sábado, janeiro 12, 2008

CARTA CAPITAL: A América Em Dúvida

A revista Carta Capital publicou esta semana a reportagem do blogueiro aqui sobre a campanha eleitoral norte-americana. Segue o texto:

A AMÉRICA EM DÚVIDA
EUA: Pela Primeira vem em duas décadas não há um claro favorito à Casa Branca, após as primárias de Iowa e New Hampshire

POR EDUARDO GRAÇA, DE NOVA YORK

Foram apenas cinco dias na posição de favorito no flanco democrata, mas o suficiente para que o jovem senador de Illinois virasse de cabeça para baixo a campanha presidencial dos EUA. Pela primeira vez em duas décadas, mesmo após a contagem dos votos nas primárias de Iowa e New Hampshire, não há um claro favorito na disputa pela Casa Branca em nenhum dos dois grandes partidos nacionais. Enquanto os republicanos lutam para encontrar um nome que contagie suas bases, a oposição democrata vive um momento político histórico, no que vem sendo caracterizado pela mídia como a versão eleitoral do embate entre Muhammad Ali e Joe Frazier.

De um lado do ringue, Hillary Clinton, apoiada pela máquina partidária, incluindo a esmagadora maioria dos caciques democratas e seu marido, o ex-presidente Bill Clinton. Do outro, Barack Obama, ungido pela militância do partido, apoiado por sua ‘nova maioria americana’, que inclui independentes e republicanos desiludidos e pelo candidato derrotado em 2004, John Kerry.

Obama venceu em Iowa, Clinton levou a melhor em New Hampshire. Na peculiar lexicografia política norte-americana, estes são ‘estados púrpuras’, ou seja, não pendem nem para os republicanos (vermelhos) nem para os democratas (azuis). E eleitores independentes estavam livres para votar na primária que preferissem. Daí o significado do número muito maior de votos no flanco democrata do que no republicano. Em New Hampshire, Obama, mesmo perdendo para Hillary, teve 16 mil votos a mais do que John Mc Cain, o vencedor da prévia republicana.

“Há duas certezas até agora nesta campanha. Uma é a de que os republicanos não conseguiram encontrar um discurso que os desembaracem da tragédia dos sete anos de Bush. A outra é o fenômeno Obama, que utiliza o tempo todo em seus discursos o pronome você. Enquanto Hillary diz, com orgulho, que ‘eu fiz isso’, que ‘eu sou importante por aquilo’, Obama oferece um espaço aberto, que você, eleitor, pode preencher do modo que melhor lhe agradar. Esta é sua fortaleza, mas ela pode se transformar em fraqueza se ele não usar logo este momento para estabelecer um pacto com os eleitores baseado em idéias mais claras”, diz o sociólogo Stephen Duncombe.

Um dos idealizadores do movimento Bilionários Por Bush, que carnavalizou a disputa eleitoral de 2004 ao satirizar o apoio dos mais ricos ao candidato republicano, Duncombe viu a explosão do fenômeno Obama de sua janela na Universidade de Nova Iorque, quando uma multidão estimada em 20 mil pessoas ocupou a Washington Square em um comício do senador no ano passado. Celebrado pelo livro Dream: Re-Imagining Progressive Politics in an Age of Fantasy, em que urge a esquerda a reinvestir na iconoclastia em vez de se lamentar pela aparente desimportância dos valores iluministas, Duncombe vê na alegria da militância de Obama a criação de um novo espaço na esfera política do país. “Talvez não tenha sido nem um movimento consciente de Obama, mas seus militantes inventaram um espaço em que os cidadãos podem fantasiar ao mesmo tempo sobre quem é este líder, sobre quem são eles, jovens americanos, e sobre o que são os EUA no século XXI, algo que não se via há décadas na nossa realidade política”, diz.

O arco de alianças estabelecidos por Obama, que recebeu mais votos de independentes do que qualquer outro candidato democrata nas prévias de Iowa e New Hampshire, é uma arma utilizada pela campanha do senador para pedir os votos de eleitores preocupados em escolher o candidato com maiores possibilidades de derrotar os republicanos em novembro. Em todas as pesquisas cabeça-a-cabeça, que opõem um nome democrata a um republicano, Obama vence os adversários por larga margem. Hillary, que tem um índice de rejeição acima dos 40%, empata com Rudy Giuliani e perde para John McCain. Além do ex-prefeito de Nova Iorque e do senador do Arizona, os outros dois candidatos mais fortes da situação são os ex-governadores Mitt Romney e Mike Huckabee. Evangélico, Huckabee vem surpreendendo os analistas com sua campanha sem muitos recursos, mas calcada em valores conservadores. Ainda assim, os dois dados mais notáveis em sua biografia seguem sendo seu ataque à obesidade no país (ele perdeu quase 50 quilos depois de um processo de reeducação alimentar) e o apoio de Chuck Norris, presença constante, riso sempre aberto, em todos os seus eventos.

O desencontro dos republicanos gerou uma enorme expectativa de lançamento de um candidato de terceira via que pudesse se aproveitar da rejeição a Hillary. O nome mais cotado é o do atual prefeito de Nova Iorque, o bilionário Mike Bloomberg, ex-democrata que se tornou republicano e desde o ano passado não tem filiação partidária. Nesta movimentada semana, Bloomberg reuniu-se em Oklahoma com uma série de políticos oriundos dos dois partidos, descontentes com a rivalidade entre os dois partidos que impede votações emergenciais no Congresso. Para azar do prefeito, os holofotes estavam todos voltados para Obama e seu discurso propondo a formação de uma ‘nova maioria para a América’, esvaziando o balão de ensaio de Bloomberg. “A estratégia de s expandir a base democrata com um discurso centrado na mudança de geração e em questões ideológicas, ao invés de raça e classe, é simplesmente brilhante”, diz o professor J.Michael Turner, do Hunter College, um brasilianista que é também uma das maiores autoridades nos estudos afro-americanos na costa leste americana.

Para Turner, os ataques de direita que vêm denunciando Obama como um pseudo-negro, em uma antítese a líderes históricos como o Reverendo Jesse Jackson, carecem de substância. Ao contrário de Al Sharpton, outro negro a tentar a sorte anteriormente nas prévias democratas e que ainda não definiu seu candidato em 2008, Jackson anunciou seu apoio entusiasmado a Obama. E seu filho, o deputado Jackson Jr., é um dos coordenadores da campanha do senador.

A espetacular recuperação de Hillary em New Hampshire (todas as pesquisas de boca-de-urna davam como certa uma vitória substancial de Obama) se deu após a candidata deixar mais aparente um lado feminino mais estereotipado, tanto no debate entre os presidenciáveis – em que ao responder a uma pergunta sobre o fato de ela não ser tão adorada quanto Obama disse que ‘isso me dói fundo’ – quando no desabafo em um encontro público em que quase chorou ao dividir com os eleitores a dureza da campanha e os ataques que vinha recebendo.

Depois de, em Iowa, ficar atrás do senador John Edwards, que segue na disputa com o apoio da maioria dos sindicatos, Hillary sofreu uma série de ataques considerados por veteranos comentaristas políticos dos mais virulentos na história política moderna dos EUA. Sua candidatura foi dada como morta e seu palanque em Iowa – que contava com o ex-marido e nomes ungidos de suas duas administrações, como a ex-Secretrária de Estado Madeleine Albright – traduzido como o prenúncio de uma terceira encarnação política da velha raposa do Arksansas, em oposição ao novo representado por Obama. Pior: as aparições do ex-presidente para salas vazias em New Hampshire levaram os jornais a compará-lo ao Elvis Presley gordo, em fim de carreira, lutando para se manter de pé nos cassinos de Nevada.

A situação pareceu ficar ainda mais tenebrosa quando populares gritaram em um comício de Hillary palavras de ordem machistas, como ‘a senhora deveria estar em casa passando roupa!’. Um dia antes de os eleitores do pequenino estado montanhoso da Nova Inglaterra rumarem para as urnas a histórica feminista Gloria Steinem saiu em defesa da senadora com um artigo na página de opinião do New York Times dizendo que mulheres jamais são favoritas para vencer eleições e afirmando que a primeira semana de caça aos votos em 2008 provara que gênero e não raça era o aspecto mais restritivo da vida política norte-americana. No dia seguinte, de acordo com pesquisas feitas com eleitores nas saídas das sessões eleitorais, Hillary recebeu mais do que o dobro de votos de mulheres do que Obama, em uma reviravolta drástica em relação a Iowa.

A discussão se estendeu à internet, onde a pós-feminista Camille Paglia saiu em defesa de Obama nas páginas da prestigiada Salon. “O desdém de Hillary ao mundo masculino se encaixa perfeitamente no ideário de Steinem. Seu artigo revela o sentimentalismo reacionário de um fossilizado establishment feminista. A história vai julgá-las com severidade por sua obtusa indiferença ética às mulheres da classe trabalhadora e estagiárias que são abusadas e ameaças pelos Bill Clintons, enquanto as Hillarys olham para o outro lado e buscam desmoralizar as vítimas”, atacou.

Mas o momento mais tenso da batalha foi gerado pela tática do “bateu-levou” defendida por Mark Penn, principal e polêmico estrategista da campanha da senadora de Nova Iorque. A fim de explorar a fragilidade do discurso de seu adversário, Hillary jogou duas bombas no quartel-general de Obama. A primeira veio quando a candidata, se apropriando de um discurso até então confinado à campanha do ex-prefeito Giuliani, afirmou não ter sido mera coincidência a ação de terroristas na Grã-Bretanha logo após a posse do primeiro-ministro Gordon Brown em substituição ao experiente Tony Blair (“a Al-Qaeda está acompanhando nosso processo eleitoral atentamente”), sugerindo que a possibilidade de ataques aos EUA seriam maiores em um governo Obama.

“O principal ponto fraco de Obama é justamente sua falta de conhecimento do poder executivo. Ele não teve a chance nem mesmo de comandar o orçamento de um pequeno município. A campanha de Hillary tem explorado este tema aonde quer que ela vá, e com alguns bons resultados”, diz o jornalista David Mendell, autor da biografia Obama:From Promise to Power e que cobre a eleição para o Chicago Tribune.

Depois de Hillary, foi a vez de Bill. O ex-presidente, criticado em editorial pelo New York Times por ‘não se comportar como estadista’ ao embarcar na disputa de forma integral, afirmou que Obama, ao contrário de sua mulher, jamais apresentara qualquer plataforma de governo e mudara de posição em relação a sua condenação à invasão de Iraque, apoiada por Hillary. Já é tempo, anunciou, grave, de se acabar com o ‘conto de fadas’ que havia se transformado a campanha democrata.

Duncombe lembra que, de fato, mais do que a inexperiência – Hillary serviu menos tempo em cargos legislativos do que Obama – o que pesa contra o senador de Illinois é a ausência de substância em seu discurso. “Vejo com certa apreensão o depósito de tamanha esperança em Obama pois não temos, honestamente, a menor idéia de quais são os projetos e as idéias por ele defendidos”, diz.

Para os estrategistas da senadora, um de seus trunfos é a boa aceitação de sua equipe econômica pelo mercado, que espera um postura similar à política de crescimento com responsabilidade fiscal dos anos Clinton. Com Obama, o quadro é bem outro. Seu principal conselheiro econômico é o professor Austan Goolsbee, da Universidade de Chicago. No departamento de Economia da faculdade reinaram três prêmios Nobel que se tornaram campeões do mercado – Milton Friedman, George Stigler e Gary Becker. Mas, distante da catequese conservadora, Goolsbee fala em aumento de salário mínimo, em corte de impostos para a classe média com o objetivo de incrementar a movimentação de capital (em oposição aos benefícios concedidos pelo governo Bush à parcela mais rica da população), num programa de combate à pobreza mais ambicioso do que o de Lyndon Johnson nos anos 60 e até na rediscussão de tratados como o NAFTA, para incrementar questões ambientais e os direitos dos trabalhadores. Em editorial temeroso sobre o que seria um governo Obama em meio a um virtual processo recessivo na economia norte-americana, o conservador The Wall Street Journal afirmou que Goolsbee pretende aplicar o maior incremento de impostos jamais visto no país e que sua política econômica ultra-liberal é o ponto mais fraco de Obama, especialmente no momento em que o foco de atenção do eleitor parece se deslocar da ocupação militar do Iraque para o aumento do desemprego e a ameaça de recessão na maior economia do planeta.

Famoso pelo carisma e pelo tom jovial que remetem ao próprio senador de Illinois, Goolsbee vem tentando acalmar os ânimos do mercado, especialmente nervoso com sua intenção de incrementar os impostos sobre dividendos e ganhos de capital. Em entrevista coletiva dada em New Hampshire, declarou que não aceita a carapuça de ‘ultra-liberal’ e lembrou que as primeiras medidas tomadas pelo governo Bush para ajudar os milhares de americanos vivendo o pesadelo da perda da casa própria foram sugeridas pela equipe de Obama no início de 2007.


Uma evento no Grand Hyatt Hotel, na quarta-feira 9, reuniu em torno de Obama e seus conselheiros econômicos boa parte de Wall Street, cada vez mais fundamental na disputa pelos dólares que manterão os principais candidatos no páreo. Hillary e Obama partem para a disputa com os bolsos cheios.

Nos primeiros 10 dias do ano, Obama arrecadou US$ 8 milhões, ante US$ 5 milhões da adversária. Hillary, por sua vez, arrecadou mais no fim de 2007 e divulgou que tem US$ 25 milhões no banco. E como ninguém espera uma definição antes da super terça-feira de 5 de fevereiro (em que 22 estados realizarão primárias) e muitos já apostam que a decisão será mesmo voto a voto, na convenção de agosto, com os delegados de John Edwards decidindo para quem pesará a balança, a captação de recursos continuará a todo vapor. E será fundamental para definir quem continuará de pé no ringue.

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