terça-feira, novembro 04, 2008

ENTREVISTA/Spike Lee

Na Folha de S.Paulo de hoje saiu a entrevista que fiz com Spike Lee, sobre seu nome filme e, claro, as eleições de hoje. Lee fala baixinho e, pessoalmente, é muito menos estridente do que a figura espoleta que nos acostumamos a ver nas torcidas de equipes esportivas ou em protestos de rua aqui nos EUA. Gostei da figura.

Ó só como ficou:

ENTREVISTA

SPIKE LEE: Todos os sacrifícios agora fazem sentido Cineasta retrata batalhão de negros na 2ª Guerra e diz que Obama redime seus heróis

EDUARDO GRAÇA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE NOVA YORK

Camisa branca de malha, óculos de aro multicolorido, é impossível não reconhecê-lo: lá está Spike Lee na convenção do Partido Democrata que acaba de oficializar a candidatura à Presidência de Barack Obama. Os olhos pequeninos miram a câmera confiantes e anunciam, solenes: "A partir do dia 4 de novembro dividiremos a história de um modo diferente. Será antes de Obama (aO) e depois de Obama (dO)".

Se a possibilidade da eleição de um negro à Casa Branca galvanizou a comunidade afro-americana, não poderia ser diferente com seu cineasta mais representativo. A balbúrdia eleitoral encontrou Lee, 51, lançando seu primeiro filme pela Disney.

"Milagre em Santana", uma história romanceada do heróico batalhão formado por soldados negros durante a Segunda Guerra Mundial, estreou nos EUA em setembro, teve uma recepção dura pela crítica, que condenou a narrativa longa, com mais de duas horas e meia de duração, e chega aos cinemas brasileiros em fevereiro.

Foi no escritório da companhia mais famosa por seus desenhos animados e dramas voltados para a família que o diretor de "Malcom X" conversou com a imprensa sobre seu novo filme, as mutações do racismo nos EUA e, claro, a candidatura Obama. O senador de Illinois costuma contar com orgulho que em sua primeira ida ao cinema ao lado da então namorada, Michelle, os dois se maravilharam com "Faça A Coisa Certa", de Spike Lee.

Em "Milagre em Santana", o diretor segue interessado na maneira como as minorias são retratadas por aqueles que se aventuram em contar a história dos EUA na tela grande. Natural de Atlanta, Geórgia, Lee bate na madeira três vezes sempre que se menciona a possibilidade do democrata terminar a noite de hoje como o novo presidente do país. É que, por aqui, lembra o professor de cinema da Universidade de Nova Iorque (NYU), nunca é demais pedir a proteção do sobrenatural em momentos de mudanças tão radicais.


FOLHA - "Milagre em Santana" conta a história de quatro soldados negros e uma das cenas mais fortes é aquela em que eles percebem serem mais reconhecidos como cidadãos na Itália liberta do que nos EUA de Jim Crow [leis segregacionistas]...
SPIKE LEE - Os negros que se alistaram para lutar por seu país em 1944 encontraram as forças armadas norte-americanas completamente segregadas.
Linchamentos ainda eram comuns. Eles eram considerados cidadãos de segunda classe. Nós improvisamos bastante, mas uma frase que se repetia na conversa com os veteranos é a de que eles "se sentiram mais em casa na Itália do que jamais haviam se sentido nos EUA".
Aliás algo que James Baldwin, Josephine Baker e Miles Davis afirmaram sentir também.

FOLHA - O que o sr. descobriu sobre os homens do Buffalo Soldiers, o primeiro batalhão de negros do Exército americano?
LEE - Conheci vários veteranos do 92º Batalhão de Infantaria. São heróis americanos, grandes patriotas, que tinham todos os motivos para serem mais amargos pela maneira com que os EUA os trataram, mas que estão felicíssimos, pois jamais imaginaram que um dia poderiam votar em Barack Obama para a Presidência desta República que é deles também. Há, para eles, mais do que nunca, a certeza de que todos os sacrifícios que fizeram fazem um enorme sentido.
FOLHA - Estes soldados negros voltaram para um EUA ainda segregado, especialmente no sul do país...
LEE - Sim, e eu mesmo cresci no Brooklyn vendo filmes de guerra e tudo o que via era John Wayne. Só soube dos Buffalo Soldiers porque meu pai e meus irmãos ouviam e contavam histórias de amigos motoristas de caminhão que haviam sido voluntários negros da Segunda Guerra e transportaram munição até Berlim, dirigindo à noite, sem luz, escondidos, para ajudar na derrocada final de Hitler. Aliás, você sabia disso?
Não, né? Outro fato que poucos sabem é que boa parte dos alemães capturados foi mandada para o sul do país, onde dividiram espaço com soldados negros.

FOLHA - O que remete à cena da lanchonete no filme...
LEE - Exato. Pense nesses jovens negros que se alistaram e eram treinados para matar nazistas e viam os brancos alemães recebendo melhor comida, tratamento médico e alojamento do que eles. Este fato histórico é uma insanidade total. Por isso resolvi incluir a cena em que os alemães são mais bem tratados do que os negros em uma lanchonete na Louisiana. O que me interessa é a formação da mitologia da guerra que no cinema. Por exemplo, ninguém fala dos fuzileiros navais negros de Iwo Jima, que ajudaram a derrotar o Japão. E isso não aconteceu há tanto tempo assim! Mas graças a Deus os EUA progrediram muito nestas seis décadas e Obama é a maior evidência dessa evolução. Sinceramente, eu jamais pensei que veria um negro na iminência de se tornar o 44º presidente dos EUA. E algo me diz que isso vai acontecer hoje.

FOLHA - Já que falamos de tempos outros, o sr. acredita que a realidade do soldado negro americano é diferente em desafios mais recentes, como a ocupação do Iraque?
LEE - A maioria do Exército americano é, hoje, formada por negros e hispânicos. Mas é preciso lembrar que a experiência da guerra não muda por conta de diferenças étnicas. Não importa quem você seja, a experiência é avassaladora. Basta ver o número de suicídios dos jovens que lutaram no Iraque e no Afeganistão. É astronômico. E os que se matam depois de voltar? Você já viu a quantidade que acaba envolvida em agressões contra mulheres, maridos e familiares? Nossas Forças Armadas estão mal-equipadas, e é uma desgraça nacional o fato de não estarmos tratando desses veteranos que se propuseram a dar suas vidas pelo país com a dignidade que eles merecem.

FOLHA - O sr. teve dificuldades em conseguir financiamento para terminar "Milagre em Santana", que acabou sendo feito com algo como US$ 45 milhões, um orçamento pequeno para um filme de guerra. Houve quem creditasse a escassez de fundos justamente a seu conflito com Clint Eastwood, já que o sr. foi enfático na crítica tanto a "Cartas de Iwo Jima" quanto a "A Conquista da Honra", duas histórias sobre a Segunda Guerra Mundial em que não há destaque na tela para sequer um soldado negro (Eastwood, um dos poucos simpatizantes do Partido Republicano em Hollywood, respondeu que Lee deveria se calar e o cineasta negro continuou a polêmica, dizendo que os tempos das grandes plantações, em que a escravidão determinava quem tinha o direito à voz, já havia terminado)...
LEE - Isso não é verdade. Não mesmo! As declarações que fiz sobre os dois filmes dele sobre a guerra foram feitas em maio, em Cannes. Havia terminado de filmar "Milagre" em janeiro.
E, olha, você tem de fazer cinema com o que tem. Adoraria ter mais de US$ 100 milhões. Mas não tive. Em "Ela Quer Tudo", de 1986, filmei com US$ 175 mil. Quando estávamos filmando, criamos uma cofrinho de moedas e foi assim que conseguimos comprar dois rolos de filme para terminar as filmagens. As coisas não mudaram tanto assim. Você tem de ser um lutador para ser um cineasta. Se não tem a tendência para a luta, então este não é seu meio. Ainda estou esperando, por exemplo, o financiamento para a biografia de James Brown que quero fazer.

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