terça-feira, janeiro 01, 2008

Entrevista/MILTON GLASER


A ótima revista gaúcha Florense publicou em sua edição de verão (aí no Hemisfério Sul, aqui faz um frio do cão) a entrevista que eu e o fotógrafo Victor Affaro fizemos com o lendário designer Milton Glaser (responsável pelo logo I heart NY e pela reformulação gráfica de O Globo nos anos 90) em seu estúdio em Murray Hill, em Manhattan. Ó só que bonito que ficou:


ENTREVISTA
/Milton Glaser


Eduardo Graça, de Nova Iorque, para a Florense

Em sua edição de 29 de outubro, a revista semanal
New York publicou uma ‘lista de grandes revolucionários do design’, que acabou entupindo a caixa de correio eletrônico da seção de cartas da publicação. E por um motivo inusitado. Os leitores não entendiam como Milton Glaser, 78 anos, o criador do famoso logo “I heart NY” e um dos responsáveis pela elevação do pôster à categoria de alta cultura, não aparecia com destaque no tal compêndio. A justificativa para a omissão, que apareceria na edição seguinte, era singela: “nossa desculpa é a de que Glaser, embora fizesse obviamente parte do grupo de designers assinalado pela reportagem, está numa categoria diferente. Diretor responsável pela criação da revista, em 1968, ele é da família”. O episódio reforça a idéia do quão difícil é separar Glaser da cidade em que sempre viveu. Um dos maiores nomes do design do século XX, criador do Push Pin Studios, com obras nas coleções do Museu de Arte Moderna de NY (MoMA) e do Victoria and Albert Museum de Londres, ele é inegavelmente um dos lexicógrafos do design e da ilustração de nossos tempos. Mas Milton Glaser não é prisioneiro do passado. Com uma vistosa camisa de gola cor-de-rosa e um chapéu estiloso, ele recebeu a Florense em uma deliciosa tarde de outono em seu escritório localizado em uma townhouse em Murray Hill, em Manhattan, e falou sobre a rotina de trabalho, sua relação com Deus, sua paixão pelo ensino e suas mais recentes campanhas, como a que chama a atenção da opinião pública para os cidadãos iraquianos que colaboraram com o governo provisório estabelecido depois da invasão do Iraque e que agora correm risco de vida em seu país de origem. “É um escândalo! Eles nos ajudaram e agora não queremos lhes dar asilo. Um vexame total”, diz, com voz clara e forte, o artista indignado que simplesmente não acredita em design sem comprometimento social.

- O senhor mantém uma rotina de trabalho?
- Sim, e, acredite ou não, é a mesmíssima em 15 anos. Acordo cedo, tomo café da manhã com minha mulher, pego um táxi, sento na minha mesa religiosamente às 9h45 e começo a trabalhar. Como você pode ver meu estafe é todo composto por lindas e jovens designers, que eu tenho apenas um critério para contratar profissionais: a aparência física (risos). Trabalho até às 18h30 e todas as quarta-feiras, por quase 50 anos, dou minhas três horas de aula de design na School of Visual Arts (S.V.A.), e não trabalho às sextas-feiras. É o segredo da vida, sabia? Ouçam bem, meninos: não trabalhem às sextas-feiras!

- Então o senhor não passa aqui pelo escritório às sextas-feiras...
- Não, temos uma casa em Woodstock e passamos o fim de semana no campo. E lá eu desenho e faço outros trabalhos criativos, colaborações que geralmente não tem conexão com o dia-a-dia do escritório. Voltamos para casa aos domingos de tardinha e vamos a um restaurante. Agora você já sabe a minha inteira. Sabe há quanto tempo eu não vou cinema? Há 12 anos. Ao teatro? Há oito anos.

- E não sente falta?
- Nenhuma. Quanto teatro é bom, é sensacional, mas é raro você se encantar por uma peça hoje em dia. E acho também que você chega a um certa idade em que você quer apenas ter grandes experiências, nunca medíocres ou ordinárias. Hoje é profundamente entediante para mim pensar em passar duas horas vendo um filme apenas razoável. Eu trabalho e leio. Leio muito.

- O que tem lido recentemente?
- Acabei de terminar um grande livro, Deus não é Grande, do jornalista Christopher Hitchens, que é uma diversão séria.

- Hitchens centra seu livro na idéia de que religião é um mal que tomou conta de todos os aspectos da vida inteligente no mundo ocidental, o senhor concorda com ele?
- Sim, ele prova isso claramente no livro. É impossível ler o livro e defender uma posição lógica sobre a religião em nossa cultura. Não sou uma pessoa religiosa. Acredito que temos tal desconhecimento de nossa razão, de aonde a mente pode chegar que, por medo da morte, criamos esta idéia do criador, de Deus, que nada mais é do que um produto de nossas mentes. A idéia de Deus, tal qual nos é apresentada pelas religiões, é absurda, não faz o menor sentido. Agora, é claro que você pode me dizer que a fé tem a ver com o mistério, com o que não se explica, ou dizer que há uma força criadora no universo que não se explica, algo inteligente que ainda não conhecemos.

- Os especialistas consideram seu trabalho repleto de humanismo. Penso aqui na denúncia dos massacres de Darfur ou no trabalho que fez para a revista The Nation reunindo em um único avião de guerra todos os países que os EUA bombardearam nos últimos 50 anos. Depois de atravessar o século XX, o senhor ainda tem fé no ser humano?
- No fundo, sou um otimista. Alguém um dia escreveu que cada indivíduo percebe o mundo como sendo um lugar de abundancia ou de escassez. Eu sempre estive no primeiro campo. Jamais encarei o mundo como não sendo esta fonte generosa de possibilidades. Olhar grande, pensar grande, sempre foi a chave para mim...

- E já que estamos falando de fenômenos aparentemente inexplicáveis, e a inspiração, existe? Ela é fundamental em seu processo criativo ou o que existe é apenas trabalho árduo e focado?
- Inspiração é a manifestação daquela parte da mente que ainda nos é inacessível. Nós precisamos ser humildes para aceitar que apenas controlamos um terço de nossa mente. E não é só a inspiração que cabe nesta justificativa. Foi porque ainda não dominamos os dois outros terços que George Bush se elegeu presidente duas vezes. Você só entende o que acontece nos EUA hoje e considerar que o medo paralisou a capacidade de as pessoas raciocinarem. Não é consciente, não é lógico. Os EUA em que vivo hoje é produto de uma reação irracional dos meus compatriotas ao mundo que vivem.

- O senhor tem um discurso político muito claro. Acredita piamente na função social do design?
- Sim, nos últimos 30 anos esta tem sido a tecla em que tenho batido e acho que tem ficado mais na moda agora pensar no design como instrumento de transformação social. Em dezembro vou participar de uma reunião com outros designers aqui em Nova Iorque para tentarmos passar mais rapidamente das palavras para a ação. O designer trabalha com idéias e uma de suas questões fundamentais é como atingir o grande público. Por isso tenho feito vários trabalho que considero de ativismo social, como Darfur...

- E agora o senhor está trabalhando em uma campanha para conscientizar a opinião pública norte-americana sobre o drama dos refugiados iraquianos, cidadãos que apoiaram a deposição de Saddam Hussein e se tornaram alvos óbvios depois da invasão...
- Isto é um escândalo! Bush disse que nós abriríamos o país para 7 mil refugiados, mas até agora nem 100 pessoas foram abrigadas no país. E este é um número ínfimo. O clima nos EUA no momento, infelizmente, é o de não apoiar o asilo para ninguém, nem mesmo a quem nos ajudou em uma situação terrível como a da invasão do Iraque. Para a opinião pública americana os iraquianos são todos vistos como loucos e inconseqüentes. É um escândalo não adotarmos em regime de urgência uma legislação para ajudarmos estas pessoas que arriscaram suas vidas por conta dos interesses do governo dos EUA. Trata-se de um problema ético com o qual nós, norte-americanos, estamos lidando de forma vexaminosa. Por isso estamos fazendo neste momento cartas com o motivo escolhido para a campanha e enviando para todos os congressistas...

- Uma de suas idéias é a de colocar várias faces cobertas pelas mãos mostrando que o problema tem um caráter humanístico que ultrapassa a barreira de raças, credos ou nacionalidades...
- Sim! E também há o fato concreto de que nenhuma destas pessoas pode mostrar o rosto sob o risco de serem reconhecidas. A situação deles é muito perigosa e o norte-americano médio não está nem um pouco interessado na guerra. Ou nunca esteve ou já se cansou do que ouviu. Então estamos aqui para lembrar que o horror continua.

- Há sete anos o senhor foi um dos signatários do manifesto First Things First, publicado na revista Adbusters, em que discutia a importância dos valores dentro do design. Até que ponto a globalização leva os criadores a caírem ainda mais nas armadilhas dos interesses corporativos?
- Assim como a vida ficou mais contraditória nestes sete anos, o design também entrou em uma era ainda mais paradoxal. Aqui nos EUA temos rumado para o estabelecimento de uma sociedade menos liberal e mais totalitária, que, por exemplo, aceita a prática da tortura. Em contra-partida, houve uma natural reorganização de vozes contrárias a este movimento radical. O senso de crise, e penso aqui no aquecimento global, por exemplo, cresceu muito nos últimos cinco anos. Foi este cenário que me fez editar em 2005 o livro The Design of Dissent, reunindo trabalhos de designers que entendem que os cidadãos, ao opinarem sobre a realidade que os cerca, não estão apenas exercendo um direito básico, mas sendo responsáveis pelo mundo à sua volta. Eu ouvia muito dos designers que eles queriam fazer algo que ajudasse a mudar o mundo à nossa volta.

- Mas o trabalho de um designer pode de fato modificar a realidade?
- Ora, nós sabemos como comunicar uma idéia utilizando as engrenagens do sistema. Um sistema que nos força a vender banalidades o tempo todo, mas que pode ser trabalhado a nosso favor. Anos atrás, quando fazia as ilustrações para uma versão do Purgatório de Dante, criei uma lista que batizei de Caminho para o Inferno. Queria ver até onde os designers, incluindo eu mesmo, iriam para vender determinado produto. A lista começa com o desenho de um produto feito de tal maneira que pareça maior do que de fato é. Outra seria trabalhar para uma empresa que emprega trabalho infantil. E a última seria trabalhar em um produto que, no fim das contas, mataria o consumidor, como a indústria dos cigarros. E foi tão interessante ver o que meus colegas comentaram sobre a lista...

- O senhor enviou a lista como um questionário para seus pares...
- E descobri que 100% dos profissionais condenam o trabalho infantil, mas 10% dos designers não tinham problema algum em fazer uma logomarca para um produto que, no fim das contas, levaria à morte do consumidor, pois se tratava de uma escolha de foro íntimo de quem, por exemplo, decidia continuar fumando. Sim, é opcional. Mas você quer participar do processo de oferecer esta opção para o consumidor? Isto é pensar o design em nossos tempos.

- Uma de suas frases famosas é a de que profissionalismo é um objetivo muito pequeno para um designer. Ele precisa querer ser transgressor...
- Se você faz o que já sabe, não há conquista. Profissionalismo é meramente a repetição do que você já sabe fazer e, claro, muita gente é extremamente bem-sucedida seguindo esta filosofia. Mas ela não cabe no mundo das artes. Arte passa, necessariamente, pela violação do que você já sabe. Você precisa navegar pelo desconhecido, por aquilo que você não sabe quais conseqüências vai gerar. O ato de invenção é quase sempre um ato cego, mas fundamental no campo do design artístico.

- O senhor é professor em uma das mas importantes escolas de design do planeta, a School of Visual Arts (SVA), em Nova Iorque. Seus estudantes o procuram constantemente, pedem conselhos?
- Sim, tenho várias gerações de designers que, creio, me tiveram, de alguma maneira, como mentor. Como não tive filhos, acho que meu instinto é o de ajudar as pessoas. É a única maneira de crescer neste mundo – olhar para o outro, servir ao outro. Adoro ensinar, tenho grande prazer, não é apenas um ato de responsabilidade social para mim. Acho que é minha obrigação tentar mostrar a estes meninos que há assuntos mais importantes do que a carreira deles. Não há nada mais extraordinário na vida do que a capacidade de criar algo novo. Mas, claro, há uma certa dose de egocentrismo, de querer passar para a frente aquilo em que acredito, os valores que me são caros...

- O senhor é imediatamente identificado com o logo “I heart NY”, com a revista New York, com a alma de sua cidade. Ela ainda o inspira?
- O tempo todo. Ontem foi Halloween e acabei preso no meio da parada na Sexta Avenida, quando tentava voltar para casa, à pé, da universidade. Vi mais da parada do que havia pensado e foi fantástico, é nossa versão do carnaval brasileiro. A imaginação das pessoas, a energia, tudo é tão vivo. Todos querem estar aqui agora apesar de um barracão em Manhattan custar um milhão de dólares (risos). Mas a cidade está em forma, sabia? Surpreendentemente, mesmo depois do ataque de 11 de setembro, ela segue otimista e viva. Não há nenhum lugar no mundo como a Nova Iorque dos dias de hoje. A cidade é uma parte extraordinária de minha vida.
- E o senhor vê sua influência no design que é feito hoje por aqui?
- Sei que influenciei alguns designers, sei que meu trabalho tem alguma importância no cenário contemporâneo, mas não foram estes os motivos pelo qual me tornei um designer. O cerne de meu trabalho não tem a ver com a sua funcionalidade mas simplesmente com o fazer. Não há nada que ame mais do que sentar e criar algo novo. Mas as conseqüências do que faço são muito menos importantes do que o ato em si. Honestamente, nunca esperei chegar aos 78 anos. Ao mesmo tempo, não sinto que meu trabalho tenha perdido a importância, signifique menos hoje do que há tempos atrás. Não consigo simplesmente desaparecer do mundo em que vivo e gozar da vida pescando ou jogando golfe. Que idéia horrenda! O importante é que ainda me encanto, me surpreendo, pelas coisas que eu não sei, que ainda preciso descobrir. É isso o que me faz vir trabalhar todos os dias e repetir aquela rotina chatíssima que revelei a você lá no começo da conversa (risos).

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