segunda-feira, março 27, 2006

O Jazz Vive


A edição de fevereiro da ótima revista Continente Multicultural, do Recife, dá capa para o velho e bom jazz. Tem reportagem de Homero Fonseca em Havana, Mariana Oliveira, em Madri, Daniela Arrais, Jarbas Maciel e...a que segue abaixo do blogueiro que vos escreve, diretamente do Brooklyn.

O JAZZ VIVE

Eduardo Graça, de Nova Iorque

Quase sumido em seu próprio berço, a América do Norte, o gênero musical continua ganhando adeptos em todo o mundo, firmando-se como linguagem artística universal

Esfinge repleta de suíngue, o filho mais danado da sofrida Nova Orleans dribla com brio a questão crucial: mas ele, o jazz, morreu mesmo? A pergunta batiza o livro do crítico britânico Stuart Nicholson, da revista ‘Jazzwise”, que acaba de chegar às prateleiras americanas. Em seu subtítulo, o jornalista oferece assim o esboço de uma resposta: “O Jazz morreu ou se mudou para um novo endereço?”.

O leitor certamente já imaginou que, para Nicholson, o novo CEP do jazz está localizado do outro lado do Atlântico – mais precisamente no norte da Europa. Em determinado momento, ele chega mesmo a afirmar que os noruegueses, hoje, interpretam Duke Ellington melhor que as novas gerações de músicos norte-americanos, ainda chocadas com a perda, depois do desastre causado pelo furacão Katrina, de parte da história oral e documental de uma das poucas formas artísticas genuinamente americanas.

Brancos, branquíssimos, os virtuoses da Escandinávia estariam mais abertos às novas ondas. Mais: lá a subvenção pública é praxe e há um grande público consumidor, profundamente interessado pelo que se faz de mais experimental. Um dos ídolos de Nicholson é o pianista nórdico Tord Gustavsen. Seu trio lançou em 2005 “The Ground”, saudado pelas revistas ao mesclar música folclórica escandinava, gospel e ritmos caribenhos com o velho e bom ‘cool jazz’.

Mas será que o jazz mudou mesmo de cor? Quando afirma que o ‘tom nórdico’ do saxofonista norueguês Jan Garbarek é uma revolução comparável ao cinema do sueco Ingmar Bergman, Nicholson mexe com os brios dos americanos. Mas seu provocador ensaio não foi uma experiência solitária no ano que passou. Ao menos para uma instituição o jazz nunca foi tão valorizado: a academia. Dezenas de livros foram publicados este ano, levando o professor David Yaffe, da Universidade de Syracuse, ele mesmo lançando “Ritmo Fascinante”, a lembrar, em artigo na revista semanal “The Nation”, a famosa frase de Louis Armstrong quando desafiado a definir o jazz: “Se você precisa fazer tal pergunta, então jamais saberá a resposta”.

Entre os destaques, “Jazz”, o livro do fotógrafo Jim Marshall, lançado em edição de luxo pela Chronicle, já considerado o documento definitivo sobre o ritmo musical, e “Jazz On The River”, de William Kenney, da Universidade de Chicago, uma deliciosa e dolorosa história do gênero narrada rio Mississipi acima. O peciosismo de Kenney é tal que pela primeira vez até mesmo os construtores dos barcos que levaram os conjuntos de jazz rumo ao norte industrializado foram entrevistados.

Mas os fatos não mentem, e Yaffe sabe disso. Os quatro grandes selos de jazz andam à mingua. A principal estrela do outrora mítico Blue Note é Norah Jones, uma artista mais ligada ao pop e ao folk-country do que propriamente ao jazz. A série musical mais importante de Nova Iorque dedicada ao gênero é comandada pelo que Nicholson chama de ‘neo-conservadores’ da música, em um debochado paralelo com a tropa de choque ideológica do governo Bush. O ‘Jazz at Lincoln Center’, comandado por Wynton Marsalis, cujo legado, de acordo com o jornalista inglês, ‘é o de simplesmente encaixar a identidade cultural negra dentro do status quo cultural norte-americano, essencialmente branco’, teria há muito virado as costas para o que seria a vanguarda do gênero. Até mesmo a série documental de Ken Burns, veiculada na tevê pública americana há cinco anos e apresentada no Brasil pelo canal GNT, da Globosat, inicialmente louvada pelos fãs do jazz, acabaria gerando uma ‘absorção de gênero pelos grandes conglomerados, MTV à frente’. As coletâneas, lançadas no mercado com a ‘etiqueta Burns’, não teriam respeitado a historiografia do gênero, tão cara aos cultores do jazz. E os conservatórios musicais – “uma indústria altamente lucrativa’’ – espalhados por todos os Estados Unidos parecem dedicados a suprimir sistematicamente a inovação de seus bolorentos currículos.

Mas o jazz nunca esteve preso a escolas. Sua infinita capacidade de se enfronhar em geografias aparentemente hostis, rio acima, sempre foi um de seus trunfos mais sólidos. Não por acaso as listas dos melhores álbuns do ano nas principais publicações de música pop em 2005 inclui um grupo de jazz. Ou quase. O The Bad Plus é um trio que ousou apresentar ‘jazzy-covers’ de ‘clássicos’ de Black Sabbath a Gloria Gaynor e foi visto com desconfiança por cultores mais ortodoxos temerosos do que consideram ser mais uma rendição a uma ‘estética kitsch engraçadinha’ do que uma nova revolução na seara de Miles Davis. Mas a música de “Suspicious Activity?”, o mais recente disco do The Bad Plus, é mesmo jazz? Batizado de ‘post bop’, às vezes é tratado como musica pop influenciada pelo jazz, outras como jazz rendido ao rock.

Mas este não é apenas mais um sinal dos tempos? Ora, na mesma Nova Iorque do The Bad Plus não há nada parecido com a Jazz Foundation of América (JFA), instituição criada em 1989 para ajudar músicos de jazz em apuros financeiros. A JFA é hoje palco de um dos mais bem guardados segredos da cidade: a ‘jam session’ que reúne cobras do ritmo todas as segundas-feiras em sua sede, na rua 48. Lá o público encontra gente como o baterista Billy Kaye, 73, que correu mundo com Count Basie e George Benson. Ou o pianista Zeke Mullins, 80, que estrelou na banda de Lionel Hampton por um quarto de século e chegou a se apresentar, na Casa Branca, para os presidentes Eisenhower, Nixon e Carter. Ou ainda John Ore, o baixista favorito de Nat King Cole. E por aí vai.

O que atrai os iniciados é a sensação de que se está escutando, de fato, ‘o autêntico jazz’. A pequena sala de espetáculos da JFA fica sempre abarrotada e os retratos de monstros sagrados do jazz como Louis Armstrong, Dizzy Gillespie, John Coltrane e Miles Davis pairam marotos sobre o público e os músicos. Diretor-executivo da JFA, Wendy Oxenhorn instituiu o único evento ligado ao jazz na cidade que não cobra entrada, não exige consumação mínima nem couvert musical.

É claro que a própria proeminência do ‘club’ da JFA às segundas-feiras reflete a decadência do ritmo na cidade. Clubes de jazz foram desaparecendo, tirando o emprego de muita gente bamba. O que nos faz voltar à pergunta inicial: mas o jazz afinal, não morre por quê? A melhor resposta, lembra Yaffe, segue sendo a do trompetista Lester Bowie, o fundador do Art Ensemble de Chicago que, em 1968, compôs “Jazz Death?”, que diz algo como “a morte do Jazz? Bem, tudo depende do que você entende disto que nós resolvemos chamar de jazz”.

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