sexta-feira, novembro 18, 2005

Diretinho da Redação (35)


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Dois Grandes Filmes Chegando ao Brasil

Acontece em um átimo de segundo. São detalhes de cenas maiores e aparecem por ali quase que por descuido, mas a intenção dos diretores é clara. Em “Walk The Line”, um quadro emoldurado com a foto de Johnny Cash, e não do ator que o encarna nas telas, Joaquin Phoenix, escorrega por suas mãos quando ele tenta resgatar suas memórias em mais uma batalha contra a dependência química. Em “Capote”, a contra-capa de ‘A Sangue Frio’, o livro que mudou para sempre a literatura e o jornalismo contemporâneo, revela a foto de Truman Capote enquanto olhamos para Philip Seymour Hoffman, o ator que investiu todos os seus dimes na produção da biografia do escritor de Nova Orleans.

Os filmes, que estréiam no Brasil no início do ano que chega, receberam um tratamento mais do que especial da crítica e dos colegas de Hollywood. “Capote” não é um sucesso de público. A narrativa é mais lenta do que os grandes estúdios gostariam e os americanos ainda se incomodam com uma história centrada no assassino Perry Smith e não na família por ele dizimada na zona rural do Kansas. “Walk The Line” estréia por aqui nesta sexta-feira, mas na noite de gala a surpresa ficou por conta da maneira com que o filme evita a tentação de se contar a velha do história do ídolo pop que encontra na religião e no casamento convencional a salvação para seus temores.

“Capote” e “Walk The Line” se destacam, nestes tempos de fundamentalismo religioso, pela ausência da lição de moral. Truman Capote é um homossexual afetado na virada dos anos 50, manipula habilmente os assassinos para conseguir fama e produzir uma obra-prima, mas em nenhum momento é demonizado por Hoffman. E o Johnny Cash de Phoenix – que, sim, dá a voz, de forma brilhante, aos sucessos do ‘homem de negro’ – se redime pela bondade, pelo contato humano, pela concessão à intimidade, mas que jamais perde a nuvem negra que o acompanhou vida afora. Os dois atores têm sido saudados como candidatos fortes ao Oscar de março. Não por acaso, os diretores Bennett Miller e James Mangold nos mostram, ainda que rapidamente, as imagens das personalidades que de fato existiram, oferecendo ao espectador a possibilidade de embarcar, com conhecimento de causa, na fantasia de duas horas de cinema. Nos dois casos, vale a pena comprar o tíquete.

O Show de Truman



O texto abaixo, sobre o filme 'Capote", escrevi para o caderno "Eu & Fim de Semana", do Valor Econômico, que acaba de chegar às bancas. A ilustração é do "Valor".

Eduardo Graça, de Nova Iorque, para o Valor.

O Show de Truman

Há uma grande cena em “Capote”. Ela se dá quando a primeira-amiga Harper Lee, vencedora do prêmio Pulitzer por “To Kill a Mockingbird”, joga o escritor contra a parede, provocando-o sobre o mito de que teria se tornado amante do assassino Perry Smith, matéria-prima de “A Sangue Frio”. “Eu não me apaixonei por ele. De certa forma, eu SOU ele. É como se nós tivéssemos sido criados na mesma casa, mas Perry saiu pela porta dos fundos e eu pela entrada principal”, responde o ator Philip Seymour Hoffman, em uma interpretação magistral. Ele lembra que, exatamente como o descendente de índios acusado de dizimar uma família no Kansas em 1959, também havia sido abandonado pela mãe. E que, como boa parte da família do assassino, esta cometera suicídio. Nada mais distante do jet-set de Manhattan do que a vida do zé-ninguém do meio-oeste. Mas ao encontrá-lo ele experimentara de modo intenso o paradoxo da nova sociedade americana, perdida no êxtase de seu próprio individualismo. O diálogo foi inspirado no trabalho do jornalista Gerald Clarke, escritor e amigo de Truman Capote, autor da biografia definitiva do atormentado filho de Nova Orleans que virou a literatura e o jornalismo de pernas para o ar.

De sua casa em Bridgehampton, no norte do estado de Nova Iorque, Clarke, colaborador bissexto das revistas ‘Time” e “Esquire”, conversou com o Valor sobre Capote, sua influência na inteligência norte-americana e a emergência de uma certa ‘capotemania’ que, ironicamente, não tem ajudado muito a engordar a bilheteria do bom filme de Bennet Miller. A Barnes&Noble anunciou que os títulos de Capote – entre eles “Bonequinha de Luxo” – estão saindo 30% a mais do que o normal e “A Sangue Frio”, de 1966, foi o livro mais vendido da rede de livrarias na semana em que o filme entrou em cartaz nos Estados Unidos. Outro campeão de vendas é o relato de Clarke, intitulado “Capote: uma biografia”, publicado em 1986, dois anos após a morte do escritor, e que acaba de ser reeditado com uma foto gigantesca de Hoffman – e quem mais? – estampada na capa e mais de 30 mil novos exemplares encomendados nos últimos 20 dias.

“Veja bem, Philip Seymour Hoffman é um tremendo Truman Capote. Digo mais, ele é assustadoramente exato”, diz Clarke. Para encontrar o tom de seu personagem, Hoffman se debruçou sobre as cassetes gravadas por Clarke quando entrevistou, seguidamente, o autor de ‘A Sangue Frio’. O resultado é um passo – ou dois – à frente das corriqueiras imitações do falsete de Capote, uma das brincadeiras favoritas de professores de literatura norte-americana das escolas da Ivy League. “É engraçado isso tudo. Eu passei centenas de horas com o Truman e quando me pediram para definir quem ele era eu...eu simplesmente não conseguia dizer nada. Ele era tantos em um só. Um artista e um estilista como poucos, talvez o maior de sua geração. Era também muito generoso e, às vezes, malicioso além da conta. Ele adorava publicidade, mas odiava quando ela se voltava contra sua vida privada. Ele era mesmo único”, recorda Clarke.

Quando Clarke se tornou amigo de Capote, este já era uma caricatura do monstro social dos anos 50 e 60. Vivia isolado, abandonado pelos amigos, refém da bebida, dos barbitúricos e dos anti-depressivos. O primeiro contato foi para uma série de perfis dos grandes escritores do século, um projeto da ‘Esquire’. Lá estavam Vladimir Nabokov, Woodhouse, Ginsberg. E Capote. Clarke quis mais. E propôs a biografia, desde que ajudado pelo arredio escritor. Capote aquiesceu. “Em nossos encontros percebi que ele sempre arrumava um jeito de me dizer que este tal de Capote era mais uma criação sua. E que era mesmo difícil para as pessoas lidarem com alguém que, mais do que tudo, recusava-se a ser um cidadão comum. Ele então me dizia que havia apenas um único T.C. Que jamais houve alguém como ele antes e que não haveria um novo Capote”, lembra Clarke.

O biógrafo também escreveu “Too Brief a Treat”, em que reuniu pela primeira vez, no ano passado, as cartas do escritor por mais de quarto décadas, no que pode ser tomado como uma, vá lá, ‘quase-autobiografia’. Os destinatários são gente como Jacqueline Kennedy Onassis, Tennessee Williams, Audrey Hepburn, Gloria Vanderbilt, Cecil Beaton, seu companheiro Jack Dunphy, o detetive de Kansas Alvin Dewey e, claro, Perry Smith. Mas, para além das fofocas, o livro revela um Capote dadivoso a ponto de aconselhar o filho mais velho de Dewey, que sonha em se tornar escritor: “Não há nenhum problema em gostar de má literatura. Eu mesmo adoro Agatha Christie e Ian Fleming. Mas você não pode jamais deixar de lembrar que eles são maus escritores”.

Clarke ainda se impressiona com as dicas aparentemente banais de Capote, um profissional que primava pela disciplina. “Não é exagero dizer que ele modificou a literatura e o jornalismo de tal modo que poucos jovens podem compreender nos dias de hoje. Antes de “A Sangue Frio”, escritores talentosos e ambiciosos achavam que a única maneira de alcançarem sucesso e reconhecimento seria publicar um romance. Todos estavam à procura do novo Faulkner, do novo Hemingway. Isso acabou”, diz.

Quando vislumbrou o que seria “A Sangue Frio”, Capote almejou escrever um livro que reuniria a credibilidade da reportagem ao imediatismo do cinema, à precisão da poesia e à profundidade e liberdade da prosa. Como enfatiza Clarke, trata-se de um dos mais ambiciosos projetos da literatura ocidental. De fato, não há como se pensar no ‘novo jornalismo’ – termo que ele abominava, a ponto de qualificar um de seus protagonistas, o escritor Tom Wolfe, de ‘analfabeto da técnica literária’ – mas também na reportagem policial, na indústria das celebridades e na televisão-verdade sem “A Sangue Frio” e sua acachapante narrativa da morte dos quatro membros da família Clutter, assassinados nos cafundós do Kansas por dois jovens desajustados. Para Capote, lembra Clarke, “A Sangue Frio” seria o instrumento que o tornaria um escritor verdadeiramente popular, algo que um rival que invejava – o também homossexual e bem-nascido Gore Vidal – jamais alcançou.

O editor-chefe da Carroll & Graf, Philip Turner, que detém os direitos do livro de Clarke, sublinha a atualidade de “A Sangue Frio” e sua ‘ode à ambigüidade’ quando busca entender o sucesso de Capote nas prateleiras das livrarias americanas neste outono de 2005. Os leitores, lembra, andam mais do que intrigados sobre como os jornalistas lidam com suas fontes, especialmente depois que Judith Miller, uma das estrelas do ‘The New York Times”, foi parar na cadeia para proteger a identidade do auxiliar mais próximo do vice-presidente Dick Cheney. Miller acabou se divorciando do jornal mais importante dos EUA em uma novela que envolveu o desmascaramento de uma agente secreta da C.I.A. e a manipulação da imprensa pelo governo republicano. “Depois de “A Sangue Frio” os jornalistas americanos, alguns mais outros menos talentosos, procuram quase sempre trazer para seu trabalho as técnicas da ficção. Mas muitas vezes, devo admitir, elas estão no texto apenas para disfarçar a preguiça da apuração exata, algo extremamente caro para o Truman”, diz Clarke. No livro de Capote, a ambigüidade começa a partir do fato de que sua principal fonte é um dos assassinos.

Como nos mostra ‘Capote”, o filme, “A Sangue Frio” modificou a vida de seu autor para sempre. Rico, morreu aos 59 anos, em 1984, e nunca mais publicou livro algum. Viveu 19 anos atormentado pela idéia fixa de que ‘apesar de não ter podido fazer nada para evitar a execução dos assassinos de Kansas, apenas a morte deles poderia tornar seu relato o mais importante de sua geração’. De certa forma, lembra Clarke, era como se carregasse para sempre a culpa de ter, ele também, participado de forma decisiva daquela tragédia americana. Ou, como lhe disse certa vez, ‘se soubesse o quanto aquele livro me atingiria emocionalmente, eu jamais teria começado a escrevê-lo”.