sexta-feira, agosto 29, 2008

VONNEGUT


Saiu no Valor Econômico de hoje minha reportagem sobre Armageddon in Retrospect o livro editado por Mark Vonnegut com alguns dos primeiros escritos de seu pai, Kurt Vonnegut (1922-2007), um dos maiores escritores da literatura contemporânea nos EUA e ferrenho crítico da ascensão neo-conservadora em Washington.

Segue o texto (o livro está aqui ao lado, na prateleira):


Os papéis de Vonnegut

Por Eduardo Graça, para o Valor, de Nova York

29/08/2008


Vonnegut: "A invasão do Iraque o deixou especialmente angustiado. Ele não conseguia entender como uma 'guerra' havia começado sem que sequer houvesse de fato um 'inimigo' ideológico", diz o filho


Quando Kurt Vonnegut morreu, em abril de 2007, aos 84 anos, lidava com a dificuldade de esquematizar aquele que poderia ter sido seu derradeiro romance. A idéia do autor de "Matadouro 5", considerado um dos marcos da literatura americana do século XX, era a de contar a história de um comediante, diz em entrevista exclusiva ao Valor o pediatra Mark Vonnegut. "Mas papai não conseguia de jeito algum fazer com que o protagonista ficasse engraçado!", revela o médico, que estreou também como autor, com aplausos da crítica, em 1975, com "The Eden Express: a Memoir of Insanity". No livro, Mark dividia com os leitores sua experiência com a esquizofrenia. Pouco mais de um ano depois da morte de Kurt, coube ao mais novo dos Vonnegut editar "Armageddon in Retrospect", livro póstumo que reúne escritos, desenhos e pensatas de um dos intelectuais mais francos na oposição à invasão do Iraque pelo governo Bush e à ascensão dos neoconservadores em Washington.

"Um Homem sem Pátria", o livro anterior de Vonnegut, reunia ensaios políticos e textos recheados de excentricidade, como o que propunha uma releitura de "Hamlet", de Shakespeare, a partir de códigos matemáticos. Em comunhão com a obra anterior, "Armageddon" apresenta alguns de seus desenhos (sobre um deles, um círculo laranja, ele escreve, em cor-de-sangue: "Aqui nos EUA é assim - vitoriosos contra derrotados. E o resultado está sempre arranjado". A capa traz um auto-retrato rabiscado à mão e um de seus mais famosos símbolos - o desenho (literal) de um asshole (metáfora para "estúpido") por ele popularizado em outro de seus clássicos, "Café-da-Manhã dos Campeões", de 1973. O grafismo dialoga de forma irônica com o título do livro. Nas páginas seguintes, alguns dos primeiros textos escritos por Vonnegut, ainda em meio à turbulência da 2ª Guerra Mundial.

Curiosamente, o filho do escritor demorou a se convencer da necessidade de publicação da obra, que substituiria o romance inacabado: "Não tinha certeza sobre se meu pai realmente gostaria que esses escritos fossem publicados e achei melhor deixá-los descansando em paz. Mas nunca achei que tivesse poder de fato para interromper sua publicação." O médico, que vive no subúrbio de Boston, concordou apenas em ler os escritos que o agente do escritor havia selecionado para "Armageddon in Retrospect". "Aí eu literalmente me apaixonei pelo material. É incrível a qualidade do que ele já escrevia naquela época. Tudo o que aconteceu em Dresden cristalizou a sua literatura", afirma.

Foi em Dresden que Vonnegut presenciou os terríveis acontecimentos mais tarde narrados em "Matadouro 5". Descendente de alemães radicados nos Estados Unidos, ele se viu prisioneiro de guerra na cidade germânica bombardeada exaustivamente por americanos e britânicos em 1945. Sobrevivente de uma carnificina que tirou a vida de até 135 mil pessoas, Vonnegut transformou seu livro mais celebrado em um acerto de contas com a própria consciência (por que ele, entre tantos, não perecera?), ao mesmo tempo em que ofereceu de forma crua seu entendimento da morte e da crueldade humana.

Sobrevivente da Segunda Guerra, escritor dizia que "a maior diferença entre Bush e Hitler" era "o fato de que o alemão foi eleito"


"Nós dois tínhamos essa cumplicidade muda, não precisávamos sequer conversar sobre o tema para entender que eliminar vidas e destruir cidades são atos que raramente levam a algo positivo. Mas a invasão do Iraque o deixou especialmente angustiado e frustrado. Ele não conseguia entender como uma 'guerra' havia começado sem que sequer houvesse de fato um 'inimigo' ideológico", revela Mark. O mais impactante dos 11 capítulos de "Armageddon" é justamente o dedicado ao bombardeio aliado de Dresden. Vonnegut faz um ataque à noção de que gestos nobres (o fim do nazismo) possam justificar atos hediondos. No dia-a-dia da guerra, todos estão errados ou, como prefere: "Estou convicto de que o tipo de justiça que aqui aplicamos, bombardeando populações inteiras, é blasfemo."

Usou a mesma lógica ao analisar a política americana no Oriente Médio logo após a controversa eleição de George W. Bush em 2000 e o 11 de Setembro: "A maior diferença entre Bush e Hitler é o fato de que o alemão foi eleito."
Outra de suas "boutades" era destinada aos que teimavam em importuná-lo sobre a injustiça de não ter recebido o Prêmio Nobel. Mark lembra que ele dizia, em tom conspiratório, ter sido esnobado pelos acadêmicos por causa de sua crítica veemente ao primeiro carro Saab lançado pela fábrica sueca. "O que posso dizer tanto sobre o Nobel quanto sobre a relação de papai com a 'New Yorker' é que muitas vezes ele considerava seu nível de comunicação com o leitor tão visceral que, de alguma maneira, acabava desqualificando-o, deixava-o em uma posição menor do que a do escritor sério que ele sabia ser", comenta Mark. Essa relação íntima com o leitor o levou a ser esnobado por setores da intelligentsia e visto como um ingênuo até por seus pares.

Gore Vidal, que depois se tornaria um amigo próximo, descreveu-o certa vez, reza a lenda, como "o pior dos escritores americanos". Maldade do liberal, que muitas vezes se encontraria entrincheirado com o socialista à moda antiga em batalhas contra a boçalidade reinante. E se os escritos sobre o cotidiano no império que o deixara "apátrida" fazem o leitor estabelecer contato com as razões do dissidente em "Um Homem sem Pátria", as histórias de "Armageddon" nos levam à guerra de forma direta, ao campo de batalha, a viagens no tempo e até - na história que dá titulo à coleção - a uma tentativa de ludibriar o diabo para se criar um planeta menos doente.
"Não creio que ninguém de fato consiga chegar a um consenso consigo mesmo após viver uma experiência real de guerra, como aquela a que papai sobreviveu. Escrever o ajudava a preencher a vida, a entendê-la como uma experiência completa", analisa Mark, autor de emocionante introdução ao livro.

"Armageddon in Retrospect", ainda sem lançamento previsto em português, pode ser comprado na Livraria Cultura (www.livrariacultura.com.br ) por R$ 45,66.

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