas as bolsas de valores e sistemas financeiros do planeta estão interligados de um modo singular e novo. Mas nos próximos seis meses creio que começaremos a perceber uma diferença nas diversas performances econômica dos países.

Valor: Depois do choque da crise...

Sim. Não há dúvida de que os Estados Unidos e a Europa passarão por uma severíssima recessão. Será a pior recessão nos Estados Unidos em 40 anos. Mas não acho que o mesmo acontecerá nas economias emergentes. China, Índia e Brasil, especialmente, deverão sofrer menos. Seus consumidores não estão endividados em bancos, que, por sua vez, estão mais saudáveis do que as instituições daqui.

Valor: De onde vem essa certeza?

Zakaria: A China vinha crescendo 9%, os Estados Unidos 3% ao ano. A melhor projeção do PIB para os Estados Unidos em 2009 é de 0,5%, mas há a real possibilidade de decréscimo. No caso da China, os dados mais pessimistas prevêem um crescimento de 6%. Se a China crescia, antes da crise, em uma velocidade três vezes maior do que os Estados Unidos, tende a dobrar essa vantagem no mundo pós-recessivo. O Brasil deve crescer entre 2% e 4%. Mesmo com o planeta crescendo de modo mais vagaroso, a recessão vai acelerar a ascensão do mundo pós-americano. E creio que a estagnação dos Estados Unidos e da Europa Ocidental continuará por mais três ou quatro anos, talvez além, aumentando ainda mais a transferência do poder econômico para Brasil, China e Índia.

Valor: Há receio no Brasil de que a crise financeira possa jogar por terra algumas conquistas recentes, como a emergência da nova classe média. O sr. acredita em um retrocesso social no Brasil e em um achatamento do mercado consumidor interno?

Zakaria: Não. Não tenho dúvidas de que haverá uma retração no crescimento econômico e na qualidade de vida de todo o planeta. A Idade de Ouro acabou. Mas se você olha para o Brasil vê que nem a classe média está perigosamente endividada nem a economia depende intensamente da exportação. Diria que o setor exportador no Brasil será afetado de forma sensível, mas, sem exagero, a classe média brasileira estará em condições melhores do que a classe média do chamado mundo industrializado.

Valor: Assim que Obama começou a formar seu gabinete, o sr. escreveu em sua coluna na "Newsweek" que "o presidente eleito não deveria ouvir os conservadores e sim o novo mundo em ascensão". Pode explicar melhor suas palavras?

Zakaria: Não há nada mais importante para este novo governo do que entender como o mundo mudou nos últimos anos. Essa mudança é o cerne de meu livro. Os novos centros de poder, como China, África do Sul, Brasil e Índia, vieram para ficar. O Brasil pode passar até alguns anos difíceis, mas continuará sendo politicamente e economicamente estável, como nunca antes em sua história. Washington precisa aprender a interagir com esse novo mundo. Estes são tempos sensacionais, em que pela primeira vez vivemos em uma sociedade economicamente global de fato. Temos que aproveitar da melhor maneira possível esta realidade. Não há como pensar em voltar a padrões de conflito estabelecidos na Guerra Fria, como fez o governo de George W. Bush.

Valor: Mas há o outro lado da moeda. O professor Ian Buruma, por exemplo, bate na tecla de que a ascensão da China diminui o poder de pressão das democracias ocidentais em relação a questões de direitos humanos básicos ignoradas por Pequim. Como lidar com essa China tão poderosa?

Zakaria: De um modo genérico, Buruma está correto. Mas a China, uma civilização milenar, está passando por um processo de transformação social e econômica extremamente complexo. Insistir em que a China se transforme em um modelo de democracia ocidental da noite para o dia é ao mesmo tempo arrogante, historicamente equivocado e contraproducente. Não precisamos deixar de denunciar os abusos a prisioneiros políticos, mas você perde a perspectiva do desenvolvimento das sociedades humanas ao exigir que as novas potências sejam um espelho do chamado Primeiro Mundo. Muitos liberais são espantosamente cegos para esse aspecto da discussão.

Valor: O senhor apoiou a invasão do Iraque desde o início. Acredita de fato que os iraquianos se beneficiarão de alguma maneira da ocupação americana?

Zakaria: Talvez sim, a longo prazo. Talvez se construa um país mais moderno, mais democrático, mais aberto, que poderá influenciar de forma positiva o mundo árabe, que é quase na totalidade governado por ditadores ou monarcas autoritários. Concordo que a ocupação foi conduzida violentamente e com uma precariedade tal que o mundo árabe vê o Iraque não como um experimento democrático, mas como um governo tirânico de maioria xiita na região. Mas creio que se chegará à conclusão de que o processo foi, sim, positivo para o país. De qualquer forma, creio que a única possibilidade de intervenção hoje é uma ação multilateral, comandada pelos americanos. Um bom exemplo é a Bósnia, na Era Clinton, uma intervenção consensual, com a colaboração de dezenas de países com real legitimidade política e abençoada pela ONU. Creio que será feito um esforço em Washington para reestruturar o papel dos Estados Unidos na ONU, que é um sistema ainda antiquado, mas é o único órgão de fato global. Uma mudança necessária, por exemplo, é a inclusão urgente de Brasil e Índia no Conselho de Segurança. Daí a necessidade de novos fóruns para se resolver os problemas do planeta, como o G-20.

Valor: O presidente Lula, um dos maiores entusiastas do G-20, chegou a declarar que o G-8, que reúne as oito nações mais ricas do globo, é irrelevante...

Zakaria: Acho que o G-8 deve ficar, mesmo sendo cada vez mais irrelevante. Talvez o G-20 devesse se tornar um órgão institucional permanente, destinado exclusivamente a resolver problemas globais, sejam relacionados a meio-ambiente, economia ou terrorismo. Se você quer resolver os problemas econômicos do mundo, terá de contar com os países que têm "cash", como a China, o Japão e a Arábia Saudita, e com os que mais crescem, como Brasil e Índia. Acho que, no fim, a declaração do presidente Lula será vista como absolutamente certeira.

ENTREVISTA/Ian Buruma, para o Valor Econômico

Faz um tempão desde a última postagem aqui, tenho viajo e trabalhado sem parar. É hora de uma atualização! Neste fim de semana o Valor Econômico, em seu caderno de fim de semana, publicou a entrevista que fiz com o professor Ian Buruma, em um dos dias mais gélidos deste começo de inverno nos EUA. Tive de cruzar quase toda Manhattan para encontrá-lo no Harlem, mas valeu a viagem. Segue o texto:

A Sedutora e o Pensador
Por Eduardo Graça, para o Valor, de Nova York
12/12/2008

Faz um frio maldoso no fim de outono na ilha de Manhattan. O café do Harlem escolhido para a entrevista por Ian Buruma, um dos intelectuais mais festejados da academia americana, está repleto de cadeiras extras, em que chapéus, casacos, cachecóis e luvas formam amorfas pilhas coloridas. Casaco de couro, gorro usado em dias de frio ártico, Buruma chega ávido por um chá e pronto para conversar sobre o mundo que o cerca, com a exceção das "porções do globo que não conheço. Não tenho absolutamente nada de interessante para falar do Brasil e da América Latina".
Bloomberg
Buruma: "Há o risco de um aumento de populismo, tanto de direita quanto de esquerda. Mais personagens como Hugo Chávez e lideres radicais de direita ganharão terreno"

O aviso é quase respeitado de forma integral. Buruma acaba de lançar nos Estados Unidos seu primeiro romance em 17 anos, "The China Lover" (Penguin.392 págs.), em que utiliza a figura de Yoshiko (ou Shirley) Yamaguchi, uma celebridade japonesa, para tratar do poder da fantasia coletiva no mundo moderno. Sua história é narrada por três homens que em determinado momento da camaleônica vida da diva permaneceram em sua órbita (ela ajudou os americanos a difundir os ideais de democracia no cinema japonês do pós-guerra, zanzou pela Palestina de Arafat, casou-se com o escultor Isamu Noguchi e nos anos 1970 foi eleita para o parlamento por um partido ultra-nacionalista).

Reuters
Calma na prosperidade: Buruma acha que não há risco de insurgência de fato importante na China enquanto a classe média continuar satisfeita com a vida que leva
O único título de Buruma traduzido para o português é "Ocidentalismo: o Ocidente aos Olhos de seus Inimigos" (Jorge Zahar. 168 págs.), publicado em 2004 em parceria com um dos nomes mais respeitados da esquerda israelense, o filósofo Avishai Margalit. O livro - que remete ao "Orientalismo" de Edward Said - tornou-se leitura obrigatória para os interessados em escarafunchar as raízes do pensamento antiocidental, não apenas no Oriente Médio, mas também na China, Japão, Rússia e Alemanha de Hitler. Em seus artigos reproduzidos em "The Guardian" e em livros e palestras ministradas nos Estados Unidos, Buruma, que nasceu na Holanda e viveu na Inglaterra e Japão, tem tratado de modo singular das relações entre Ocidente e Oriente. Professor da cátedra de Democracia, Direitos Humanos e Jornalismo na Universidade de Bard, no Estado de Nova York, ele conversou com o Valor sobre o novo papel dos Estados Unidos no cenário internacional, o significado da eleição de Obama para o restante do planeta e as forças sociais que a crise econômica global pode despertar.

Valor: Yoshiko Yamaguchi é uma personalidade no Japão, um ícone nacional, mas não é especialmente conhecida nos Estados Unidos. O sr. viveu em Tóquio. Foi lá que entrou em contato com esta personagem tão peculiar e decidiu escrever o livro?

Ian Buruma: Foi um processo longo, com vários começos falsos. A primeira vez que a vi, era um estudante de cinema na Tóquio dos anos 1970. Estava pesquisando no Arquivo Nacional de Cinema e comecei a ver filmes feitos durante a Segunda Guerra Mundial. E Yoshiko era uma das principais estrelas do cinema japonês. Fiquei de fato impressionado e pensei que ela renderia uma bela história...

Valor: No Japão, ela virou enredo de uma novela de televisão...

Buruma: Sim. E também de uma ópera, um musical, e por aí vai. Por isso a idéia de fazer algo ficcional a partir de uma história já tão bem contada pelos japoneses ficou na minha cabeça, mas sem que eu tocasse de fato o projeto.

Valor: É possível compará-la com alguma personalidade do mundo ocidental?

Buruma: Ela é um mix de Marlene Dietrich e Leni Riefenstahl. Não consigo pensar, por exemplo, em um equivalente americano. E pensei que talvez pudesse escrever algo sobre ela, um ensaio, nada ficcional. Mas seria difícil fugir da lenda oficial de Yamaguchi, cantada em prosa, verso e muitas biografias no Japão. E pensei, depois de muitas tentativas que não deram certo, que, mais do que sua própria vida, o que de fato me interessava era a maneira como os homens de seu tempo projetavam suas fantasias na figura daquela mulher, como eles a imaginaram. Nunca ficou muito claro até que ponto ela era uma manipuladora de homens ou se eram eles que a transformavam no que bem entendessem. Passei a vê-la como a Lulu da trilogia de [Frank] Wedekind e pensei: Por que não escrever um livro sobre ela a partir da perspectiva de homens que a conheceram em momentos diversos de sua vida, como Lulu?

Valor: Há 17 anos o sr. não escrevia um texto ficcional...

Buruma: Para mim, é muito mais difícil escrever ficção. As coisas não funcionam como se eu decidisse que "agora vou escrever um romance". Não, quem manda é o tema. Algumas idéias são claramente melhor exploradas como biografias, outras como ensaios, outras como críticas, outras como ficção. Por exemplo, meu livro anterior, "Murder in Amsterdam" (Penguin. 288 págs.), é uma não-ficção em que uso técnicas de romance para contar a história de Theo Van Gogh e falar sobre os limites da intolerância.

Valor: O hibridismo entre realidade e romance o interessa especialmente?

Buruma:

Valor: E como foram seus contatos com Yoshiko?

Buruma: Cheguei a entrevistá-la algumas vezes para publicações americanas. Uma das últimas vezes em que nos falamos, por telefone, foi logo após os atentados de 11 de setembro em Nova York.

Valor: Qual foi a reação dela? Depois da guerra, ela se aproximou de Yasser Arafat e conviveu de perto com o pensamento islâmico antiocidental mais radical...

Buruma: Você não vai acreditar, mas a conversa que tivemos foi completamente banal. Ela disse apenas "mas que mundo estranho é este em que vivemos, não?" e nada mais. Acho que seria de esperar uma resposta assim. Ela, de certo modo, viveu qual um fantasma. Uma mulher extremamente elusiva e, ao mesmo tempo, aberta a que outros a reinventassem o tempo todo.

Valor: Um de seus temas mais constantes é a interação, e os choques, entre o Ocidente e o Oriente. "The China Lover" apresenta um Japão que mudou depois da ocupação americana. No caso do Iraque, pode-se fazer alguma comparação?

Buruma: Os neoconservadores gostam de fazer essa comparação, mas são situações completamente diversas. O Japão atacou os Estados Unidos e perdeu uma guerra. A maioria dos japoneses se sentiu grata pelo fato de os americanos se proporem restaurar o país, oferecendo-lhes mais liberdade. O Iraque é um outro cenário. Não sei ainda se a ocupação trará algo de positivo para a sociedade iraquiana. Ainda é muito cedo para afirmar que há algum progresso em áreas específicas. Um claro avanço é que Saddam Hussein já não está no poder. Mas os custos para tal mudança talvez tenham sido muito altos. E se a saída das tropas americanas no ano que vem levar a uma guerra civil sangrenta, estará configurada uma catástrofe sem tamanho.

Valor: O sr. acredita que, depois dos anos Bush e das ocupações do Afeganistão e do Iraque, ainda existe espaço para o intervencionismo americano, a la Bósnia, em locais como o Sudão?

Buruma: O cenário, hoje, é muito mais complexo. Mas não quero dizer que casos extremos não oferecerão uma oportunidade para o intervencionismo americano. A Bósnia é um caso em que considero a intervenção necessária. Mas muitas vezes essas ações acabam levando a situações piores do que as que existiam. Digo mais, acho que seria muito fácil as forças armadas americanas transformarem o Sudão em um lugar ainda pior do que é hoje. É preciso entender que a situação em países como o Sudão é muito mais complicada do que a velha idéia de que mandar soldados vai resolver algo. Existem problemas insolúveis. No caso do Sudão, não quero dizer que é melhor não fazermos nada. Mas também sou cético a respeito de qualquer idéia simplista de que homens armados vão resolver algo.

Valor: Como o governo Obama, com Hillary Clinton como secretária de Estado [era uma possibilidade na ocasião da entrevista], lidará com o xadrez geopolítico?

Buruma: Não acredito que eles tentem um novo experimento, algo como invadir outro país, usar força militar, depois do que aconteceu no Iraque, com a premissa de que se trata de disseminar democracia. Acho que haverá uma política de retrocesso em termos de invasões armadas, o que é uma boa notícia para o mundo.

Valor: E a ajuda material a grupos oposicionistas em países como Birmânia?

Buruma: Não creio que isso possa acontecer. Um sinal do novo mundo multipolar é que, na Birmânia, por exemplo, os jogadores com poder de fogo são a China e a Índia. E se eles não quiserem se mexer, e aposto que os chineses não estão nem um pouco interessados em mudanças na Birmânia, há muito pouco que os Estados Unidos possam fazer no Sudeste Asiático.

Valor: Há um aparente consenso aqui nos Estados Unidos de que a crise financeira internacional ratificou uma nova ordem mundial, mais multipolar, em que grandes democracias populares, como Índia e Brasil, e potências autocráticas, como China e Rússia, têm mais voz. O presidente Lula chegou a dizer na reunião das 20 maiores economias, em Washington, que o Grupo dos 8 (reunião dos países mais ricos do planeta) hoje é irrelevante...

Buruma: O poder econômico que um país como a China hoje tem faz com que eles necessariamente sejam considerados um parceiro primordial planetário das economias ocidentais. Mas não há como questionar o fato de que esta nova posição dos chineses diminui o poder de pressão sobre os abusos aos direitos humanos por lá. Isso significa que os Estados Unidos e a Comunidade Européia terão de parar de tratar de questões como os direitos individuais e a democratização da China? De forma alguma. Mas nossas expectativas serão ainda mais limitadas a partir de agora. Melhoras nesse setor terão de vir, necessariamente, de dentro do regime. Dificilmente forças extra-Pequim poderão fazer alguma diferença.

Valor: Há, na chamada civilização ocidental, e voltamos aqui ao caso da ocupação do Japão, mas também da redemocratização da Alemanha e da Itália, exemplos contrários a essa tese logo após o fim da Segunda Guerra Mundial...

Buruma: Sim, mas são maus exemplos, no sentido de que, ali, governos totalitários atacaram democracias e perderam uma guerra. Esses três países foram dizimados e houve clara cooperação da maior parte da população na reinvenção de suas nações. Eles partiram do nada e entenderam que não havia nada melhor do que liberdade e democracia para reemergirem no cenário mundial. Mas esses casos são raríssimos. As novas potências totalitárias dão menos espaço para as democracias ocidentais exportarem suas idéias.

Valor: No caso específico dos tibetanos, por exemplo, que acabaram de discutir uma nova atitude frente a Pequim...

Buruma: Não vejo como os governos ocidentais possam intervir nesse caso. Não há ninguém dentro do Tibet, hoje, com capacidade para comandar os tibetanos e iniciar um movimento. Seria então o caso de apoiar de forma mais decisiva o governo tibetano no exílio, na Índia? Mais do que apoio moral ao Dalai Lama, seria tolo para as potências ocidentais apoiarem qualquer tentativa de golpe ou provocações. Mais uma vez, neste caso, não há como se criar um movimento de fora para dentro. Não vejo a menor chance de isso acontecer, especialmente agora, com a crise econômica, que aumentou a importância das boas relações entre os Estados Unidos e a China. O governo Obama não pode nem pensar em colocar em risco a relação Washington-Pequim.

Valor: O sr. escreveu em artigo recente que padrões culturais não podem ser usados como argumento para a China negar a seus cidadãos direitos básicos...

Buruma: O que os governos ocidentais podem fazer é apoiar grupos que lutam pela defesa dos direitos humanos, fiscalizar as corporações ocidentais atuando na China, obrigando-as a tratar os trabalhadores de forma decente. Mas não tem jeito. No fim, mudanças terão de vir dos chineses.

Valor: E o sr. acredita que elas virão?

Buruma: Sim, embora talvez em um ritmo bem lento. Mas a crise poderá afetar também a velocidade das mudanças. Na China, elas são relacionadas ao humor da classe média nos grandes centros urbanos. Enquanto o regime permitir que continuem prosperando, não há haverá qualquer rebelião. Mas se a situação econômica se deteriorar, tudo muda de figura.

Valor: Grande parte da população brasileira se beneficiou de programas de combate à pobreza e do aumento do valor das matérias-primas no mercado global. Há o receio de que a crise possa levar de volta para a miséria milhares de cidadãos em países em desenvolvimento. Como o sr. vê essa questão?

Buruma: Com apreensão. Há o risco de um aumento de populismo, tanto de direita quanto de esquerda. Mais personagens como Hugo Chávez e lideres radicais de direita, com plataformas nativistas, antiimigração, ganharão terreno. Há um risco real de que isso ocorra nas democracias mundo afora.

Valor: E quanto à Rússia? O país foi um personagem interessante nas eleições americanas, com as declarações pró-Georgia de John McCain e a mensagem desafiadora do presidente Dmitri Medvedev para o recém-eleito Obama...

Buruma: Novamente, as aspirações de ajudar a Rússia a se tornar mais democrática devem ser mínimas. São assuntos domésticos. Teremos que lidar com a Rússia de Medvedev e Putin. E eles vêm agindo de uma forma bem russa, por assim dizer, ora olhando para a Europa, ora para suas raízes asiáticas. Aqui também, mudanças serão muito difíceis, ainda que por razões diferentes. Usar força militar contra a Rússia está completamente fora de questão. E ser um antagonista por princípio não ajuda a ninguém. É preciso ser muito cuidadoso, por que lidar com a Rússia também significa pensar em nossas atitudes em relação à Ucrânia, à Geórgia. É uma tolice sem tamanho convidar esses dois países a fazer parte da Otan se você não está preparado para usar a força no caso de uma invasão militar. É injusto para com a população desses países. Uma injustiça dividida com os líderes desses países, que garantem a seus eleitores a "proteção da Otan".

Valor: E o projeto do governo Bush de instalação de um novo sistema de defesa antimísseis em países como Polônia e República Tcheca, que até os anos 1980 estavam na esfera de influência de Moscou? Aparentemente, há uma indefinição sobre a continuidade desse projeto na gestão Obama.

Buruma: Muito provavelmente, trata-se de outra tolice.

Valor: O sr. escreveu recentemente que a Obamamania reabilitou a imagem dos Estados Unidos na Europa. O sr. acredita que a vitória de Obama trará mudança também para as relações entre os Estados Unidos e a Europa?

Buruma: Sim. Símbolos são importantes. E a esperança de uma nova autoridade americana ajuda a nós todos. Creio que ele ajudará a criar maior cooperação entre os países do mundo ocidental e também aumentará o prestígio da idéia de democracia liberal. É inegável que, com sua eleição, Obama deu à maior democracia ocidental mais credibilidade. Mas ele não é a resposta a todos os problemas do planeta. Para resumir, acho que, com Obama, ficou um pouquinho mais fácil encontrar um consenso planetário.

Valor: A provável escolha de Hillary Clinton para comandar a política externa do governo Obama foi uma decisão sábia do novo presidente? [Quando da entrevista, a escolha de Hillary não estava confirmada]

Buruma: Creio que sim. Ela tem experiência e é uma personalidade planetária. Não há quem não saiba quem ela é. Há muitos fatores positivos e alguns negativos, um deles o conflito de interesses entre sua nova posição e as atividades profissionais de seu marido. Embora a imagem de Bill Clinton no exterior não seja ruim. No fim, acho que não é uma má escolha.

Valor: Quando o senhor apresenta casos de direitos humanos em seu curso, além do totalitarismo chinês e russo, das doenças sociais no mundo em desenvolvimento, os abusos cometidos pelos Estados Unidos estão na pauta do dia?

Buruma: Sim, claro. E embora eu, propriamente, não tenha dado aulas sobre Abu Ghraib e Guantánamo, por exemplo, vários de meus colegas têm sido especialmente enfáticos sobre essas contradições. A eleição de Obama muda também, creio, a percepção dessas questões por aqui. Mas, por exemplo, o que será feito de Guantánamo? Não é uma questão simples de resolver. Você não pode mandar os prisioneiros de volta sem saber o que acontecerá com eles em seus países de origem. Como julgar essas pessoas? Não é possível sequer usar a Corte Internacional em Haia, já que os americanos não reconhecem sua função máxima. Com que direito, então, você os julgará? Não são respostas simples. Não basta fechar as portas daquela prisão e pronto, acabou. Essa é uma herança terrível que o futuro governo receberá dos anos Bush. E, creio, vai ser uma constante nos primeiros anos do governo Obama.

Valor: O sr. acabou de fazer uma série de conferências na Universidade de Princeton sobre as relações entre religião e democracia nos Estados Unidos, na Europa, no mundo islâmico, no Japão e na China...

Buruma: Essas palestras serão transformadas em um livro com publicação prevista para o ano que vem. Procurei analisar as inúmeras tentativas de se separar religião e poder político nessas civilizações e a dicotomia entre liberdade religiosa e mecanismos utilizados para impedir a religião de se tornar um instrumento importante na luta pelo poder.

Valor: O sr.encontrou algum modelo ideal?

Buruma: Todos os modelos que pesquisei têm problemas. É claro que preferiria viver no Reino Unido do que na Arábia Saudita, mas não há caso perfeito na relação entre religião e democracia. Um dos aspectos mais interessantes do mundo contemporâneo é justamente o fato de que países como Turquia, Malásia e Indonésia, por um lado, vêm se modernizando a passos largos, e por outro passam por um processo de islamização, um certo populismo islâmico, que não é, necessariamente, antidemocrático. Fui à Turquia no verão e irei à Malásia em fevereiro. Creio que minhas próximas investigações ficarão mais concentradas nesse tema.