quarta-feira, dezembro 24, 2008

O TRISTE FIM DA ERA BUSH/Carta Capital

A Carta Capital publicou esta semana, na capa, minha reportagem sobre o último mês do governo Bush II e o fim da era neo-con em Washington.

Ó só:

O TRISTE FIM DE UMA ERA
Por Eduardo Graça, de Nova York

Madison Square Garden lotado, quase terça-feira de uma noite gélida em Manhattan, e Neil Young interrompe subitamente a série de clássicos de seu repertório para encarar o público com uma pergunta direta: “Gente, para onde foi todo o dinheiro?”. Pasma, a audiência, que vinha cantando alegre os refrões de Hey, Hey, My My e Cinnamon Girl, cala-se para ouvir o bardo de 63 anos apresentar sua nova melodia, composta em cima de questões como Onde está o dinheiro?/E o lucro, com quem ficou? A nova música de Young – Cough Up The Bucks – traduz com exatidão o sentimento de milhares de nova-iorquinos, ainda em estado de choque com a revelação do que deve ser o maior esquema em pirâmide da história do capitalismo, um rombo de US$ 50 bilhões, orquestrado nas barbas do governo Bush, em meio a uma crise financeira de proporções gigantescas.

O que nem os velhos hippies poderiam sonhar é que na semana em que mais um nome graúdo de Wall Street, o administrador de fundos Bernard L.Madoff, entraria para a lista de vilões de uma era com fim oficial marcado para o próximo dia 20 de janeiro, um jornalista iraquiano de uma das mais pobres comunidades de Bagdá seria tratado como herói no mundo árabe ao jogar seus sapatos no presidente Bush em uma conferência de imprensa na capital iraquiana. O encontro fazia parte do que os meios de comunicação norte-americanos apelidaram de Turnê do Legado, ou, em versão mais maldosa, Magical Lagacy Tour (uma referência ao famoso álbum Magical Mistery Tour, dos Beatles), uma iniciativa da administração republicana de destacar o que consideram os aspectos positivos dos oito anos de neo-conservativismo em Washington. Nos últimos dias, o presidente e o vice, Dick Cheney, deram seguidas entrevistas às redes de tevê aberta mais importantes dos EUA, justificando a invasão do Iraque, batendo na tecla de que a segurança interna do país foi fortalecida, celebrando a redução de impostos para os mais ricos, os 52 meses seguidos de criação de empregos e até mesmo assumindo o uso de métodos de tortura como o afogamento simulado contra prisioneiros de guerra.

O equívoco de se fazer um balanço dos oito anos de governo, prática comum na democracia americana, é gritante no caso de Bush, de acordo com o colunista da Newsweek Howard Fineman, porque “ele simplesmente não tem uma grande história para contar. Sua herança, na narrativa dos próprios republicanos, se reduz ao fato de que os EUA não foram atacados em solo americano uma segunda vez”. O jornalista lembrou ser no mínimo contraditório o presidente se vangloriar pelo fato de ter levado a guerra contra o terror para o Oriente Médio, bem longe do solo americano. Quando questionado pelo entrevistador da ABC de que a Al-Qaeda somente entrou em território iraquiano após a invasão americana a resposta de Bush foi emblemática: “E daí?”.

Em uma semana de imagens fortes, nada se comparou ao gesto catártico do jornalista Muntander al-Zaidi, a sapatada “em nome das viúvas iraquianas”. Depois de levar uma surra dos seguranças do primeiro-ministro Nuri al-Maliki, o repórter televisivo foi detido e pode ser condenado a pena de até oito anos por agressão física contra um líder estrangeiro em visita oficial ao país. Tratado como herói nacional em todo mundo árabe, Maliki e seus sapatos jogados contra Bush foram mais ou menos discretamente saudados até mesmo nos órgãos de imprensa aqui dos EUA, com a ressalva de que ‘não se deve cair na tentação de se comemorar um ato desrespeitoso contra o primeiro-mandatário do país’. Além das piadas nos talk-shows, da proliferação de jogos pela internet em que o usuário, ao contrário do jornalista, de fato acerta os sapatos no presidente, a imagem transformou-se na “mais icônica da Era Bush, pois captura como nenhuma outra o sentimento do mundo em relação ao nosso presidente”, de acordo com o editor-associado do Washington Post Eugene Robinson.

Do outro lado do Atlântico, o prêmio Nobel José Saramago, em seu blog, escreveu que ‘Maliki, fique seu nome para a posteridade, encontrou a maneira mais contundente e eficaz de expressar seu desprezo - o ridículo ‘. O autor de Ensaio sobre a Cegueira ainda sugere que “um par de pontapés tampouco estariam mal”, mas o ridículo, lembra, “é para sempre”. “Esta é, sim, a imagem definitiva das aventuras de Bush no Iraque. Mas talvez este episódio sirva também de guia para o que nosso presidente fará, afinal, depois de janeiro. Quem sabe ele não se torna um garoto-propaganda da Nike, criando o mote ‘mais sapatos! Mais tênis! É só jogar?”, sugere o humorista Harry Shearer, a voz de Mr.Burns no desenho Os Simpsons, que lança este mês o disco Songs of the Bushmen, uma crônica dos agitados tempos de George W.Bush,

Enquanto o ex-presidente anunciava que, logo após deixar o governo, começará a escrever uma auto-biografia, o vice Dick Cheney, que muitos analistas dizem ter sido a verdadeira força política na Casa Branca desde 2001, reconheceu em entrevista para a rede ABC a autorização do uso de afogamento simulado contra prisioneiros, um ato inédito na história dos EUA. É a primeira vez que um funcionário público admite o uso de tortura, segundo ele “com resultados extraordinários”. “Se os sapatos são a imagem final de Bush, este é o legado de Cheney – Washington admitindo o uso de tortura. Mas há ao menos um lado positivo aqui: ele ofereceu a oportunidade de a democracia se aperfeiçoar, de se corrigir um erro imenso. Cheney escancarou os portões de um dos fundamentos da democracia, a prestação de contas”, apontou o jornalista Ron Suskind, autor de The Way of the World e ganhador do Prêmio Pulitzer de Jornalismo.

O senador democrata Carl Levin, comandante do comitê das Forças Armadas no Congresso, anunciou na quarta-feira que o relatório resultante da investigação parlamentar sobre a autorização do uso de tortura pelas forças armadas dos EUA, encerrado este mês, será cuidadosamente analisado pelo futuro Defensor-Geral da União, a ser nomeado por Barack Obama. É que o atual, Michael Mukassey, de acordo com Levin, simplesmente “não demonstrou interesse pela questão”. O senador revelou ainda que o novo presidente deverá instaurar uma comissão exclusivamente para a investigação de práticas de tortura pela C.I.A.

É justamente o descaso em relação à prestação de contas que vem exasperando os norte-americanos. O Washington Post publicou pesquisa revelando que 70% da população aprova a retirada das tropas do Iraque paulatinamente nos próximos 16 meses e a reação do vice-presidente Dick Cheney foi outro direto “e daí?” em rede nacional de tevê. “E a idéia que se tenta vender agora de que a Doutrina Bush é uma espécie de terceira via, em que se lutou contra o terrorismo enquanto se semeava democracia no Oriente Médio simplesmente não se fundamenta. Durante a era Bush viu-se um aumento do terrorismo em escala planetária, inclusive contra americanos, no Iraque, no Afeganistão, em Londres, em Mumbai”, diz Richard Wolfe, o principal correspondente da Newseek em Washington.

As coisas pioram quando os republicanos tentam valorizar seu recorde econômico. Em suas entrevistas Bush defendeu a estratégia de diminuir os impostos para os mais ricos com o objetivo de estimular a movimentação econômica, deixando de lado os 1,9 milhões de postos de emprego que desapareceram no período em que ocupou a Casa Branca. Mais grave: sequer trata da crescente desregulamentação e dos pacotes de ajuda ao mercado financeiro no momento em que o maior esquema de pirâmide é desbaratado desde as confusões na Albânia pré-capitalista nos anos 90, fazendo vítimas famosas como Steven Spielberg e contaminando setores inteiros da economia, como o imobiliário. Para o cidadão comum, como o diretor de design Andrew James Slater, 38 anos, fica a sensação da platéia do show de Neil Young, de que “uma das claras heranças deste governo é a eliminação de métodos de regulação que permitiram à escória deste país desvirtuar a idéia do sonho americano”.

A emergência do que Slater chama de ‘socialismo para ricos’, dos grandes pacotes de ajuda ao sistema financeiro e à indústria, se tornou especialmente emblemático esta semana quando detentores de cartão de crédito com a marca Citibank receberam cartas anunciando o aumento dos juros à pessoa física em caso de atraso d epagamento, que podem chegar ao dobro da taxa anterior. E o banco recebeu aquela que é considerada a maior ajuda financeira da história do governo americano no mês passado. “Bush chegou a Washington para inaugurar uma nova era de responsabilidade pessoal. Pois em oito anos, ele não parece ser responsável por coisa alguma, é tal qual um Forrest Gump de sua própria administração, um espectador passivo que, sobre o desastre econômico, não tem nada mais a dizer do que ‘sinto muito que isso aconteceu’”, esbravejou Frank Rich, um dos críticos mais contundentes do governo Bush, em sua coluna no New York Times.

Uma das cenas mais constrangedoras da semana foi a admissão do presidente da SEC, Christopher Cox, o organismo governamental de regulação da Bolsa de Valores, responsável por evitar fraudes como a comandada por Bernard Madoff, de que ‘deveria ter percebido os sinais’ de que algo estava errado com os números que não batiam nos investimentos gerenciados pela Madoff Investment Securities. A lógica da pirâmide – em que investidores são pagos com o dinheiro aplicado pelas próximas vítimas até que, em tempos de vacas magras, não há mais dinheiro a ser resgatado, com o capital desaparecendo os livros e telas de computador como que por mágica – é tão primária que ninguém entende como o SEC não atentou para o fato de que a M.I.S. tinha muito menos em caixa do que os US$ 17 bilhões declarados em 2007. Especialistas no mercado financeiro acreditam ser impossível Madoff ter agido sem ajuda externa.

Curiosamente, o mesmo Mukassey que não se interessou pela investigação sobre o uso de tortura nas Forças Armadas anunciou, na quarta-feira, sua desistência em presidir as investigações contra Madoff, já que seu filho, Marc, é um dos advogados do escritório de advocacia Bracewell & Giuliani (do ex-prefeito de Nova Iorque e pré-candidato republicano à presidência dos EUA Rudolph Giuliani). Um dos clientes da firma é Frank Di Piscali, executivo da M.I.S.

Um legado da Era Bush que parece mais vivo do que nunca é a prática do nepotismo. Se Barack Obama quebra os 28 anos de Casa Branca ocupada ora por um Bush (incluindo George pai, como vice de Reagan por oito anos e presidente por outros quatro) ora por um Clinton, suas escolhas para o primeiro gabinete democrata desde 1992 transformou o Senado no que a imprensa apelidou de nova Câmara dos Lordes. Em Nova Iorque, os candidatos mais fortes para assumirem o lugar de Hillary Clinton, a nova Secretária de Estado, são Caroline Kennedy (a filha do ex-presidente John F. Kennedy, que está fazendo campanha abertamente e espera ser a nova representante da família na Câmara Alta do Congresso americano, já que o tio Edward, um dos maiores entusiastas da candidatura Obama, está com câncer no cérebro e não se candidatará à reeleição em Massachussetts) e Andrew Cuomo, filho do ex-governador Mario Cuomo, e ex-marido de Kerry Kennedy, uma das filhas do ex-senador Robert F. Kennedy.

A comparação com a nobreza britânica aumenta quando os democratas afirmam abertamente que a principal qualificação da filha de JFK é o fato de ela poder arrecadar US$ 30 milhões com facilidade para a disputa que enfrentará, nas urnas, em 2010, contra um republicano. No Colorado, o irmão do senador Ken Salazar, escolhido pelo presidente eleito para ser o novo Secretário do Interior, o deputado John Salazar, deve ser o escolhido pelo governador do estado para ocupar a vaga aberta. E em Delaware, a vaga do vice-presidente Joe Biden foi para o seu principal auxiliar-direto, que estaria guardando a vaga para seu filho, Beau Biden, no momento servindo no Iraque. E George W.Bush anunciou esta semana que seu irmão Jeb, seria um ‘ótimo’ senador por Flórida, lançando sua candidatura às eleições de 2010.

“Mas há uma razão, além da capacidade de se arrecadar milhões de dólares, para algumas destas escolhas serem extremamente populares. É que temos a sensação de que conhecemos intimamente estas pessoas. Nós vimos Caroline crescer, quem não se lembra dela na Casa Branca, depois se casando, tendo filhos, agora apoiando Obama tão decisivamente e comparando-o a seu pai? É como se estivéssemos apostando em algo absolutamente certo, não se trata apenas, quero crer, de um jogo de sobrenomes e celebridades”, diz o apresentador do programa Hardball, Chris Matthews. Colega de Matthews na MSNBC e nova estrela do jornalismo liberal nos EUA, a apresentadora Rachel Maddow prefere acreditar que o maior legado da era Bush foram os atos corajosos dos indivíduos que desafiaram o ‘poder imperial de Washington e denunciaram que a lei havia sido burlada pela burocracia governamental’.

Gente como Thomas Tamm , funcionário do Departamento da Justiça, que denunciou a gravação ilegal de conversas de milhares de cidadãos americanos, o embaixador Joseph Wilson, que revelou nas páginas de opinião do New York Times os falsos relatórios de inteligência dando conta da existência de armas de destruição em massa no Iraque, justificativa inicial da invasão norte-americana, o sargento Joseph Darby, que apresentou as fotografias dos abusos a prisioneiros iraquianos em Abu Ghraib, os advogados americanos, como Zachary Katznelson, que decidiram defender de graça os presos de origem árabe de Guantánamo por acreditarem no direito de defesa e a ativista Elena Ruth Sassower, que aqui nesta Carta Capital contou sua experiência como a primeira cidadã americana presa por protestar publicamente contra a nomeação de um juiz federal pelo governo Bush. Anos depois de Sassower deixar sua cela – em que contou com a simbólica companhia da Constituição Americana, sua leitura diária durante o confinamento – o aparelhamento político do Judiciário se tornou importante peça de propaganda dos democratas para a reconquista da Casa Branca.

Na semana em que o presidente mais impopular da história dos EUA, há pouco mais de um mês do fim de seu derradeiro mandato, decidiu discutir, ao vivo e a cores, no Iraque e nos EUA, o legado de uma era marcada pelos ataques terroristas de 2001, a invasão do Iraque e do Afeganistão, o confisco de liberdades individuais dos norte-americanos, a desastrosa resposta à tragédia causada pelo furacão Katrina no sul do país, o nepotismo nas escolhas para cargos de interesse público, o uso de tortura contra prisioneiros de guerra, a criação da prisão-goulag de Guantánamo e o esfacelamento do sistema financeiro, a reação nas ruas de Nova Iorque foi a do público de Neil Young. Nas palavras de Andrew James Slater, “no fim, atônitos, percebemos que o principal legado de Bush, queira ele ou não, é Barack Obama. Ele jamais teria sido eleito, não teríamos uma mudança tão radical na Casa Branca, se não fosse pelos oito inesquecíveis anos de George W. Bush”.