quinta-feira, setembro 22, 2005

Diretinho da Redação (30)

O texto abaixo já pode ser lido no Direto da Redação

As Voltas que o Tempo Dá

Às vezes é assim mesmo. A gente fecha os olhos e, quando olha novamente o mundo do lado de fora, parece que entrou em uma daquelas máquinas do tempo bem fuleiras, típicas dos filmes de ficção científica dos anos 60. Na televisão, um descabelado Bob Dylan canta ‘Blowin’in the Wind” anunciando que o novo sempre vem, na promoção de lançamento do aguardado documentário de Martin Scorsese. No sul do país começam os julgamentos de uma série de imbecis racistas responsáveis pelo linchamento de estudantes negros e ativistas pelos direitos civis quarenta anos atrás. E nas ruas de todos os Estados Unidos mães e jovens dão-se as mãos para protestar contra uma guerra sem sentido, a milhas e milhas de suas casas.

A amarga sensação de déja-vu me bateu ainda mais forte nesta segunda-feira, com a polícia prendendo manifestantes em plena Union Square. Cindy Sheehan, a mãe de Casey, soldado de 24 anos morto no Iraque, que ficou famosa por passar o verão acampada na frente do rancho de George W.Bush, estava lá. Esta era sua parada nova-iorquina em uma gigantesca viagem de ônibus que ela está fazendo por todo o país, sempre lançando no ar a mesma questão: o que nossos meninos ainda estão fazendo no Iraque e no Afeganistão?

Em Manhattan, Cindy não conseguiu terminar seu discurso. Os policiais, obedecendo uma determinação da administração republicana de Michael Bloomberg, cortaram-lhe o microfone. A justificativa era que os manifestantes não tinham uma licença especial para ficar incomodando os compradores das lojas vizinhas da Virgin Megastore e da Barnes & Noble. Enquanto centenas de ativistas políticos e consumidores em potencial gritavam juntos ‘Vergonha, Vergonha!”, o líder esquerdista Paul Zulkowitz foi levado de camburão para a delegacia – acusado de ‘promover a desordem em praça pública’.

Quando ainda podia falar, Cindy criticou a senadora Hillary Clinton por seu apoio à invasão do Iraque e à permanência das tropas em Bagdá. Depois contou que já percorreu 51 cidades em 28 estados do país, e que não pretende parar tão cedo. Em cada bairro ela descobre uma nova história, faz uma nova amizade, recebe o apoio de mais mães e familiares de soldados. Pode até ser um exagero de quem acaba de voltar de uma intensa viagem de algum lugar do passado, mas, com sua caravana, mamãe Cindy vai se tornando uma imagem importante no jogo político norte-americano. Como ela mesma diz, neste vaivém incessante de passado e futuro, 2008, afinal de contas, é logo ali.

terça-feira, setembro 20, 2005

Etica, Liberdade & Verdade

O texto abaixo, de César Benjamin, publicado na "Caros Amigos" de Setembro, me foi enviado pela querida Ana Cristina Machado. Belíssimo:


A diversidade de comportamento dos seres humanos sempre foi um enigma. Todos os outros seres, existentes na natureza, apresentam comportamentos de espécie, repetitivos, limitados, com possibilidade quase nula de variações individuais. O homem, porém, como diz Lévi-Strauss, é o único que, ao nascer, pode viver mil vidas diferentes. Qualquer um de nós poderia ser Mozart, qualquer um poderia ser Hitler. A criação de sinfonias e a perpetração de genocídios são possibilidades inscritas em nossa mais íntima constituição.

A constatação da diversidade humana foi feita, ao longo da história, por filósofos, historiadores, cronistas e viajantes, quase sempre como curiosidade. Passou a ser uma interrogação politicamente relevante no mundo ocidental quando se formaram os gigantescos impérios multinacionais centrados na Europa. Compreender as diferenças e manejar comportamentos desiguais tornaram-se desafios relevantes para quem precisava gerenciar sistemas de poder muito abrangentes.

As primeiras tentativas sistemáticas nesse sentido buscaram explicações no corpo dos indivíduos, no contexto da antropologia física. Sua culminância foi a construção do conceito de raças humanas, o mais importante e mais desastrado empreendimento das ciências sociais européias no século XIX. Ecos desse desacerto nos assombram até hoje. Estudos detalhados da fisiologia do cérebro e até do formato do crânio, para relacioná-los ao caráter de cada um, e medidas de inteligência, que tiveram respeitabilidade até a segunda metade do século XX, completaram as tentativas de localizar nos corpos de indivíduos e grupos a origem da diversidade humana.

A superação desse caminho, pela antropologia cultural, teve como ponto de partida a constatação de que o homem não apenas age, como os demais animais, mas interpreta sua ação. Todas as ações humanas são ações interpretadas, e ao mesmo tempo todas resultam de uma interpretação. Compreender o comportamento humano exige compreender os sistemas de interpretação construídos pela imaginação do próprio homem, o que nos remete ao universo simbólico, que é constitutivo da nossa existência tanto quanto o nosso corpo físico.

Por isso, quando tratamos do homem, qualquer discussão sobre o ser engloba necessariamente a questão do dever ser, aspectos indissolúveis. Este é o fundamento ontológico da ética, que desde Platão e Aristóteles ocupa um lugar de destaque na investigação sobre nós mesmos. Ethos, em grego, designa a morada do homem. Uma das sentenças mais antigas de Heráclito diz que “o ethos é o gênio protetor do homem”. Os gregos da idade clássica enxergaram aí uma verdade que convém nunca esquecer: seres vocacionados para a liberdade são livres para se destruir. Por isso, o espaço do mundo só se torna habitável, para esses seres, se eles se abrigarem no domínio do ethos.

Ao contrário do que nos dizem os marqueteiros todos os dias, para vender políticos e bugigangas, o mundo da liberdade não é aquele em que o homem faz o que quer ou faz o que é capaz de fazer em desabalada competição com os demais. É aquele em que o potencial criador se exerce dentro de um espaço culturalmente delimitado, socialmente legítimo, em que o certo e o errado, o bem e o mal estão definidos com suficiente clareza. Esse espaço não é rígido e imutável, é claro, mas precisa existir sempre. Fora dele o que se tem é a anomia e a ruína.

Com o descalabro do governo Lula, parece que nos aproximamos um pouco mais dessa temida situação que não queremos sequer conceber. É verdade: comissões parlamentares funcionam, o Ministério Público diz que investiga e a Justiça se mexe com os seus cuidados tradicionais, todos em busca de provas positivas e irrefutáveis que permitam avaliações supostamente sóbrias, baseadas na verdade dos fatos, exaustivamente demonstrada. Dificílima tarefa, muitas vezes impossível de ser cumprida, pois em princípio nenhuma afirmação factual pode estar além da dúvida. Aliás, como nos mostra a atividade política, freqüentemente as mentiras são mais plausíveis do que as verdades, que só vêm a público como exceção. Há um limite estrutural no funcionamento das instituições, entretanto necessárias em situações normais.

Todo cuidado é pouco. Silenciosamente, o Brasil pode estar transitando para além disso tudo, embora nos faltem os conceitos para expressar esse passo. Talvez a sociedade, em algum momento, busque socorro em possibilidades mais amplas, forçando os limites do que hoje se considera pensável. Talvez se canse da mentira e procure reencontrar uma verdade sua. Não será, certamente, a verdade dos letrados. Como será ela?

Os antigos persas usavam uma palavra que é traduzida como verdade: rta. Mas rta, para eles, também significava a potência que assegura que o Sol nasça a cada manhã, os princípios ordenadores que mantêm o universo funcionando, o conjunto de valores que liga pessoas e gerações, e outras verdades não passíveis de prova, sem as quais, porém, a existência é impossível. Na vida real, as verdades que resultam da experimentação científica, a qual serve de modelo para o nosso sistema jurídico, convivem com muitos outros tipos de verdade, entre as quais se destacam a tradição, a evidência e o bom senso. Ninguém pode provar que o Sol nascerá amanhã – como mostrou Poincaré, não se pode provar a estabilidade do sistema solar –, mas se não acreditarmos nisso a vida se torna inviável.

As verdades que podem ser provadas são apenas uma pequena parcela das verdades de que necessitamos para viver. Isso vale também para a sociedade. Se as instituições em vigor, com seus procedimentos formais, não forem capazes de favorecer um ambiente propício à vida em comum, se as únicas verdades que conseguem encontrar e aceitar são aquelas que as conduzem à impotência diante da grande crise, a sociedade poderá apelar à rta – aquela verdade-evidência que se impõe por seu peso e clareza –, baseando nela as suas decisões e ações. Foi o que os argentinos fizeram quando gritaram: que se vayan todos!

Se quisermos sair da crise, precisamos redescobrir urgentemente os significados mais amplos de conceitos fundamentais, como ética, liberdade e verdade.

César Benjamin é autor de A opção brasileira (Contraponto, 1998, nona edição) e Bom combate (Contraponto, 2004). Integra a coordenação nacional do Movimento Consulta Popular.