sexta-feira, abril 28, 2006

Prof. Gaudêncio Torquato, no Estadão

O rebaixamento do nível parlamentar se reforça com a substituição do paradigma clássico da democracia representativa - a promoção da cidadania - pelo paradigma de uma democracia que se pode designar como funcional, formada para obrigar interesses de grupos especializados da sociedade pós-industrial

ENTREVISTA/ Kwame Anthony Appiah


O encontro das civilizações

Por Eduardo Graça, para o Valor
28/04/2006


Muito bem instalado em seu escritório de frente para a faculdade de arquitetura da Universidade de Princeton, o professor Kwame Anthony Appiah, 51 anos, não lembra o Dom Quixote da filosofia contemporânea. A imagem foi cunhada à sua revelia por críticos interessados em reduzir as idéias apresentadas em Cosmopolitanism: Ethics in a World of Strangers (Cosmopolitismo: Ética em um Mundo de Estranhos), seu mais recente livro, a um surto de otimismo que beira a ingenuidade num mundo marcado por ataques terroristas, intolerância religiosa e desigualdade entre os países.

Appiah nega que há um choque de civilizações em curso e defende o cosmopolitismo, ou seja, a teoria segundo a qual todos são responsáveis por todos no mundo

Como já anunciava em The Ethics of Identity (As Éticas da Identidade), sua obra anterior, Appiah acredita que não há momento mais propício do que o atual para a aplicação de um choque de humanismo. "Tento ser provocador como os modernistas brasileiros que criaram o movimento antropofágico no século XX", diz.

O terremoto causado pelo cosmopolitismo de Appiah tem razão de ser. Herdeiro do liberalismo clássico, devoto da Declaração dos Direitos do Homem, o teórico nega a noção conservadora do choque das civilizações, refutando a idéia simplista de um mundo dividido em um tabuleiro de xadrez, com as forças ocidentais da modernidade cristã enfrentando os arcaicos Estados islâmicos. "Existe o conflito, mas não pode ser entendido como civilizações que se chocam. Não existe o grande ataque islâmico. O que há são ataques de grupos específicos contra indivíduos ou países que fazem parte do mundo ocidental", diz.

O professor prefere voltar à Grécia, precisamente a Diógenes e à escola dos cínicos, no século IV a.C., focada na importância de se buscar o entendimento entre os diferentes, de abrir-se ao diálogo, de recriar novas culturas, substituindo o choque pelo encontro das civilizações. O cosmopolitismo de Appiah deriva, justamente, da idéia helênica do cidadão do mundo. Curiosos e colegas da academia se detêm na história pessoal do filósofo para decifrar o significado do termo por ele reinventado. Não raro ficam no meio do caminho.

Sobrinho de reis africanos, filho de ministro da coroa britânica, Appiah, que conversou com o Valor pouco antes de viajar para Gana para acompanhar o funeral de sua mãe, não faz a mera elegia do homem globalizado do novo milênio. Em Cosmopolitanism, ele recupera uma tradição de reflexão moral e política há muito esquecida e procura demonstrar sua relevância para nossos turbulentos dias. "O cosmopolitismo se baseia na noção de que somos responsáveis por todos os cidadãos do globo. E no fato de que não precisamos necessariamente concordar com dogmas estabelecidos, mas apreender novas informações com os diferentes estilos de vida das sociedades de nosso tempo, dividindo valores universais."

Um conceito nobre, mas que, na prática, aproxima-se do combalido neoconservadorismo de Washington. Uma das teses mais caras do cosmopolitismo é a de que apenas regimes que respeitem os direitos humanos e a democracia podem ser legitimados pela comunidade internacional. Foi este um dos pontos fortes utilizados pela extrema-direita americana para justificar a tomada de Bagdá, governada por um ditador que oprimia, afinal, uma parcela dos cidadãos do globo. "Fui um dos que acreditaram que os EUA poderiam fazer algo de positivo no Iraque. Afinal, nós somos responsáveis por eles também. Nós tínhamos a obrigação de intervir. Mas a incursão do governo Bush foi feita de modo tão incompetente que hoje não tenho dúvida de que o Iraque estava melhor antes", revela.

Appiah defende uma "globalização humanista". Ele diz sem medo que os maiores perdedores da massificação cultural são os americanos. "Os brasileiros, os franceses, podem escolher o filme a que vão assistir. Inclusive os americanos. Não há ninguém obrigando-os a consumir o que vem de Hollywood. O triste é a falta de opção em um país como os EUA, em que pouco se vê do que se produz fora daqui."

O filósofo acha graça em políticas de proteção do patrimônio cultural nacional, como as do governo da Venezuela, que aprovou legislação obrigando as rádios a dedicar parte da programação para a música folclórica produzida no país. "O indivíduo, que sabe em quem votar, também sabe que música quer ouvir. Mas acho ótimo que o governo brasileiro financie e apóie a produção cinematográfica nacional, para que possamos ver mais e melhores filmes produzidos no e sobre o Brasil."

Apesar da explosão simultânea de escândalos envolvendo o financiamento ilegal de partidos políticos e a concentração de poder nas mãos de lobistas em países como o Reino Unido, os EUA, a Alemanha e o Brasil, Appiah acredita que a democracia liberal é a forma de governo mais benéfica para o indivíduo. A aparente falência dos modelos de representação popular baseados no Parlamento, o esgotamento da classe política e a crescente intromissão das grandes corporações financeiras no negócio público, desembocando em um novo tipo de totalitarismo - o absolutismo de mercado, na definição do prêmio Nobel de Literatura Günter Grass -, não o abalam.

"A corrupção é seqüela do processo democrático. Precisamos combatê-la, mas isso não deve destruir nossa crença no poder de mudança que detemos como eleitores", diz.

Ao pensar no momento político vivido pelo Brasil, Appiah mantém o otimismo. Ele acredita que o país avançou no ano passado, ao deixar de acreditar no conto de fadas de um governo comandado por um partido político puro. "Isso simplesmente não existe. A corrupção, nos níveis locais, aqui nos Estados Unidos, por exemplo, é gigantesca. E isso, apesar do combate intenso, da imprensa livre denunciando os abusos o tempo todo e de todas as leis criadas para combatê-la. O que acontece é que o gerenciamento do Estado é tentador demais. Cabe ao eleitor levar cada vez mais em conta os indivíduos, em detrimento das organizações a que eles são filiados. Penso que a revelação de que o PT imaculado era uma grande fantasia fez um bem enorme para o Brasil", diz. Mas, então, em quem votar? "Muitas vezes, a realidade política nos impõe uma tarefa dificílima: se tanto governo quanto oposição estão, de algum modo, envolvidos em escândalos de assalto ao cofre público, vote naquele que, apesar de filiado a um partido maculado pela roubalheira, está disposto a desenvolver os projetos que mais interessam à maioria da população. Claro, sem que deixemos de denunciar os corruptos", diz.

Quando fala do Brasil, Appiah repete uma de suas máximas, a de que o maior desafio do cosmopolitismo "não é combater a crença de que o outro não importa, mas a de que ele não importa tanto assim". A conversa imediatamente gira em torno das recentes operações militares realizadas pelas Forças Armadas nas favelas cariocas. "Mais uma vez, ficou nítida a idéia de invisibilidade de quem vive nas favelas, e de que o outro, o que não importa tanto assim, não precisa necessariamente viver do outro lado do planeta, mas muitas vezes está aqui mesmo, dentro de nossa própria sociedade, como a minoria muçulmana americana, que aparece estigmatizada na mídia desde o 11 de setembro, ou os moradores das comunidades carentes no Brasil", diz.

A essência do cosmopolitismo de Appiah está na capacidade humana de se estabelecer uma espécie de conversação sem fim, que não nos conduzirá a uma solução única, mas ao enriquecimento dos envolvidos no processo. Um exemplo concreto dessa conversação, diz Appiah, foi a decisão de uma parcela da classe média carioca, anos atrás, de defender a abolição do consumo de drogas para evitar a disseminação da violência em toda a cidade, uma atitude combatida por grupos progressistas, que viam nela o reconhecimento da incompetência do Estado em lidar com o tráfico de drogas. "No que é mais uma extensão do debate. Entendermos uns aos outros certamente é tarefa das mais difíceis. No entanto, é uma ação interessantíssima e que não exige que tenhamos de catequizar o diferente", garante o pai do novo cosmopolitismo.

quarta-feira, abril 26, 2006

Diretinho da Redação (43)


A coluna da semana já está no DR e aqui embaixo também.


NA PRIVADA, DESCENDO DESCARGA ABAIXO


Ele está na capa da revista semanal The Nation que chega às bancas do país no dia 8 de maio, com cara de bobo, dentro da privada, enquanto a manchete pergunta: “até onde os números de Bush podem despencar”? Ainda faltam dois anos e nove longos meses para o término do segundo governo de George W.Bush mas a sensação, por aqui, é de que ninguém agüenta mais.

A aprovação do presidente, na mais recente pesquisa da CNN, caiu para 32%, um recorde histórico. Os generais andam insatisfeitos com o andamento da guerra no Iraque e vivem pedindo a cabeça do secretário de Defesa, Donald Rumsfield. Na academia, os neocons sobreviventes se escondem debaixo das mesas. E até no quartel-general do Partido Republicano a ordem é se afastar ao máximo de Washington para não acontecer o que até ontem era tido como impossível: uma surra nas eleições parlamentares do fim do ano, com o risco de perderem o comando das duas casas do legislativo. O que seria de um fim de governo Bush com o Capitólio nas mãos dos democratas? No mínimo, especulava ontem a CNN, instalações de cinco grandes comissões parlamentares para investigar erros militares, violação da privacidade dos cidadãos e corrupção envolvendo os contratos para reconstrução do Iraque e do Afeganistão invadidos, sem falar nos desmandos pós-Katrina. Algo assim como o ‘maior escândalo da história da república’ imaginada por George Washington.

Pois esta semana o historiador Ean Wilentz, da Universidade de Princeton, autor de dois livraços – “The Rise of American Democracy” e “Andrew Jackson” - escreveu na popíssima Rolling Stone o que parece ser o obituário da aventura texana na Casa Branca. Com todas as letras ele afirma que, até agora, George W. Bush (2001–2006) foi o pior presidente americano de todos os tempos. Sãos seus os adjetivos: a administração Bush II foi uma desgraça colossal, pior, para ficarmos apenas no século XX, do que o corrupto Warren Harding (1921-23), o pouco ético Herbert Hoover (1929-33) e até mesmo do que Richard Nixon (1969-74), forçado a renunciar.

Wilentz também conta que em uma pesquisa com 415 dos maiores historiadores da academia norte-americana, 81% consideraram o governo Bush um desastre completo. A dança dos números parece mesmo assombrar este que foi – logo depois dos ataques do 11 de setembro – o presidente com maior apoio popular da história americana. Agora ele encontra o outro extremo. Nem mesmo Nixon, às vésperas do impeachment em 1974, recebeu a desaprovação total de eleitores de 43 dos 50 estados do país.

E enquanto o professor de Princeton lembra que ele ainda conta com 30% de fiéis, ‘quase-fanáticos’ a apoiá-lo, o duro editorial da The Nation lembra que ‘ainda há tempo de o presidente piorar sua marca’, por exemplo, invadindo o Irã. Mas ambos celebram o fato de que, finalmente, George W.Bush parece estar pagando um preço por sua arrogância. E que se toque o enterro.

terça-feira, abril 25, 2006

Turismo ou Teatro da Dominação?

Parece piada. De péssimo gosto. Mas não é. Através do gente-boa Nei Lopes cheguei hoje a esta bela reportagem no site NoMínimo sobre a teatralização da escravidão nas antigas fazendas de café do Vale do Paraíba. Fazendas de Vassouras e Piraí revivem a vida no século XIX deixando bem claro o papel de cada ator social. É o turismo da dominação, assumido, capenga e típico do fiofó do mundo.

Como sou da região e conheço muitíssimo bem o racismo da aristocracia decadente por lá vigente, não cheguei a ficar de cabelo em pé. Funcionárias negras travestidas de mucama, crianças constrangidas, tronco e chibatadas, me conta uma fonte local, viraram o programa perfeito para a celebração de aniversários dos bem-nascidos do Sul Fluminense. Não dá. Ou, como diz o professor Manolo Florentino, da UFRJ, à repórter Mariana Filgueiras:

"O problema é que a encenação transmite ao turista uma visão parcial do período escravocrata. Não existiu apenas a submissão, isto tudo fez parte de um processo. E os revoltosos? Os zumbis? A venda de uma história nacional passiva é, senão curiosa, preocupante."