Está na revista de fim de semana do Valor Econômico a reportagem do escriba aqui sobre a temporada que acaba este fim de semana da Broadway. O teatro em tempos de crise econômica deu uma reviravolta interessante, com espetáculos mais subversivos e politizados.
Ó só:
O Despertar da Broadway
Temporada é marcada por temas subversivos e incômodos, opostos ao escapismo de Hollywood.
Por Eduardo Graça, para o Valor , de Nova York
Abela adormecida. Essa é aimagem cunhada pelos principais críticos de teatro, diretores, produtores e atores que fazem de Nova York talvez o maior palco do teatro comercial do planeta para definir a Broadway em termos de crise. Menos por conta da ingenuidade da personagem da Disney — há décadas a senhora absoluta da Times Square — e mais pelo choque de realidade, a Broadway dos anos Obama parece ter acordado para o mundo que a cerca. A temporada, que tem seu ato final neste domingo com a premiação do Tony, foi marcada por espetáculos surpreendentes que giraramemtorno de temas subversivos, incômodos e inteligentes, opostos exatos ao escapismo fácil que tomou conta de Hollywood no mesmo período.
Tome-se por exemplo o soturno “Hair” criado por Diane Paulus, uma diretora celebrada pela adaptação disco de “Sonhos de uma Noite de Verão”, durante seis anos atração obrigatória no circuito alternativo da cidade.
A última cena de “Hair” traz o protagonista imolado, sobre a bandeira tricolor, enquanto se ouve, sem a graça hippie presente no filme de Milos Forman, a trupe entoar “Let the Sushine In” a capella. Ao voltar a 1967, ano em que a peça foi encenada pela primeira vez, inaugurando o Public Theater, Diane Paulus não deparou “com um mundo hippie-happy”.
“Não, aquele era um momento tenso, divisor de águas. Não era fácil para os jovens”, diz.
Daí a decisão de centrar fogo na história de Claude, filho de imigrantes que busca desesperadamente o significado de ser americano. “Ele se pergunta se ser patriota é acreditar nos ideais americanos, na liberdade que pressupõe a crítica aos governantes de seu país, ou se esse sentimento tão fundamental para quem vive aqui se traduz em vestir um uniforme e pegar em armas por seu país”, comenta Diane.
O conflito interno do jovem de cabeleira loura é, na visão da diretora, a encruzilhada emque se vê a própria América do século XXI. E o sacrifício de Claude (vivido na peça pelo ótimo Gavin Creel, indicado para o Tony de melhor ator) é das cenas mais fortes de uma temporada intensa nos teatros nova-iorquinos.
“É intenso sim. Mas belo também. Queria que esse lado da história de ‘Hair’ fosse revelado. A gente imagina ‘Let the Sunshine In’ como algo para cima, um mantra hippie. No filme, há a referência à highway, à liberdade ianque. Mas para mim é o oposto. Trata-se de um grito desesperado por um mundo novo. É a tribo de jovens sentindo que perdeu Claude, morto em uma terra distante. É um grito gutural, de dor, por Claude, mas também é uma visão de um futuro de morte e guerras.”
Nos últimos três meses, os reis leões, as mamma mias e as mary poppins receberam a companhia — e com casa cheia — de seres nascidos da imaginação de Ionesco, David Mamet, Samuel Beckett ou Yasmina Reza. E também de musicais oriundos ou aparentados ao cinema, mas distantes do pedigree Disney, como “Hair”, “West Side Story” e, acima de todos, “Billy Elliot”. Com 15 indicações para o Tony, o espetáculo, sucesso de público e crítica na Inglaterra e na Austrália, traz a depressão econômica do thatcherismo para a sala de jantar da Nova York pós-colapso deWall Street. Não há herói mais exato, em tempos de vilões como Bernard Maddoff, do que o bailarino filho de operários da quase defunta indústria do carvão vivido no palco pelos talentosíssimos David Alvarez, Trent Kowalik e Kiril Kulish.
Foi, também, uma temporada com estrelas para todos os lados, com William H. Macy (“Fargo”) em “Speed-the-Plow”, de Mamet, Jane Fonda como uma doente terminal bailando com o fantasma de Beethoven em “33 Variations”, Susan Sarandon e Geoffrey Rush em “Exit the King”, de Ionesco, James Gandolfini (“Família Soprano”), Jeff Daniels (“A Era do Rádio”), Hope Davis (“Synecdoche, Nova York”) e Marcia Gay Haden (“Pollock”) destilando humor negro na comédia sensação da temporada, “God of Carnage”, deYasmina Reza, Daniel Radcliffe (“Harry Potter”) nu em “Equus”, Nathan Lane (“Os Produtores”) visitando “Esperando Godot” e, sim, Will Ferrell (“Mais Estranho Que a Ficção”) enterrando de vez George W. Bush com seu cáustico “A Final Night”. E ainda há uma rendição estelar de “Mary Stuart”, de Schiller, a estreia de Neil LaBute nos palcos da Broadway e o tão impressionante quanto improvável “Next to Normal”.
“O resultado é que neste domingo os eleitores do Tony terão uma tarefa dificílima, algo que não acontecia havia décadas”, afirma, entusiasmado, o crítico Ben Brantley, do “The New York Times”.
Em uma temporada que também quebrou recordes históricos de bilheteria — um total, até esta semana, de US$ 943,3 milhões em ingressos para 43 espetáculos —, “Hair” foi o precursor de uma onda “cabeça” que tomou conta dos palcos de Manhattan.
Apresentado no verão de 2008 no Central Park, muitos duvidavam que o revival chegaria à Broadway, inclusive os patrocinadores originais, que deixaram de apoiar um dos hits de 2009. “Havia uma ansiedade no ar. Era como se a gente quase tivesse se esquecido de como seria o país se a mudança viesse”, diz Diane Paulus.
“Hair” se alimentou dessa energia como poucos na Broadway. “E agora o espetáculo, com Obama no poder, se transformou em algo diferente. A celebração que ocorre ao fim de duas horas, com a plateia dividindo o palco com os atores, vem dessa certeza de que você, o público, pode ser o agente transformador”, acrescenta a diretora.
Nada mais próximo da liturgia obâmica. E Paulus, que acaba de assumir a direção do prestigioso American Repertory Theatre, em Cambridge, e é fã ardorosa do trabalho do diretor Augusto Boal, concede que Let the Sunshine In contém um suspiro de esperança. Esta talvez, arrisca, seja a senha para se entender o momento rico pelo qual passa a Broadway. Realismo doído com esperança pé-no-chão. “Havia um sentimento fúnebre, com a crise econômica, as pessoas perguntando: com a queda de Wall Street, há lugar para a Broadway tal qual a conhecemos? Que espaço há para o teatro nova-iorquino nessa realidade? Procuramos então transmutar um produto de luxo para algo mais essencial na vida em comunidade. As pessoas querem refletir sobre o que estamos passando, e querem fazer isso irmanados”, diz Paulus.
Em uma sociedade cada vez mais poluída por aparatos eletrônicos e espaços na internet que parecem celebrar uma das características mais emblemáticas do imaginário norte-americano, o individualismo libertário, a eleição de um líder comunitário à moda antiga, embora alavancado à presidência por milhares de doadores anônimos reunidos de modo virtual em comunidades eletrônicas, parece ter despertado no cidadão – vá lá, no público – o desejo de comunhão cantado por Paulus em prosa e patchulí. De certa forma, Barack e Michelle Obama sintetizaram este momento cultural ao prestigiarem, no fim de semana passado, outro dos espetáculos mais fortes da temporada, Joe Turner’s Come And Gone, de August Wilson, um dos mais influentes dramaturgos de origem negra do teatro contemporâneo norte-americano, falecido há quatro anos.
Segundo capítulo de sua enciclopédica seqüência de dez peças sobre a vida do negro norte-americano após o fim da escravidão, Joe Turner, indicado para o Tony de melhor re-encenação, é um exercício sobre a migração forçada e a busca da identidade cultural e étnica no centro econômico do planeta. Inseridos de forma confortável na sociedade de espetáculo norte-americana do século XXI, os Obama chegaram de limusine ao Lincoln Center, foram aplaudidos de pé por 10 minutos e levaram fãs a manifestações de tietagem e desespero beatlemaníacas.
No dia seguinte, a direita imediatamente lembrou que, em tempos de recessão, a imagem de um presidente conduzindo a primeira-dama – foi ‘promessa de campanha’, dizia um sorridente Barack – com toda pompa por uma noite que incluiu ainda um jantar em um restaurante especializado em produtos orgânicos era um luxo que desafiava o bolso e a paciência dos eleitores. Do outro lado do muro ideológico, se lembrou do retrato mais marcante de George W. Bush, figurino de piloto da Força Aérea, o monólogo ensaiado da ‘missão cumprida” em um porta-aviões, coreografia ensaiada com esmero, logo após a derrubada de Saddam Hussein durante a invasão do Iraque. Fim de ato.
Houve também quem apontasse a decisão estratégica dos Obama de prestigiar a Broadway e não uma grande première em Hollywood. Se no cinema há uma rendição ao escapismo nu e cru, o teatro mais comercial parece infectado pelo vírus do debate de idéias. “Adoraria que presidentes encontrassem tempo em sua agenda para se abrir aos saudáveis e formativos efeitos do teatro sério. Afinal, com a exceção de Abraham Lincoln, não consigo me lembrar de nenhum outro. E a famosa frase de W.H.Auden sobre a relativa incapacidade da arte de afetar nossas vidas reais, bem, o mesmo se pode ser dito da atividade legislativa”, escreveu o critico de teatro do Los Angeles Times, Charles McNulty, celebrando os bons augúrios que vêm de Midtown Manhattan.
De volta à rua 45, Tom Kitt e Bryan Yorkey, respectivamente música e letras de Next to Normal, concordam que este foi o momento certo para apresentarem um espetáculo coreografado de duas horas e meia sobre uma mulher que, além de típica moradora do subúrbio americano, é, também, bipolar. Eleito pelo The New York Times como o melhor musical da temporada, Next to Normal tem direção de Michael Greiff (Rent, Grey Gardens) e recebeu 11 indicações para o Tony. Primeiro musical da história da Broadway a girar em torno da psicose maníaco-depressiva, Next to Normal foi apresentado por Ben Brantley como um mix de telenovela com a ópera-rock Tommy, do The Who. Espécie de papa informal da crítica teatral em Manhattan, o jornalista, que costuma ser econômico em seus elogios, também escreveu que “este corajoso musical, que nos tira o fôlego, não é o típico musical que o fará sentir bem. Não, este é um musical que o fará sentir muito”.
Esta foi, para Kitt e Yorkey, a temporada em que a Broadway não teve medo de buscar a emoção verdadeira. “Houve um distanciamento da emoção sintética. Muita gente apostou que, com a crise econômica, as platéias buscariam um divertimento fácil. Mas as platéias de Nova York estão respondendo com júbilo aos shows que lidam com o real. Há até mesmo uma busca pelo mais doloroso, pelos shows que tratam da condição humana. Funciona como uma catarse. E eu acho o máximo”, confessa Yorkey.
Tom Kitt lembra que há espetáculos para todos os gostos e, sim, claro, é possível passar uma semana em Nova York sassaricando pela Broadway e encontrando conforto fácil para mentes e corações. “Mas o gratificante de se ver são espetáculos que em outros momentos teriam maior dificuldade para encontrar o grande público, pois giram em torno de temas mais sérios, com a casa cheia. O que levou Next to Normal às 11 indicações do Tony foi o desejo da platéia de entrar noite adentro lidando com questões de certa forma mais difíceis de serem discutidas na forma de teatro musical”, diz.
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Um comentário:
Não dizem que em época de crise é que se deve ser ousado?
De longe a Broadway sempre me pareceu um clube fechado, no que diz respeito aos autores e produtores. Estou errado? Se estou certo, será que existiu uma mudança nesse pessoal?
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