sábado, junho 02, 2007

ENTREVISTA/Russell Jacoby

Apesar da fama de carrancudo que ganhou no meio acadêmico norte-americano, o professor Russell Jacoby, da UCLA, foi especialmente delicado em nosso bate-papo, via Skype, que o Valor Econômico publicou neste fim de semana. A entrevista, que segue abaixo, foi motivada pelo lançamento no Brasil, pela editora Civilização Brasileira, de seu Imagem Imperfeita _ Pensamento Utópico para uma Época Antiutópica. Mas Jacoby aproveitou para falar do irônico confinamento dos pensadores marxistas nos departamentos de Língua Inglesa das universidades norte-americans, dos limites tanto da internet quanto do movimento ecológico , de seus temores em relação a uma vitória de Hillary Clinton ("mais tecnocrata ainda que Bill") e de seu novo livro, ainda em fase de pesquisa, uma ambiciosa história da violência urbana.

A Utopia Ainda é Possível


Eduardo Graça, de Nova Iorque, para o Valor

Professor de história da Universidade da Califórnia (UCLA) e uma das estrelas da esquerda acadêmica nos Estados Unidos, Russell Jacoby publicou em 1987 sua obra mais famosa, Os Últimos Intelectuais, em que denuncia a trágica extinção dos chamados ‘intelectuais públicos’ e o predomínio de pensadores mais interessados em produzir para seus pares ou alunos do que em interferir na cultura política da sociedade contemporânea. Depois vieram os não menos provocadores ensaios O Fim da Utopia, de 1999 e, há dois anos, Imagem Imperfeita _ Pensamento Utópico para uma Época Antiutópica, que chega agora às livrarias brasileiras pela Record. De Utrecht, na Holanda, onde ministra um curso sobre História Contemporânea para estudantes europeus, Jacoby conversou por telefone com o Valor sobre a necessidade de se imaginar novos modelos sócio-econômicos como ato de sobrevivência política e revelou alguns detalhes de seu próximo livro, uma ambiciosa história daquele que o historiador considera o principal problema de nossos dias: a violência urbana.

- Em Imagem Imperfeita o senhor argumenta que é falsa a idéia de que a oposição ao capitalismo do século XX é necessariamente uma utopia descabida. E afirma que o pensamento utópico jamais exclui reformas reais, ou mesmo o oposto: mudanças dependeriam do combustível fornecido pelos grandes sonhos. É impossível não deixar de pensar na nova política andina de Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa. O senhor os vê como prova da vitalidade da utopia de esquerda na América Latina ou apenas mais uma mutação do totalitarismo populista que vez em quando assola o continente?
- Em termos genéricos, sou simpático à ascensão de Hugo Chávez e às políticas públicas por ele instituídas na Venezuela. Há dois anos compareci a uma conferência sobre o Bolivarianismo em Florianópolis, e, apesar de não ser um especialista no tema, considero ser crucial pensar de modo utópico na América Latina dos dias de hoje, mas sem cairmos, é claro, em um pensamento demasiadamente inocente. O eleitorado não pode mais se deixar convencer por líderes que inspiram as massas e, ao tomar o poder, subitamente esquecem das propostas progressistas. Meu ponto, em Imagem Impefeita, é justamente o de que as utopias são, apesar de tudo o que se diz ao contrário, impressionantemente relevantes nos dias de hoje. Mais, é do que nós mais precisamos na política do agora. Sabe que o livro acaba de ser traduzido também na China? Eu fico imaginando como é que esta mensagem pode se aplicar ao contexto chinês...

- No Brasil, com pouquíssimas exceções, o eleitor, especialmente o mais escolarizado, parece ter-se abdicado do direito de sonhar depois dos escândalos que disseminaram a idéia de que esquerda e direita, progressistas e conservadores, locupletam-se felizes na geléia geral de corrupção e clientelismo, igualmente desinteressados em um projeto de nação...
- É importante pensar que as experiências pelas quais o Brasil passou recentemente não são inéditas. Fundamentalmente este é o cenário em que vivemos nas democracias ocidentais desde o colapso dos regimes comunistas na Europa Oriental. De uma certa maneira, a idéia ainda é a de que todos nós vimos o sonho acabar ao vivo e a cores. Por que seguir sonhando? Não haveria muito mais a se fazer a não ser limpar as ruas, arrumar as janelas, ficarmos cada vez mais práticos e aceitar o ritmo do mercado. Confesso que uma parte de mim chega a ser tentada pela idéia. Mas, não! Qualquer exercício de poder que resulte em um exercício pragmático, em apenas abraçar as oportunidades às vezes oferecidas pelo mercado, perde imediatamente sua força propulsora, sua razão de ser. Qual a moral da história no envolvimento do PT com esquemas de corrupção? A de que precisamos de partidos políticos puros para o funcionamento da democracia brasileira? A da rendição de que apenas um liberalismo econômico mais ortodoxo pode de fato governar no capitalismo nosso de cada dia? Não. Só há uma resposta. Precisamos lutar por quem faz política sem renunciar a seus objetivos utópicos.

- Aqui nos EUA partimos para uma campanha presidencial em que os candidatos ditos progressistas lutam para manter uma postura mais pragmática, justamente para atrair o eleitorado mais conservador. Não há muito espaço para grandes utopias...
- E de certa maneira ficamos pensando se não é a direita quem vem exercendo com maior habilidade a necessária posição de se jogar com as idéias na América, não é? Creio que em termos de energia, de disposição, não há dúvidas. É a direita quem vem ocupando todos os espaços, são eles que vêm cantando nos campus universitários que ‘os tempos estão mudando’, não nós! Mas, por outro lado, você vê o que acontece quando eles chegam ao poder. Nunca houve tanta corrupção, tanto apadrinhamento em cargos públicos, tanta imoralidade. Nem mesmo nos governos de esquerda! Aqui nos EUA aprendemos que, no fim das contas, a esquerda, pelo menos, tem idéias interessantes. Por isso os candidatos conservadores não têm aparecido com força até o momento na campanha presidencial – por sua total ausência de idéias! Mas, por outro lado, Hillary Clinton é uma tecnocrata. Ainda mais do que o ex-presidente Bill. Ela não é uma grande força de inspiração, não traz de volta o idealismo, fundamental para a prática política, especialmente para os mais jovens. Veja o que acontece nas universidades americanas – a maioria dos professores vêm dos anos 60, a maioria dos alunos dos 80. Eles são, em alguns aspectos, mais conservadores do que nós. E creio que existe alguma conexão entre a decadência das utopias e uma certa direitização do corpo discente nas grandes universidades. Mas, como você sabe, a maré da História muda muito rapidamente...
- Em seu livro mais popular, Os Últimos Intelectuais, o senhor denuncia justamente o desaparecimento dos pensadores progressistas que deveriam estar trazendo a discussão das grandes idéias para o dia-a-dia do cidadão comum...
- Exato! E este é um dos problemas da esquerda ocidental. Os conservadores vêm fazendo intervenções importantes em discussões públicas, ou melhor, dando forma mesmo a estas discussões, sobre pontos importantes da política educacional, do sistema judicial, do combate ao crime. Enquanto isso os progressistas parecem mais interessados em problemas táticos, em reformas políticas, em estrutura partidária. O resultado é que a esquerda não produziu uma geração de pensadores interessados nas políticas públicas e abandonou o mundo das idéias para se dedicar ao pragmatismo da política per se. É preciso fazer o caminho de volta.

- De certa forma o fim do comunismo real afetou a fábrica de pensamento da esquerda em todo o globo...
- Sim, nos EUA, hoje, os principais marxistas estão encastelados nos Departamentos de Língua Inglesa das grandes universidades. É, no mínimo, irônico, não? O problema é que convencionou-se pensar que a União Soviética e a Cortina de Ferro foram a Utopia da segunda metade do século XX. Esta é uma injustiça histórica com os articulados críticos do stalinismo no setor progressista, que durante décadas condenaram aqueles regimes totalitários. A maioria dos crimes realizados contra a humanidade nos séculos XX e XXI foram cometidos por burocratas, não por utopistas. É injusto pensar em campos de concentração como sinônimo de utopia.

- O senhor acredita que a internet e as novas tecnologias digitais cada vez menos presas à geografia tradicional possam ser o espaço possível para o retorno do intelectual público?

- Creio que há alguma possibilidade. A blogosfera vêm exercendo um papel importante na política norte-americana nos dias de hoje, mas de um modo mais fiscalizador, pragmático. Sou cético à idéia de que a internet vá substituir um dia os meios mais tradicionais de troca de idéias. No entanto, como espaço de dissensão ela é perfeita e seu papel é mais do que interessante se pensarmos que vivemos na possibilidade – que não acho distante - de um colapso do sistema mundial tal qual ele é. O sistema globalizado não pode se manter eternamente desta maneira, com o preço altíssimo a ser pago por determinados setores, os portões ficando cada vez maiores, a concentração de riqueza cada vez mais obscena. E ainda temos as mudanças climáticas, o aquecimento global, a poluição, que têm feito muita gente reavaliar a perpetuação do modelo econômico, a pensar que é preciso sonhar com algo diferente, na melhor tradição da esquerda.

- Será que a Utopia Verde pode funcionar como o ponto de reencontro dos progressistas?
- Todos falam de ecologia sem parar hoje em dia não é? Veja o Al Gore! Há muito espaço para se discutir na tenda verde, talvez espaço demais. Se conseguirmos ultrapassar o discurso da reciclagem e da reutilização de pilhas elétricas, há todo um discurso radical muito interessante no pensamento ecológico. Mas a maneira como o discurso verde vem sendo cooptado por grandes corporações, lanchonetes e indústrias o reduzem muitas vezes a um modismo ou fenômeno comportamental. Veja a ditadura da comida orgânica, com seus preços estratosféricos, que, no primeiro mundo, só atendem aos mais ricos. Elas revelam um teor pouco democrático da onda verde, que se incorpora ao discurso-padrão da sociedade de consumo com enorme facilidade.

- O senhor está ministrando um curso de extensão na Europa, vê muita diferença entre o aluno norte-americano e o europeu?
- Vejo algumas semelhanças. Há uma imensa dificuldade em se ‘pensar grande’, uma maior sensação de medo em relação ao futuro, um descrédito da esperança. Há um medo imenso e paralisante do terrorismo islâmico, da imigração ilegal, da violência urbana. Aliás, este último é meu desafio, estou tentando escrever um livro sobre este tema. Não quero de modo algum diminuir o impacto dos atentados do 11 de Setembro mas 3 mil pessoas morreram naquele dia e mais de 15 mil morrem todos os anos nos EUA por conta da violência urbana, mas aparentemente este é um problema que não interessa muito as pessoas em meu país.

- Ou apenas quando um massacre como o da Virginia Tech paralisa o país.

- Exatamente e por questões que todos nós sabemos muito bem. Mas ninguém sabe exatamente o que fazer com o tema. Ou, melhor, nos EUA de hoje há uma parte que prefere fingir que o problema não existe e outra que entregou os pontos. Os conservadores, por exemplo, rapidamente ocuparam o espaço da discussão das idéias afirmando que Virginia Tech não teria acontecido se os outros estudantes também estivessem armados! Agora imagine o ponto em que chegamos, com a discussão séria da idéia de que cada estudantedeveria ir para a universidade com seu revólver!

- Curiosamente há exatamente um ano o Brasil viveu sua maior crise relacionada à violência urbana e não se vê a discussão de novas políticas públicas para o setor. No mês passado o King’s College de Londres divulgou números estarrecedores referentes à população carcerária no planeta. No Brasil, entre 1995 e 2005, enquanto o crescimento demográfico foi de 19,6%, o número de presos aumentou em 142,9%, com a capacidade das prisões superando os 151% de ocupação. O senhor acredita que a solução é construir mais casas de detenção e diminuir o limite de idade para a penalização de jovens que tenham cometido crimes hediondos?

- Não mesmo. As tentativas de diminuição de violência urbana a partir da criação de mais prisões revelaram-se desastrosas. Na Califórnia, a construção e o gerenciamento de penitenciárias é uma das indústrias que mais cresce no estado. Deu muito dinheiro para alguns, mas os que mais sofrem com esta política são, é claro, a população mais humilde, os abandonados pelo Estado e pela sociedade civil, e especialmente os jovens envolvidos em crimes violentos, já que as chances de recuperação são ainda menores.