segunda-feira, abril 09, 2007

ENTREVISTA / Stephen Duncombe

O Valor Econômico publicou neste fim de semana minha entrevista com o Professor Stephen Duncombe, da NYU, um ótimo papo e figura interessantíssima no debate sobre o lugar a ser ocupado pelas esquerdas no mundinho globalizado de nossos dias. Olhem só:

POLÍTICA

QUEM SABE FAZ A HORA, NÃO ESPERA

Para o Professor Stephen Duncombe, há uma necessidade vital de se abraçar novamente as utopias e as idéias progressistas. Por Eduardo Graça, para o Valor, de Nova York.

A esquerda precisa ser menos a viúva dos valores iluministas e recuperar seu viés iconoclasta. A constatação é do professor Stephen Duncombe, da Universidade de Nova Iorque (NYU), que acaba de lançar Dream: Re-Imagining Progressive Politics in an Age of Fantasy, apontado tanto pelo filósofo marxista Marshall Berman (Tudo que é Sólido Desmancha no Ar) quanto pelo badalado sociólogo pós-moderno Slavoj Zizek (Bem-Vindo ao Deserto do Real!) como leitura obrigatória neste inverno no hemisfério norte.

Um dos criadores dos Billionários Por Bush - ativistas que ‘apoiaram’ a reeleição do presidente republicano desfilando pelo país em suas limusines e ‘celebrando’ a redução de impostos para os mais ricos – Duncombe conversou com o Valor em seu escritório de frente para a Broadway enquanto se preparava para sair às ruas novamente, desta vez para se juntar aos manifestantes que ocupariam Bryant Park em um gigantesco protesto contra os cinco anos de ocupação no Iraque. Para Duncombe, que descobriu a esquerda nas bandas de punk que povoavam os conjuntos habitacionais da New Haven de sua adolescência, é hora de os setores progressistas – ‘especialmente os mais radicais’ – deixarem o purismo de lado, encararem o fato de que ‘ficar esperando pela grande verdade libertadora é apenas fazer política de modo preguiçoso’ e abraçarem a dreampolitik, termo por ele cunhado em oposição sarcástica à realpolitik, para definir a filosofia política defendida em Dream. A idéia é que a esquerda precisa usar os elementos do sonho, da fantasia (vídeo game, Las Vages, Hollywood, música pop, You Tube) para concretizar suas ações políticas.


- Valor: As eleições do ano passado no Brasil foram marcadas pela relativa ausência de mobilização popular. Aqui nos EUA não se vêem mais manifestações de massa como as de 40 anos atrás, quando milhares de pessoas saíram às ruas para protestar contra a Guerra do Vietnã. O senhor acredita que a era dos comícios chegou ao fim?
- Stephen Duncombe: É claro que precisamos levar em conta a especificidade das eleições de 2006. Lula estava tentando se reeleger e contava com um imenso apoio popular, inclusive dos movimentos sociais organizados mais significativos. Mas eu acredito que a era das grandes marchas, de fato, acabou, e que descanse em paz! Aquele era um modelo do século XIX, com um claro viés militar, das pessoas andando em colunas repetindo palavras de ordem e mantendo a idéia de que o público era uma força extrínseca – a ‘massa de manobras’ - e não personagem criador do movimento. E nós não vivemos mais neste mundo. Aqui nos EUA, por exemplo, os ricos vivem em condomínios fechados e os pobres se amontoam nos subúrbios, distantes da cidade. Não há mais a concentração urbana tal qual a do século XX.

- Valor: Mas o chamado ativismo político de guerrilha, como o dos Bilionários Por Bush, tem o mesmo impacto dos grandes protestos?
- Duncombe: Pense que a maioria esmagadora da população americana apoiou a invasão do Iraque e hoje 70% dos cidadãos são contrários à ocupação. Não sei quantos mudaram sua posição por conta dos protestos, mas há um momento claro de virada, basta acompanhar as pesquisas, quando os opositores à permanência das tropas no Iraque passaram de menos de 40% para mais de 60% dos americanos adultos. Este número nunca mais parou de crescer. E aquele momento tem um nome: Cindy Sheehan. Ela é o exemplo de um outro tipo de demonstração, de uma categoria de protesto civil que pode ser efetivo no século XXI.
- Valor: Mas aquele ato de desespero individual pode ser encarado como um modelo para a atuação da esquerda daqui para a frente?
- Duncombe: Há algo de mítico naquela mãe demonstrando de modo simples a realidade da guerra que os americanos teimavam em não encarar. Pode ter sido um ato ingênuo, mas o fato é que ela conseguiu furar o bloqueio da realidade imposto à sociedade americana. Sheehan transformou seu ato de desespero em gigantesco movimento político ao nos revelar um presidente que se recusava a receber uma mãe que havia perdido um filho, jovem cidadão americano, defendendo as armas de seu país no distante Oriente Médio. Coube a ela definir os dois lados da questão política. A mensagem não era o de uma mãe de luto mas a de que nós estamos morrendo do outro lado do mundo. Sheehan nos deu uma lição. Se, nós, da esquerda, estamos dispostos a mobilizar recursos para manifestações ambiciosas, estas não podem mais se resumir a uma atividade em que a polícia lhe diz aonde você pode andar, por tempo determinado, você ouve algumas pessoas e pronto. Veja bem, eu vou fazer exatamente isso amanhã para marcar os 40 anos dos primeiros protestos contra a Guerra do Veitnã. Mas nós precisamos ir além.

- Valor: O senhor é um acadêmico militante, um intelectual que vai às ruas, artigo cada vez mais raro nos dias de hoje...
- Duncombe: Eu me vejo como um militante, um organizador político, não muito diferente do que meu avô e meu pai foram. Mas entendo que os meios agora são outros. Vamos pensar no último suspiro das grandes manifestações: os protestos anti-globalização, contrários à OMC, ao FMI. Aquela gente que ocupou as ruas de Seattle se movia de modo muito singular – parecia que estavam em pleno Carnaval. A rua, hoje, para a esquerda do século XXI, precisa ser cada vez mais o espaço da festa, da celebração. Precisamos convencer o eleitor de que nós, os progressistas, ainda podemos fazê-lo acreditar que política pode ser um exercício prazeroso. Mas para isso precisamos estar lá também, ocupar o palco.

- Valor: Já há alguns anos São Paulo vem realizando a maior parada de orgulho homossexual do planeta. Mas seus organizadores são criticados pelos que vêem na crescente carnavalização do evento uma prova de esvaziamento de sua mensagem política...
- Dunconmbe: Mas é exatamente o oposto! E sua pergunta já carrega o dado mais importante sobre o impacto das novas manifestações – as pessoas comparecem! E o trabalho de um ativista político em uma democracia é levar as pessoas para a rua e fazer com que sua voz seja ouvida. Não podemos mais confundir organização social com a criação de sub-culturas que não têm o poder de afetar a cena política. As manifestações de solidariedade às primeiras vítimas da AIDS no começo dos anos 80 me marcaram muito. As pessoas estavam com raiva, seus amigos morrendo, mas elas ocuparam as ruas com um espírito de festividade e até com certo sex appeal. Muitos dos manifestantes trabalhavam em empresas de propaganda e marketing. Eles conseguiram ultrapassar a dor da morte e levar para o mundo da esquerda algo ainda maior, a vontade de viver. O que quero dizer é que a alegria das ruas precisa fazer parte de nosso vocabulário se de fato quisermos novamente tocar as pessoas. Não há nada de errado em tratar de temas que afetam seriamente a todos nós ao som de disco music. Politizar o carnaval, como fizemos com o Bilionários Por Bush, parece-me ser essencial. Agora, é importante perceber que não estamos propondo substituir a pressão política pelo espetáculo. Aquela está mais do que presente, na hora de mostrar para o político que seus eleitores estão celebrando em torno de uma idéia que queremos ver implantada o mais rapidamente possível.



- Valor: Sua dreampolitik prega a necessidade de a esquerda explorar os aspectos progressistas da cultura mais comercial. O senhor não acredita que ‘apropriação da cultura popular’ pode-se confundir com ‘populismo cultural’ - algo que parece permear, por exemplo, o chavismo na Venezuela?
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Dunconmbe: Sim, o risco é imenso. Mas precisamos arriscar. Nós, os progressistas, estamos diminuindo de tamanho mundo afora.

- Valor: Mas a América Latina nunca foi governada por tantos esquerdistas e os democratas acabaram de vencer as eleições para o Congresso aqui nos EUA...
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Dunconmbe: O Partido Democrata venceu as eleições por conta da falência do discurso conservador dentro de um Partido Republicano dividido, e não pela aceitação dos valores liberais pelo eleitorado americano. E isso deve se repetir no ano que vem, um democrata quase que certamente vai ser o sucessor de George Bush, mas, e depois de quatro anos? Mas, voltando à sua pergunta, o grande risco é encararmos o espetáculo como o substituto do sonho, como fizeram os fascistas e como a sociedade de consumo faz diariamente. Pense em George Bush descendo com roupa de aviador militar no porta-aviões Abraham Lincoln em 2003 para declarar ‘missão cumprida’ no Iraque. Nosso problema é que neste exato momento a direita detém o monopólio do espetáculo. Nós ficamos do outro lado, confinados à realidade, enquanto a maior parte da sociedade abraçava a simbologia fácil oferecida pela Casa Branca. O que precisamos é repensar o artesanato do espetáculo e o utilizarmos de forma inteligente, dramatizando a realidade, de forma ética, em nosso favor. Cultura pop não é tão ruim assim. É possível ultrapassar o consumismo, a fixação com o lucro, a manipulação de nossos medos coletivos, e explorar as possibilidades que a linguagem dos videogames e a troca de músicas digitais nos oferecem. Pense nas políticas de copyyleft e na abordagem das possibilidades do mundo digital feitas pelo ministério da Cultura do Brasil. Tenho seguido com muito entusiasmo a linha de pensamento do Gilberto Gil, sua posição sobre o que é pirataria e o que é troca de informação.

- Valor: Sua mensagem de que a esquerda precisa continuar sonhando parece-me especialmente interessante no cenário brasileiro, já que há uma sensação forte de que o primeiro mandato do presidente Lula, com a crise ética enfrentada pelo governo e pelo PT, acabou disseminando a idéia de que todas as facções políticas são iguais...
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Dunconmbe: Veja bem, como um humilde esquerdista norte-americano eu só posso suspirar e desejar que um dia tenhamos a chance de chegar ao poder como a esquerda brasileira o fez. Aqui nos EUA não nos preocupamos em manter-nos puros, pois não há corrupção sem poder. E não temos poder algum. Lula chegou ao poder vendendo o sonho e teve de se afinar com o mercado. Ele hoje é considerado o mais conservador dos esquerdistas eleitos na América Latina, mas isso me interessa menos do que descobrir com quem foram parar as idéias de mudança que ele sempre defendeu. O Lula que chegou ao poder é também fruto de idéias grandiosas de educação gratuita de boa qualidade para todos, do fim da fome. Parece insano, fantasioso, mas é assim que se pressiona por reformas de fato. O lugar deixado por Lula precisa ser ocupado por uma extrema-esquerda que continue sonhando. Pense no México. Você tinha Lopez Obrador como candidato das esquerdas e ao mesmo tempo os zapatistas mantendo uma posição de pragmatismo onírico: vá negociar com eles, enquanto nós continuaremos sonhando. A extrema-esquerda brasileira, creio, deveria tentar manter o fogo aceso. Ou seja, apoiar Lula no que puder, porque poderia ser muito pior sem o PT, e entender a diferença entre purismo ranzinza e a necessidade vital de se abraçar novamente a utopia.

-Valor: Há uma sensação de que se vive uma crise dos valores iluministas na sociedade capitalista contemporânea. Qual é, afinal de contas, em sua opinião, a Ética que devemos defender e praticar nesta nossa ‘idade da fantasia’?
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Dunconmbe: Os valores iluministas, por si só, não cabem mais em nossa sociedade multifacetada. A esquerda precisa ser menos a viúva do iluminismo e voltar a rufar os tambores iconoclastas. Vamos abraçar a utopia de Eduardo Galeano em As Palavras Andantes, quando ele escreve que ela está no horizonte. Ele dá dois passos e a utopia se distancia também, ou seja, ele nunca a alcançará, mas ela, nos ensina o escritor uruguaio, nos serve para isso: a utopia nos faz caminhar! Este é o objetivo maior da apropriação ética do espetáculo defendida em Dream – representar o sonho, criar uma ilusão que nos ajude a seguir em frente e que nada tem de desilusão. De certo modo, foi o que a direita fez aqui nos EUA. Eles criaram a idéia deste mundo sem sexo, sem aborto, sem Darwin, sem Estado. Nossa sociedade não retrocedeu tanto assim, mas ao manter o sonho aceso eles ajudaram a se criar a ilusão de que esta é uma possibilidade concreta. E moveram peças importantes no tabuleiro político nacional. Isto é fazer política nos tempos de hoje.