A Sedutora e o Pensador
Por Eduardo Graça, para o Valor, de Nova York
12/12/2008
Faz um frio maldoso no fim de outono na ilha de Manhattan. O café do Harlem escolhido para a entrevista por Ian Buruma, um dos intelectuais mais festejados da academia americana, está repleto de cadeiras extras, em que chapéus, casacos, cachecóis e luvas formam amorfas pilhas coloridas. Casaco de couro, gorro usado em dias de frio ártico, Buruma chega ávido por um chá e pronto para conversar sobre o mundo que o cerca, com a exceção das "porções do globo que não conheço. Não tenho absolutamente nada de interessante para falar do Brasil e da América Latina". |
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O aviso é quase respeitado de forma integral. Buruma acaba de lançar nos Estados Unidos seu primeiro romance em 17 anos, "The China Lover" (Penguin.392 págs.), em que utiliza a figura de Yoshiko (ou Shirley) Yamaguchi, uma celebridade japonesa, para tratar do poder da fantasia coletiva no mundo moderno. Sua história é narrada por três homens que em determinado momento da camaleônica vida da diva permaneceram em sua órbita (ela ajudou os americanos a difundir os ideais de democracia no cinema japonês do pós-guerra, zanzou pela Palestina de Arafat, casou-se com o escultor Isamu Noguchi e nos anos 1970 foi eleita para o parlamento por um partido ultra-nacionalista). |
| O único título de Buruma traduzido para o português é "Ocidentalismo: o Ocidente aos Olhos de seus Inimigos" (Jorge Zahar. 168 págs.), publicado em 2004 em parceria com um dos nomes mais respeitados da esquerda israelense, o filósofo Avishai Margalit. O livro - que remete ao "Orientalismo" de Edward Said - tornou-se leitura obrigatória para os interessados em escarafunchar as raízes do pensamento antiocidental, não apenas no Oriente Médio, mas também na China, Japão, Rússia e Alemanha de Hitler. Em seus artigos reproduzidos em "The Guardian" e em livros e palestras ministradas nos Estados Unidos, Buruma, que nasceu na Holanda e viveu na Inglaterra e Japão, tem tratado de modo singular das relações entre Ocidente e Oriente. Professor da cátedra de Democracia, Direitos Humanos e Jornalismo na Universidade de Bard, no Estado de Nova York, ele conversou com o Valor sobre o novo papel dos Estados Unidos no cenário internacional, o significado da eleição de Obama para o restante do planeta e as forças sociais que a crise econômica global pode despertar. |
Valor: Yoshiko Yamaguchi é uma personalidade no Japão, um ícone nacional, mas não é especialmente conhecida nos Estados Unidos. O sr. viveu em Tóquio. Foi lá que entrou em contato com esta personagem tão peculiar e decidiu escrever o livro? |
Ian Buruma: Foi um processo longo, com vários começos falsos. A primeira vez que a vi, era um estudante de cinema na Tóquio dos anos 1970. Estava pesquisando no Arquivo Nacional de Cinema e comecei a ver filmes feitos durante a Segunda Guerra Mundial. E Yoshiko era uma das principais estrelas do cinema japonês. Fiquei de fato impressionado e pensei que ela renderia uma bela história... |
Valor: No Japão, ela virou enredo de uma novela de televisão... |
Buruma: Sim. E também de uma ópera, um musical, e por aí vai. Por isso a idéia de fazer algo ficcional a partir de uma história já tão bem contada pelos japoneses ficou na minha cabeça, mas sem que eu tocasse de fato o projeto. |
Valor: É possível compará-la com alguma personalidade do mundo ocidental? |
Buruma: Ela é um mix de Marlene Dietrich e Leni Riefenstahl. Não consigo pensar, por exemplo, em um equivalente americano. E pensei que talvez pudesse escrever algo sobre ela, um ensaio, nada ficcional. Mas seria difícil fugir da lenda oficial de Yamaguchi, cantada em prosa, verso e muitas biografias no Japão. E pensei, depois de muitas tentativas que não deram certo, que, mais do que sua própria vida, o que de fato me interessava era a maneira como os homens de seu tempo projetavam suas fantasias na figura daquela mulher, como eles a imaginaram. Nunca ficou muito claro até que ponto ela era uma manipuladora de homens ou se eram eles que a transformavam no que bem entendessem. Passei a vê-la como a Lulu da trilogia de [Frank] Wedekind e pensei: Por que não escrever um livro sobre ela a partir da perspectiva de homens que a conheceram em momentos diversos de sua vida, como Lulu? |
Valor: Há 17 anos o sr. não escrevia um texto ficcional... |
Buruma: Para mim, é muito mais difícil escrever ficção. As coisas não funcionam como se eu decidisse que "agora vou escrever um romance". Não, quem manda é o tema. Algumas idéias são claramente melhor exploradas como biografias, outras como ensaios, outras como críticas, outras como ficção. Por exemplo, meu livro anterior, "Murder in Amsterdam" (Penguin. 288 págs.), é uma não-ficção em que uso técnicas de romance para contar a história de Theo Van Gogh e falar sobre os limites da intolerância. |
Valor: O hibridismo entre realidade e romance o interessa especialmente? |
Buruma: |
Valor: E como foram seus contatos com Yoshiko? |
Buruma: Cheguei a entrevistá-la algumas vezes para publicações americanas. Uma das últimas vezes em que nos falamos, por telefone, foi logo após os atentados de 11 de setembro em Nova York. |
Valor: Qual foi a reação dela? Depois da guerra, ela se aproximou de Yasser Arafat e conviveu de perto com o pensamento islâmico antiocidental mais radical... |
Buruma: Você não vai acreditar, mas a conversa que tivemos foi completamente banal. Ela disse apenas "mas que mundo estranho é este em que vivemos, não?" e nada mais. Acho que seria de esperar uma resposta assim. Ela, de certo modo, viveu qual um fantasma. Uma mulher extremamente elusiva e, ao mesmo tempo, aberta a que outros a reinventassem o tempo todo. |
Valor: Um de seus temas mais constantes é a interação, e os choques, entre o Ocidente e o Oriente. "The China Lover" apresenta um Japão que mudou depois da ocupação americana. No caso do Iraque, pode-se fazer alguma comparação? |
Buruma: Os neoconservadores gostam de fazer essa comparação, mas são situações completamente diversas. O Japão atacou os Estados Unidos e perdeu uma guerra. A maioria dos japoneses se sentiu grata pelo fato de os americanos se proporem restaurar o país, oferecendo-lhes mais liberdade. O Iraque é um outro cenário. Não sei ainda se a ocupação trará algo de positivo para a sociedade iraquiana. Ainda é muito cedo para afirmar que há algum progresso em áreas específicas. Um claro avanço é que Saddam Hussein já não está no poder. Mas os custos para tal mudança talvez tenham sido muito altos. E se a saída das tropas americanas no ano que vem levar a uma guerra civil sangrenta, estará configurada uma catástrofe sem tamanho. |
Valor: O sr. acredita que, depois dos anos Bush e das ocupações do Afeganistão e do Iraque, ainda existe espaço para o intervencionismo americano, a la Bósnia, em locais como o Sudão? |
Buruma: O cenário, hoje, é muito mais complexo. Mas não quero dizer que casos extremos não oferecerão uma oportunidade para o intervencionismo americano. A Bósnia é um caso em que considero a intervenção necessária. Mas muitas vezes essas ações acabam levando a situações piores do que as que existiam. Digo mais, acho que seria muito fácil as forças armadas americanas transformarem o Sudão em um lugar ainda pior do que é hoje. É preciso entender que a situação em países como o Sudão é muito mais complicada do que a velha idéia de que mandar soldados vai resolver algo. Existem problemas insolúveis. No caso do Sudão, não quero dizer que é melhor não fazermos nada. Mas também sou cético a respeito de qualquer idéia simplista de que homens armados vão resolver algo. |
Valor: Como o governo Obama, com Hillary Clinton como secretária de Estado [era uma possibilidade na ocasião da entrevista], lidará com o xadrez geopolítico? |
Buruma: Não acredito que eles tentem um novo experimento, algo como invadir outro país, usar força militar, depois do que aconteceu no Iraque, com a premissa de que se trata de disseminar democracia. Acho que haverá uma política de retrocesso em termos de invasões armadas, o que é uma boa notícia para o mundo. |
Valor: E a ajuda material a grupos oposicionistas em países como Birmânia? |
Buruma: Não creio que isso possa acontecer. Um sinal do novo mundo multipolar é que, na Birmânia, por exemplo, os jogadores com poder de fogo são a China e a Índia. E se eles não quiserem se mexer, e aposto que os chineses não estão nem um pouco interessados em mudanças na Birmânia, há muito pouco que os Estados Unidos possam fazer no Sudeste Asiático. |
Valor: Há um aparente consenso aqui nos Estados Unidos de que a crise financeira internacional ratificou uma nova ordem mundial, mais multipolar, em que grandes democracias populares, como Índia e Brasil, e potências autocráticas, como China e Rússia, têm mais voz. O presidente Lula chegou a dizer na reunião das 20 maiores economias, em Washington, que o Grupo dos 8 (reunião dos países mais ricos do planeta) hoje é irrelevante... |
Buruma: O poder econômico que um país como a China hoje tem faz com que eles necessariamente sejam considerados um parceiro primordial planetário das economias ocidentais. Mas não há como questionar o fato de que esta nova posição dos chineses diminui o poder de pressão sobre os abusos aos direitos humanos por lá. Isso significa que os Estados Unidos e a Comunidade Européia terão de parar de tratar de questões como os direitos individuais e a democratização da China? De forma alguma. Mas nossas expectativas serão ainda mais limitadas a partir de agora. Melhoras nesse setor terão de vir, necessariamente, de dentro do regime. Dificilmente forças extra-Pequim poderão fazer alguma diferença. |
Valor: Há, na chamada civilização ocidental, e voltamos aqui ao caso da ocupação do Japão, mas também da redemocratização da Alemanha e da Itália, exemplos contrários a essa tese logo após o fim da Segunda Guerra Mundial... |
Buruma: Sim, mas são maus exemplos, no sentido de que, ali, governos totalitários atacaram democracias e perderam uma guerra. Esses três países foram dizimados e houve clara cooperação da maior parte da população na reinvenção de suas nações. Eles partiram do nada e entenderam que não havia nada melhor do que liberdade e democracia para reemergirem no cenário mundial. Mas esses casos são raríssimos. As novas potências totalitárias dão menos espaço para as democracias ocidentais exportarem suas idéias. |
Valor: No caso específico dos tibetanos, por exemplo, que acabaram de discutir uma nova atitude frente a Pequim... |
Buruma: Não vejo como os governos ocidentais possam intervir nesse caso. Não há ninguém dentro do Tibet, hoje, com capacidade para comandar os tibetanos e iniciar um movimento. Seria então o caso de apoiar de forma mais decisiva o governo tibetano no exílio, na Índia? Mais do que apoio moral ao Dalai Lama, seria tolo para as potências ocidentais apoiarem qualquer tentativa de golpe ou provocações. Mais uma vez, neste caso, não há como se criar um movimento de fora para dentro. Não vejo a menor chance de isso acontecer, especialmente agora, com a crise econômica, que aumentou a importância das boas relações entre os Estados Unidos e a China. O governo Obama não pode nem pensar em colocar em risco a relação Washington-Pequim. |
Valor: O sr. escreveu em artigo recente que padrões culturais não podem ser usados como argumento para a China negar a seus cidadãos direitos básicos... |
Buruma: O que os governos ocidentais podem fazer é apoiar grupos que lutam pela defesa dos direitos humanos, fiscalizar as corporações ocidentais atuando na China, obrigando-as a tratar os trabalhadores de forma decente. Mas não tem jeito. No fim, mudanças terão de vir dos chineses. |
Valor: E o sr. acredita que elas virão? |
Buruma: Sim, embora talvez em um ritmo bem lento. Mas a crise poderá afetar também a velocidade das mudanças. Na China, elas são relacionadas ao humor da classe média nos grandes centros urbanos. Enquanto o regime permitir que continuem prosperando, não há haverá qualquer rebelião. Mas se a situação econômica se deteriorar, tudo muda de figura. |
Valor: Grande parte da população brasileira se beneficiou de programas de combate à pobreza e do aumento do valor das matérias-primas no mercado global. Há o receio de que a crise possa levar de volta para a miséria milhares de cidadãos em países em desenvolvimento. Como o sr. vê essa questão? |
Buruma: Com apreensão. Há o risco de um aumento de populismo, tanto de direita quanto de esquerda. Mais personagens como Hugo Chávez e lideres radicais de direita, com plataformas nativistas, antiimigração, ganharão terreno. Há um risco real de que isso ocorra nas democracias mundo afora. |
Valor: E quanto à Rússia? O país foi um personagem interessante nas eleições americanas, com as declarações pró-Georgia de John McCain e a mensagem desafiadora do presidente Dmitri Medvedev para o recém-eleito Obama... |
Buruma: Novamente, as aspirações de ajudar a Rússia a se tornar mais democrática devem ser mínimas. São assuntos domésticos. Teremos que lidar com a Rússia de Medvedev e Putin. E eles vêm agindo de uma forma bem russa, por assim dizer, ora olhando para a Europa, ora para suas raízes asiáticas. Aqui também, mudanças serão muito difíceis, ainda que por razões diferentes. Usar força militar contra a Rússia está completamente fora de questão. E ser um antagonista por princípio não ajuda a ninguém. É preciso ser muito cuidadoso, por que lidar com a Rússia também significa pensar em nossas atitudes em relação à Ucrânia, à Geórgia. É uma tolice sem tamanho convidar esses dois países a fazer parte da Otan se você não está preparado para usar a força no caso de uma invasão militar. É injusto para com a população desses países. Uma injustiça dividida com os líderes desses países, que garantem a seus eleitores a "proteção da Otan". |
Valor: E o projeto do governo Bush de instalação de um novo sistema de defesa antimísseis em países como Polônia e República Tcheca, que até os anos 1980 estavam na esfera de influência de Moscou? Aparentemente, há uma indefinição sobre a continuidade desse projeto na gestão Obama. |
Buruma: Muito provavelmente, trata-se de outra tolice. |
Valor: O sr. escreveu recentemente que a Obamamania reabilitou a imagem dos Estados Unidos na Europa. O sr. acredita que a vitória de Obama trará mudança também para as relações entre os Estados Unidos e a Europa? |
Buruma: Sim. Símbolos são importantes. E a esperança de uma nova autoridade americana ajuda a nós todos. Creio que ele ajudará a criar maior cooperação entre os países do mundo ocidental e também aumentará o prestígio da idéia de democracia liberal. É inegável que, com sua eleição, Obama deu à maior democracia ocidental mais credibilidade. Mas ele não é a resposta a todos os problemas do planeta. Para resumir, acho que, com Obama, ficou um pouquinho mais fácil encontrar um consenso planetário. |
Valor: A provável escolha de Hillary Clinton para comandar a política externa do governo Obama foi uma decisão sábia do novo presidente? [Quando da entrevista, a escolha de Hillary não estava confirmada] |
Buruma: Creio que sim. Ela tem experiência e é uma personalidade planetária. Não há quem não saiba quem ela é. Há muitos fatores positivos e alguns negativos, um deles o conflito de interesses entre sua nova posição e as atividades profissionais de seu marido. Embora a imagem de Bill Clinton no exterior não seja ruim. No fim, acho que não é uma má escolha. |
Valor: Quando o senhor apresenta casos de direitos humanos em seu curso, além do totalitarismo chinês e russo, das doenças sociais no mundo em desenvolvimento, os abusos cometidos pelos Estados Unidos estão na pauta do dia? |
Buruma: Sim, claro. E embora eu, propriamente, não tenha dado aulas sobre Abu Ghraib e Guantánamo, por exemplo, vários de meus colegas têm sido especialmente enfáticos sobre essas contradições. A eleição de Obama muda também, creio, a percepção dessas questões por aqui. Mas, por exemplo, o que será feito de Guantánamo? Não é uma questão simples de resolver. Você não pode mandar os prisioneiros de volta sem saber o que acontecerá com eles em seus países de origem. Como julgar essas pessoas? Não é possível sequer usar a Corte Internacional em Haia, já que os americanos não reconhecem sua função máxima. Com que direito, então, você os julgará? Não são respostas simples. Não basta fechar as portas daquela prisão e pronto, acabou. Essa é uma herança terrível que o futuro governo receberá dos anos Bush. E, creio, vai ser uma constante nos primeiros anos do governo Obama. |
Valor: O sr. acabou de fazer uma série de conferências na Universidade de Princeton sobre as relações entre religião e democracia nos Estados Unidos, na Europa, no mundo islâmico, no Japão e na China... |
Buruma: Essas palestras serão transformadas em um livro com publicação prevista para o ano que vem. Procurei analisar as inúmeras tentativas de se separar religião e poder político nessas civilizações e a dicotomia entre liberdade religiosa e mecanismos utilizados para impedir a religião de se tornar um instrumento importante na luta pelo poder. |
Valor: O sr.encontrou algum modelo ideal? |
Buruma: Todos os modelos que pesquisei têm problemas. É claro que preferiria viver no Reino Unido do que na Arábia Saudita, mas não há caso perfeito na relação entre religião e democracia. Um dos aspectos mais interessantes do mundo contemporâneo é justamente o fato de que países como Turquia, Malásia e Indonésia, por um lado, vêm se modernizando a passos largos, e por outro passam por um processo de islamização, um certo populismo islâmico, que não é, necessariamente, antidemocrático. Fui à Turquia no verão e irei à Malásia em fevereiro. Creio que minhas próximas investigações ficarão mais concentradas nesse tema. |
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