A Carta Capital que está nas bancas traz minha entrevista com o sensacional Daoud Hari, exilado sudanês que escreveu o best-seller O Tradutor, agora editado no Brasil pela Rocco. A história é das mais dramáticas que ouvi e o homem manda um recado para os brasileiros: ajudem os refugiados africanos!
Segue a entrevista:
Plural
MASSACRE SEM FIM
ENTREVISTA O sudanês Daoud Hari conta em livro por que desafiou as autoridades em Darfur e pede solidariedade brasileira
POR EDUARDO GRAÇA,
DE NOVA YORK
Voz mansa, direto e objetivo em suas declarações, Daoud Hari lança no Brasil este mês seu O Tradutor – Memórias de Um Homem Que Desafiou a Guerra (Rocco, R$ 25), em que relata sua dramática experiência no conflito que assola Darfur desde 2003. Decidido a revelar ao mundo as atrocidades cometidas pelas facções de janjaweed (guerreiros tribais de origem árabe), grupos rebeldes e a ditadura militar que controla o governo a mão de ferro desde o golpe de 1989, todos interessados em controlar a prospecção e distribuição de petróleo que é exportado preferencialmente para a China, Daoud, já refugiado no Chade, criou um nome falso e decidiu trabalhar como intérprete.
Há três anos, na sétima incursão em seu país natal, foi capturado pelo governo de Omar al-Bashir, acusado de espionagem por facilitar a entrada de jornalistas ocidentais em Darfur. Daoud, como gosta de ser chamado, só conseguiu escapar depois das pressões exercidas pelo governo dos EUA e do advogado especializado em Direitos Humanos Christopher Nugent, já que fora preso juntamente com seu patrão, o jornalista Paul Salopek, do Chicago Tribune, ganhador, por duas vezes, do Prêmio Pulitzer de reportagem. No momento, Daoud vive como refugiado em Washington, de onde trabalha diariamente na pré-produção da versão cinematográfica de seu livro. Com previsão de lançamento para 2009, O Tradutor, o filme (sem o subtítulo da edição brasileira), tem roteiro do irlandês Jeffrey Caine, responsável pela adaptação de O Jardineiro Fiel, dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles em 2005. Ainda sem elenco definido, o filme será rodado no Quênia sob a batuta do mexicano Luis Mandoki, famoso por seu documentário-denúncia sobre as eleições presidenciais de 2006 em seu país, sugestivamente intitulado Fraude.
Carta Capital conversou com o intérprete sobre o lançamento de O Tradutor no Brasil, cujo governo estaria numa posição privilegiada, na visão de Daoud, de comandar um esforço internacional para o assentamento de milhares de refugiados – especialmente crianças e viúvas - vivendo sem segurança e perspectivas no Chade, do outro lado da fronteira ocidental do país.
- CARTA CAPITAL: Certa vez o senhor disse que amelhor tradução para Darfur era o planeta perdendo sua consciência. Esta é uma imagem forte, que permeia todo O Tradutor. Como é que o senhor vê a reação da comunidade internacional às atrocidades cometidas no Sudão?
- DAOUD: Há ondas de interesse. Em alguns momentos a atenção é despertada e ao menos fala-se no problema. Passamos a existir. Mas na maioria das vezes o mundo parece querer esquecer o que acontece por lá. A situação por lá é terrível e há pelo menos seis anos não evolui. Trata-se de um genocídio de fato e é difícil entender que a mensagem é a de que precisamos ser pacientes. Para ser completamente sincero, a comunidade internacional fez muito pouco por nós, sudaneses.
- Aqui nos EUA há uma mobilização da comunidade judaica e de celebridades, como o ator George Clooney, ligados ao movimento ‘holocausto nunca mais’, que estabelece um paralelo entre o extermínio dos judeus na Segunda Guerra Mundial e o massacre em Darfur...
- Houve uma movimentação nos EUA, na França e na Grã-Bretanha, com a sociedade civil pressionando os governos destes países para que reconhecessem a existência do genocídio. Os EUA o reconhecem oficialmente. Mas há uma dificuldade específica da comunidade internacional, creio, de lidar com um problema africano e não europeu, por exemplo...
- Há um tratamento diferenciado do que se viu em relação às crises na Bósnia e em Kossovo?
- Exatamente! As atrocidades cometidas em Darfur, se acontecessem em qualquer outro lugar, inclusive no Oriente Médio, seriam tratadas de modo diferente pelos líderes globais. Os governos africanos são fechados e é muito difícil para a ONU ou a União Africana serem fatores de fato decisivos. Esta é, infelizmente, a principal razão pela qual o conflito em Darfur se estende indefinidamente: porque estamos falando do continente africano.
- O senhor acredita que o governo Obama, que começa nesta semana, será mais atuante em relação a Darfur? China e Rússia têm impedido, exercendo seu poder de veto no Conselho de Segurança da ONU, qualquer intervenção militar global no Sudão...
- Obama falou muito de Darfur em sua campanha, Joe Biden (o vice-presidente eleito) também e há grande esperança no Sudão de que ele possa ter uma atuação mais decisiva. Mas, sendo bem realista, o momento político não poderia ser pior. A crise financeira dos EUA e a invasão de Gaza por Israel serão as prioridades de Washington. Creio que seremos deixados no esquecimento mais uma vez. É o que tem acontecido nestes seis anos todas as vezes que aparece uma crise mundial. A situação, de certa maneira, favorece o governo Bashir, que se sente ainda menos vigiado.
- A crise econômica também favorece o estreitamento de relações entre Cartum e Pequim, não?
- A China vem se tornando, a cada dia, mais poderosa no Sudão. Aliás, em toda África. Há uma presença européia, resquício do período colonial, mas especialmente na África Central e Oriental, o poder econômico dominante é a China. E eles não querem intervenção militar no Sudão, não querem qualquer interferência em seus negócios, em sua exploração de petróleo, no lucrativo negócio de venda de armas.
- Em O Tradutor você escreve repetidas vezes que há uma lógica simples na situação de Darfur: se o governo e os rebeldes não tiverem acesso às armas, o massacre acaba...
- Exatamente. E os EUA, como se sabe, dependem cada vez mais dos chineses economicamente. Tem sido particularmente difícil para Washington se mover diplomaticamente em relação a Darfur por conta desta relação de dependência. Quando estive na República dos Camarões, saindo de Darfur pelo Chade, antes de ser aceito como refugiado nos EUA, fui ao mercado e descobri que poderia comprar chinelos made in China por um preço bem baixo. No entanto, descobri que os chinelos haviam sido fabricados lá mesmo nos Camarões. A diferença é que os trabalhadores eram chineses! A mão-de-obra que eles estão empregando nas fábricas africanas é chinesa. É uma política de exploração, pura e simples. Não há uma preocupação humanitária ou de desenvolvimento econômico do continente. É apenas a velha busca de recursos naturais, exploração pura e simples.
- A sua voz é hoje extremamente importante para não nos deixar esquecer de Darfur. Mas obviamente foi uma decisão difícil a de se tornar um tradutor para jornalistas americanos e europeus em meio às atrocidades cometidas no oeste de seu país. O senhor quase não escapa vivo para contar sua história. O que o fez arriscar sua vida de forma tão radical?
- Não foi uma decisão difícil. Ela já havia sido tomada em 2003, antes de ter escapado para o campo de refugiados no Chade, um ano depois. Meu único receio era se minha família, irmãos e pais, estivessem ainda no Sudão. Quando eles escaparam, sabia o que tinha de fazer. Passei então a andar pela área de Darfur com os jornalistas ocidentais, que, aliás, do ponto de vista do governo, também estavam todos ilegalmente em meu país. Tive a opção de pegar em armas e combater os abusos do governo, mas nunca fui um homem da luta armada. Esta foi minha maneira de denunciar o que havia por lá, de ajudar meu país. E, claro, eu via o sofrimento nos campos de refugiados, as ONGs, e me sentia uma pessoa sem muita utilidade na sociedade...
- Porque, como refugiado, você não podia trabalhar...
- Isso! Ser intérprete foi uma possibilidade de usar meu conhecimento para ajudar minha gente.
- E ainda ganhava por isso...
- Ah, mas não foi uma decisão tomada pelo dinheiro, não! Cheguei a ganhar 20 dólares por dia e foi o máximo. Mas o importante era fazer chegar às pessoas as imagens horrendas que havia visto, os estupros, as mortes, os ataques às mulheres e crianças. Era mostrar que aquela era a rotina, o dia-a-dia de meu povo. Melhores razões impossíveis.
- Como é a sua vida hoje, vivendo como um refugiado nos EUA?
- Aqui é possível trabalhar, escrevi o livro. Não é um problema específico dos EUA, mas do exílio, como você deve imaginar, as dificuldades de se integrar à nova comunidade, de superar a distância e a impossibilidade de seu local de origem. E, quando se trata de Darfur, você não pode ligar todos os dias, o contato é mais precário. O que queria era contar com mais refugiados de Darfur aqui, que os EUA se abrissem para a criação de uma comunidade de darfurianos aqui.
- Não há uma política específica de recebimento dos refugiados sudaneses estacionados no Chade pelos EUA...
- Testemunhei várias vezes no Congresso, em Washington, e falei bastante da necessidade de se tirar dos campos do Chade os refugiados em situação mais precária, especialmente viúvas e órfãos. Os campos não são seguros e há casos de exploração e tráfico sexual. Em julho, a resolução do Comitê de Política Estrangeira no Senado previu a criação de um programa de recebimento de refugiados sudaneses, mas ela ainda precisa ser votada no plenário.
- E há uma razão clara para o adiamento desta votação...
- Sim, deve-se ao fato de que o Departamento de Estado acredita ser muito perigoso criar um sistema de transporte de refugiados no Chade. E, tecnicamente, se você, de alguma maneira combateu o governo ou pegou em armas, não pode ser considerado um refugiado. Hoje em dia dizer quem é quem é complicado. Há uma sensação de que, se os refugiados estão nos campos, eles estão quietinhos e não incomodam ninguém. Mas, como não se pode trabalhar, muitos jovens acabam não tendo outra opção a não ser pegar em armas e se integrar em algum grupo rebelde.
- Que, por sua vez, se sub-dividem em inúmeros grupos...
- Creio que hoje existam 30 facções independentes lutando entre si e contra o governo no Sudão. É uma situação caótica e a carnificina continua. Quando lancei O Tradutor na Europa fazia questão de perguntar às platéias: por que é que os países da Comunidade Européia não aceitam alguns refugiados sudaneses? Ou pelo menos as viúvas? Fui um dos poucos darfurianos a conseguir sair daquele inferno. Em Amsterdã encontrei alguns compatriotas, mas que estavam lá há 10 anos, antes do genocídio.
- Isso me leva a pensar no papel que o Brasil, o segundo maior país do globo em população de origem africana, cuja prioridade em sua política externa é assegurar uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, poderia ter no acolhimento de refugiados sudaneses. Como o governo e a sociedade civil brasileiras poderiam ajudar os sudaneses?
- O Brasil é cada vez mais um líder entre os países do Hemisfério Sul, mas o governo brasileiro pouco menciona a situação de Darfur. Sempre que vou à ONU me perguntam: o que um país como o Brasil, claramente uma potência emergente, poderia fazer para ajudar Darfur? A resposta é simples: precisamos de ação. O Brasil poderia, pelo menos, pressionar de forma mais contundente para o envio de uma missão de paz das Nações Unidas para a região, de assumir a liderança deste movimento, como a voz do sul. Acredito que até mesmo o clima tropical seria um fator facilitador na assimilação dos refugiados pelo Brasil. Aqui nos EUA, o que há de mais próximo com o clima do Sudão é o Arizona.
- E há o precedente de que nos anos 60 e 70 brasileiros viveram como refugiados políticos na Europa e até mesmo na África, especialmente na Argélia...
- Seria um belo movimento no sentido contrário. O governo americano vem batendo na tecla da segurança quando se trata de receber os refugiados, mas há a prática da realpolitik mesmo, que paira sobre tudo. Israel recebeu há alguns meses algumas centenas de refugiados de Darfur, em uma decisão inédita, e o governo Bashir imediatamente reagiu dizendo que receberia refugiados palestinos no Sudão. É o toma lá dá cá. Ele aproveitou para aparecer como o bom árabe.
- Aqui nos EUA há a noção de que a religião – árabes no norte, cristãos no sul – é um fator importante no desastre de Darfur. Mas em seu livro você refuta esta asserção...
- Religião não foi, em nenhum momento, uma das motivadoras do genocídio em Darfur. Tivemos problemas no sul do Sudão, anos atrás, relacionados a religião, mas trata-se de reducionismo perigoso traduzir o que ocorre em Darfur pelo viés religioso. Há crianças abandonadas nos campos de todos os credos e todas as cores. Também não é um problema entre árabes e negros, de rivalidades étnicas. Mas o mais importante é seguir denunciando. Na semana passada recebi a informação de que 6 mil crianças estão lutando entre os rebeldes. Um menino que tinha 6 anos quando o genocídio começou tem hoje 12 e esta é a vida que ele conhece, é normal pegar em armas para sobreviver. Temos que acabar com isso.
segunda-feira, janeiro 19, 2009
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