sexta-feira, junho 16, 2006

ENTREVISTA/James Ivory

A entrevista que fiz com o norte-americano James Ivory, um dos grandes mitos do cinema, diretor de Vestígios Do Dia e Retorno a Howard's End, entre muitos outros filmes, foi publicado hoje, no caderno Eu&Fim de Semana, do jornal Valor Econômico. Ivory ainda estava abalado pela recente perda de seu companheiro na produtora Ivory-Merchant, o genial produtor indiano Ismail Merchant, e conversou sobre o fim abrupto da parceria.


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De costas para Hollywood
Por Eduardo Graça
16/06/2006



No segundo semestre, quando "A Condessa Branca" estrear nos cinemas brasileiros, os espectadores estarão diante da última realização da Merchant-Ivory, a mítica produtora criada há 45 anos pelo californiano James Ivory e o indiano Ismail Merchant, responsáveis por "Vestígios do Dia" e "Retorno a Howard's End". Muito bem agasalhado, trajando um casaco de tweed verde e um cachecol vermelho, Ivory, 77 anos, conversou com o Valor em uma suíte no Hotel Drake, na Park Avenue, acompanhado dos protagonistas de seu filme, Ralph Fiennes e Natasha Richardson.

"A Condessa Branca" reúne todos os ingredientes de uma típica produção da Merchant-Ivory. Passado na Shanghai dos anos 1930, o filme conta a história do encontro de Jackson, um ex-diplomata americano, cego, decepcionado com a política externa de seu país, e Sofia, uma nobre russa, à beira da indigência, refugiada na China desde os expurgos stalinistas.

Durante a finalização do filme, o produtor Ismail Merchant, 68 anos, morreu em Londres, por complicações originadas de uma úlcera no estômago. "O que os dois faziam ninguém mais sequer tenta fazer. Eles levaram o 'cinemão' para um nível que raramente se viu na história da cultura popular contemporânea", diz Natasha. Fiennes admirava Ismail por uma razão muito simples: "Era impossível resistir ao seu charme. Ele era extremamente gregário e convencia qualquer um a fazer, com enorme prazer, o filmes com os quais sonhava".

As duas horas e vinte minutos de "A Condessa Branca" não são, no entanto, o fino de Ivory e Merchant. O roteiro de Kazuo Ishiguro (autor do romance 'Vestígios do Dia') e a sucessão de clichês apresentados em lenta seqüência pela mão nem sempre leve de Ivory não ajudam muito. Mas há o enorme esforço de produção, com a reconstrução meticulosa do Bairro do Prazer, o elenco de gigantes, com quase toda a família Redgrave (além de Natasha, a mãe Vanessa e a tia Lynn), e a direção de fotografia do craque Christopher Doyle (de "2046", de Wong Kar-Wai).

Parte da crítica americana considerou "A Condessa Branca" uma tentativa de unir "Casablanca" a "O Paciente Inglês". De certo modo, o mítico "Rick´s" de "Casablanca" ganhou nova vida em "A Condessa Branca", o bar erguido por Jackson, que, cego, não quer mesmo enxergar o que se passa à sua volta. Mas, aqui, é como se ele acreditasse que a única solução para tempos de crise extrema, como o entre-guerras asiático, dominado pelo expansionismo japonês, fosse a criação de um oásis de otimismo, prazer e tolerância. Na casa noturna de Jackson, maoístas, nacionalistas, japoneses, americanos e europeus são tratados do mesmo modo. O paralelo, claro, é mais do que tentador. Não foi assim que a Merchant-Ivory almejou conquistar seu espaço na história do cinema contemporâneo? Como uma espécie de refúgio possível da elegância e do bom gosto, em meio à cada vez mais vulgar e risível cultura de celebridade que se instalou em Hollywood? Com a palavra, James Ivory.

Valor: Como foi a experiência de filmar em Shanghai?

James Ivory: Foi uma grande aventura dirigir um filme na China. Foi minha primeira vez lá. Eu nunca havia filmado cenas de um exército tomando de assalto uma cidade estrangeira e, honestamente, não sabia como deveria resolver isso. Eu também estava preocupado com a realidade das casas noturnas, porque, por exemplo, não tinha certeza se os figurantes todos poderiam dançar de verdade [risos]. Mas descobri que os chineses são fantásticos dançarinos de salão. Sempre tenho esse medo, esse receio de que não vou conseguir capturar a atmosfera daquela história quando começo a filmar. Mas de alguma maneira a gente sempre consegue, não é?

Valor: E de onde surgiu a inspiração para contar a história desse encontro em Shanghai? Foi idéia de Ishiguro?

Ivory: Não, a história deveria ser completamente diferente, inspirada em um romance do autor japonês Junichiro Tanizaki, "The Diary of a Mad Old Man". Mas Kazuo, responsável pelo roteiro, não conseguiu adaptar nada a partir daí. Nunca perguntei isso a ele, isso é da minha cabeça, mas ele estava terminando seu romance "Quando Éramos Órfãos", que também se passa em Shanghai, no mesmo período histórico. Acho que ele decidiu que, assim como o livro, precisava fazer algo completamente original. O pai e o avô de Kazuo viviam naquela Shanghai cosmopolita dos anos 1930 e ele cresceu ouvindo as histórias sobre a invasão japonesa. Cá entre nós, achei o roteiro dele muito mais interessante do que uma simples adaptação do livro de Tanizaki. Trabalhamos, então, durante anos a fio, cheguei a terminar três filmes, incluindo "À Francesa" e "A Taça de Ouro", desde que recebi o roteiro e iniciamos a filmagem.

Valor: Há um paralelo entre a crise política daquela época e a dos dias de hoje?

Ivory: Acho que são duas histórias diferentes. A história política, a grande batalha entre nacionalistas e comunistas, fica como pano de fundo, não é explicitada como uma lição de história. Em Shanghai, o foco está nos refugiados de todos os cantos que vão chegando à cidade, dando um clima de uma Chicago ou uma São Francisco no meio do século XIX. É um lugar aonde todos vão, na esperança de ficarem ricos. E, claro, não sou um especialista em história chinesa. Aliás, pense em "Vestígios do Dia". Sou um diretor que usa o panorama histórico como pano de fundo mesmo. Não quero ser didático.

Valor: E o senhor decidiu escalar um britânico para fazer um diplomata americano...

Ivory: Mas quem mandou o roteiro para o Ralph (Fiennes) foi justamente o Ismail. Eu nem sabia disso. Um dia, eles estavam almoçando em Londres e me convidaram. Eu não o conhecia, já gostava muito dele como ator, e não me incomodou nem um pouco a nacionalidade dele. Os ingleses, aliás, sabem fazer um americano na tela como ninguém [risos]. Agora, sabe que ele não ficou completamente satisfeito com o roteiro, inicialmente? Ele achava que o personagem precisava contar com algo mais e então sugeri que ele fizesse um cego. Ele adorou.



Valor: O processo foi parecido com a escolha de Natasha?

Ivory: Conheço Natasha desde que ela tinha 14 anos. Acho que há algo nela, na capacidade de acumular emoções e soltá-las de supetão, que é vagamente russo. Ela não faz a linha "beleza perfeitinha". Ela tem algo que nos faz pensar que poderia ter tido uma vida difícil, que sofreu um bocado. E eu achava isso fundamental para a personagem.

Valor: E com ela veio a família toda...

Ivory: Trabalhei bastante com Vanessa (Redgrave), e posso dizer que, no filme, ela fez algo bem diferente do que estava previsto no papel. A tia Sara seria uma senhora doce, agradável, mas não exatamente inteligente. Vanessa a transformou em uma outra mulher, o que foi ótimo. Conversando com ela, pensamos: Bem, a outra senhora, Olga, poderia ser a Lynn (Redgrave). Por que não? [risos]

Valor: Acontece muito com o senhor de os atores decidirem que o personagem não era exatamente aquele que lhes foi apresentado?

Ivory: Acontece o tempo todo. Às vezes, modificando a entonação de uma palavra que é repetida no filme, o ator transforma completamente o personagem. Mas na maior parte das vezes, é claro, meus atores trabalham em cima do roteiro e da idéia que lhes é apresentada [risos].

Valor: Qual seu próximo projeto?

Ivory: Já estou filmando, na Argentina, "The City of Your Final Destination", baseado no romance de Peter Cameron. Claro, há um contraste geográfico óbvio [risos], mas a história não é tão diferente assim. Afinal, lido mais uma vez com personagens que se descobrem estrangeiros. E, mais uma vez, se vêem isolados e tentando tomar as rédeas de seu destino.

Amizade Com Fundas Raízes Profissionais


Merchant e Ivory se conheceram em 1961, em Manhattan, quando decidiram que deveriam se unir em torno de uma paixão comum: a Índia. Recém-saído da Universidade de Nova York, Merchant imaginou uma produtora que se especializaria em realizar filmes sobre a Índia para o mercado internacional. Resultado: mais de 40 filmes e 31 indicações para o Oscar (sendo três para filme do ano e vários para melhor figurino) em quatro décadas de atividade, a maioria com roteiro de Ruth Prawer Jhabvala.

"Ismail era fundamental em meu trabalho. Fundamental. Ele era aquele que fazia absolutamente tudo, menos dirigir os filmes. Era quem estava presente desde quando tinha o primeiro lampejo, a idéia inicial de se filmar algo, até definir quem os distribuiria, em que festival o mostraríamos, essas coisas. Ele nunca, mas nunca mesmo, se afastava dos filmes. E sabe de uma coisa? Ainda tenho esta certeza de que ele conseguia fazer determinadas coisas que ninguém mais conseguiria, uma coisa meio mágica, sabe?", diz Ivory, os olhos fixos no teto do quarto de hotel.

Merchant foi especialmente fundamental nos primeiros anos da produtora. Filmes "menores", como "De Shakespeare com Amor" (1965) e "O Guru" (1969), não foram exatamente sucesso de público e crítica, mas abriram o caminho já pavimentado por uma imensa curiosidade pelo Oriente e pelas diferenças culturais do mundo moderno. Mas o californiano Ivory e o indiano Merchant alcançaram o ápice de sua carreira conjunta quando decidiram mergulhar fundo em outra paixão comum: a literatura inglesa. Suas traduções de romances de E. M. Forster e Henry James, como "Os Europeus" (1979), "Um Amor em Florença" (1986), "Howard´s End" (1992) e "Vestígios do Dia" (1993), são consideradas obras-primas do cinema contemporâneo.

Embora homossexuais assumidos, os dois nunca formaram um casal. Passavam grandes temporadas na casa de campo de Ivory, no estado de Nova York, onde Merchant cozinhava suas famosas refeições indianas. "Nos últimos anos, no entanto, ele ia bem menos para a frente do fogão. Mas era, sim, nosso cozinheiro honorário. Isso começou anos e anos atrás, quando filmávamos numa cidade afastada de Manhattan e passávamos as sextas-feiras conferindo o que havíamos filmado durante a semana. Como não havia restaurantes por perto, Ismail ia para a cozinha e, inevitavelmente, nos brindava com um fantástico jantar indiano. E isso virou, ainda bem, uma tradição", conta o diretor.

Para Anthony Hopkins, que trabalhou com a dupla em "Vestígios do Dia" e "As Mulheres de Picasso", "a tristeza da morte de Ismail dói mais quando penso que ele foi, essencialmente, um pioneiro". Ivory concorda e conta que a elegância formal de seu cinema deve muito ao olhar atento de Merchant. "Vou ser direto: sem ele, sem seu otimismo, tenacidade e força de vontade, eu e Ruth jamais teríamos terminado nenhum de nossos filmes". (EG)

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