sexta-feira, junho 13, 2008

PERFIL/SALMAN RUSHDIE

O expresso Oriente de Salman Rushdie
Por Eduardo Graça, para o Valor, de Nova York

Depois de uma hora ouvindo sir Salman Rushdie, sai-se do encontro mais entusiasmado com a criatura do que com sua mais nova criação. Não se trata de depreciação gratuita. "A Encantadora de Florença" (Companhia das Letras), o décimo romance do escritor britânico de 60 anos, que chega às livrarias brasileiras em novembro, é uma delícia de ler. Se não é uma obra-prima como "Os Filhos da Meia-Noite", oferece uma eletrizante aventura pelos três continentes no ocaso da Idade Média, em meio a conflitos entre Ocidente e Oriente, ao mesmo tempo em que se revela uma ode ao prazer de contar histórias. "Contamos histórias sobre nós essencialmente para entendermo-nos. Elas são o coração do ser", diz o escritor.

Ele encara uma multidão de fãs no lançamento da obra em uma livraria no coração nervoso de Nova York. Vinte anos depois da publicação de "Os Versos Satânicos" e da declaração de fatwa do aiatolá Khomeini, afirmando ser dever de todo muçulmano eliminar o "escritor herege", não deixa de surpreender a falta de policiamento ostensivo no local. Rushdie não parece preocupado. Gripado ou alérgico, trajando um longo sobretudo negro apesar do calor fora de época em plena primavera, lê um trecho do livro passado em meio à histórica Batalha de Chaldiran, em 1514. Pára repetidas vezes, assoa o nariz, mas segue em frente, vitorioso diante do silêncio da platéia. Seus personagens se mesclam a figuras históricas e fica evidente o prazer do historiador formado em Cambridge em revelar de onde retirou determinada informação.

Maquiavel, um dos personagens de "A Encantadora de Florença": "Ao falar sobre alguém que foi tão demonizado em seu tempo, não consegui deixar de ter uma certa simpatia por ele, não é?", diz, bem-humorado, o escritor

Rushdie escreveu esse romance no mesmo momento em que o casamento com a atriz - agora apresentadora de um dos maiores sucessos da TV paga americana, o reality show "Top Chef", do canal Bravo - Padma Lakshmi, de 38 anos, sua quarta mulher, chegava ao fim. Ele já disse que, de certa forma, escrever o livro que começa na Itália renascentista do século XVI e passeia por 50 anos de história na Índia, Pérsia e Turquia, salvou sua vida. Estar naqueles confins perdidos de história era "mais confortável" do que na vida real.

O projeto do livro, porém, é mais antigo. Foram sete anos de estudos revelados em uma bibliografia de mais de 80 títulos. "Tive de fazer uma pesquisa detalhada, por exemplo, sobre o 'Kama Sutra'. O capítulo 4 é um espetáculo, eu recomendo! E há pelo menos outras três narrativas fundadoras do estudo da sexualidade no Oriente. E, neles, exatamente como no 'Kama Sutra', há uma ênfase na preparação, nos cremes, nos preparados. Não posso dizer que eles de fato ajudam na hora do vamos ver, porque não fiz uma pesquisa tão empírica assim, mas todas essas narrativas já são puro realismo mágico", conta, com humor.

Rushdie se diverte ao revelar que, em "A Encantadora de Florença", trechos que os leitores pensarão ser um recurso estético advindo do realismo mágico que ele tanto admira são, de fato, pura história. E vice-versa. Um dos mais saborosos é o da rainha hindu inventada por Akbar, o Grande, o maior dos monarcas do Império Mughal, para a corte muçulmana, tornando-se o primeiro soberano da Índia pré-moderna a valorizar a tolerância religiosa. Rushdie lembra que, na Índia, acredita-se piamente na existência física de tal rainha. Qualquer criança sabe que a mulher de Akbar, o Grande, foi a rainha Jodha, uma figura, entretanto, inexistente nos anais da história.

O título, no entanto, refere-se à lenda da Princesa Desaparecida, Kara Koz, uma nobre mughal que decidira abandonar a Índia para viver com estrangeiros. Quiçá na Toscana renascentista? É um misterioso viajante, vindo das bandas da Itália com ajuda de piratas escoceses, quem traz ao imperador uma solução possível para o mistério da tal "encantadora" (ao mesmo tempo incrivelmente bela e conhecedora de encantamentos mágicos). Em uma trama com nomes e sobrenomes que se confundem mesmo na cabeça do leitor atento, a figura mais bem-construída é a de Akbar. Em seu longo reinado (1556-1605), foi guerreiro incansável e amante da literatura, devoto muçulmano, mas contava no gabinete com seguidores de diversas religiões. Recebeu até jesuítas portugueses (retratados de forma jocosa) na luxuosa capital que construiu para si.

"O livro parte da idéia de que o mundo não mudou. Os homens não estão diferentes. Religião é um negócio tão sangrento quanto há cinco séculos"

Outras figuras históricas surgem na narrativa, incluindo um certo Nicolau Maquiavel. "A Encantadora de Florença" também pode ser lido como uma conversa imaginária entre Maquiavel e Akbar, que, em um intervalo de 50 anos, refletiram sobre variados aspectos do exercício do poder e do bem-fazer público na era dos príncipes. Rushdie revela que almejou recuperar a reputação do italiano. "Maquiavel não estava nem um pouco errado sobre a natureza humana. Ele era um republicano exemplar, um sujeito íntegro que jamais se curvou à corrupção, um homem que foi cruel e direto com os príncipes amorais de seu tempo", afirma. "Sua obra-prima é uma formulação condensada do exercício do poder naquele momento histórico. Ele também era bem-humorado, autor das comédias mais populares da Itália de então. E, ao falar sobre alguém que foi tão demonizado em seu tempo, não consegui deixar de ter uma certa simpatia por ele, não é?", diz, piscando o olho.

Muito alto, com movimentos elegantes, Rushdie transpira o humor e a mágica que povoam seus romances. Quando pensa em Maquiavel, remete tanto à celeuma causada pelos exemplares de "Versos Satânicos" queimados por muçulmanos irados quanto à percepção, por parte do público, de que ele é mais uma personalidade do que um autor de obras fundamentais da literatura contemporânea, como "Os Filhos da Meia-Noite", única a receber duas vezes o prestigioso Booker Prize (em 1981, como livro do ano, e em 1995, como o melhor em 25 anos de premiação).

"Não quero ser um 'talking head', que fala sobre todos os assuntos nos jornais", diz. Mas refuta críticas de que "A Encantadora de Florença" seja seu trabalho mais apolítico. "O livro parte de minha idéia de que o mundo não mudou tanto assim. Os homens não estão tão diferentes. Religião é um negócio tão sangrento quanto o era há cinco séculos. O quão constante é a natureza humana - e aqui incluo também, por favor, todos os aspectos positivos da humanidade - é talvez o tema que mais me interesse. É o que me faz escrever."

Para um homem daquele tamanho e com a história que carrega, seu sorriso manso, suave, quase pedindo licença para ocupar o ambiente, deixa o público intrigado. A imagem de um ser "mais sombrio do que a escuridão", na autodepreciação do escritor, passa longe da personalidade mundana revelada nessa noite quente de Nova York. Aqui ele está mais próximo do dublê de ator bonachão (Rushdie interpreta um ginecologista no primeiro filme dirigido pela atriz Helen Hunt, "The She Found Me", lançado este ano) do que do pomposo cavaleiro da coroa britânica.

"A Encantadora de Florença" teve uma recepção díspar pela crítica especializada dos dois lados do Atlântico. Lançado primeiro na Grã-Bretanha, o livro foi recebido por especialistas como John Sutherland com toda a pompa. No "Financial Times" ele chegou a dizer que "se o Booker Prize não o escolher como melhor livro do ano, vou marinar minha prova com curry e comê-la em um jantar de protesto". Nas terras da rainha, louvou-se este como "o mais novo manifesto de Rushdie pelo poder transformador da narrativa".

Já a inteligência americana, sempre refratrária ao menor traço de melodrama, foi dura. No "New York Times", Michiko Kakutami escreveu que o livro é uma "paródia previsível", em que o melhor de Rushdie - suas analogias políticas em que uma família pode ser a metáfora de uma nação, como em "Os Filhos da Meia-Noite" - é substituído por "ruminações filosóficas sobre o artesanato de escrever ficção e as relações entre arte e vida". Rushdie não segue mais interessado na sugestão de que não houve só um Renascimento, mas dois. E tal peculiaridade histórica pode nos ser deveras útil. Entre as passagens de "A Encantadora de Florença", uma das mais pungentes é quando a rainha Jodha lembra que "os ocidentais são o nosso sonho. E nós, por sua vez, a quimera deles". Impossível não imaginar o sorriso de sir Rushdie ao criar essa fala.

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