sexta-feira, agosto 14, 2009

VALOR: Woodstock, 40 Anos

Neste fim de semana o Valor Econômico publicou, em sua revista de cultura, um especial sobre os 40 anos do Woodstock. O escriba aqui colaborou com o texto que segue abaixo:

Paz e amor, bicho!
Por Eduardo Graça, para o Valor, de Nova York
14/08/2009


O show de Hendrix (centro, com faixa vermelha na cabeça): "A música de Woodstock, a guitarra de Jimi, eram humanistas. Seus temas centrais eram esperança e amor", diz Tiber, autor de livro sobre o festival


As mãos balançam freneticamente, marcando em caracol o ritmo da percussão. O sorriso, imenso, e o turbante colorido agradam à multidão extasiada com a velocidade com que a baixinha de olhos claros canta suas canções. Lá vem Carmen Miranda, recebida entusiasticamente pelos hippies de Woodstock. Não, a cena não aconteceu há exatas quatro décadas, em meio às chuvas que transformaram o imenso gramado da fazenda de Max Yasgur no lamaçal mais icônico da história do rock 'n' roll. "Mas, se faltou alguém em Woodstock, foi a Carmen", diz Elliot Tiber, autor de "Aconteceu em Woodstock", inspiração para o filme de mesmo nome dirigido por Ang Lee, suas memórias dos bastidores do maior festival de rock de todos os tempos.

O livro conta como o jovem judeu condenado a administrar um hotel de beira de estrada comprado por seus pais, imigrantes bielo-russos, se transformou em protagonista do gigantesco festival de música com uma simples ligação telefônica. Tiber informou o produtor Michael Lang - seu amigo de infância nas ruas do Brooklyn - que, por causa das muitas tentativas de revitalizar o hotel, ele recebera uma permissão da prefeitura para organizar um evento cultural na cidade de Bethel, a poucos quilômetros de Woodstock, também no Estado de Nova York, onde os organizadores do evento tentavam convencer os vereadores locais de que os jovens fãs dos Beatles e dos Rolling Stones (duas bandas que não marcariam presença no fuzuê) não destruiriam suas propriedades.

Quando era criança, Tiber costumava atravessar a Ponte do Brooklyn para se divertir, nos cinemas de Times Square, com os filmes da Brazilian Bombshell. "Foi ali que descobri o sorriso de Carmen. Ela seria um mega-hit em Woodstock", afirma, pontuando não acreditar ser mera coincidência a presença da cantora no movimento contracultural brasileiro desencadeado na mesma época, especialmente em sua vertente musical, com a Tropicália.

Para além dos balangandãs, o colunista Clyde Haberman, do jornal "The New York Times", brinca que é inevitável, neste verão nova-iorquino marcado por temperaturas amenas e muita chuva, deparar com brigadas de sessentões, vestidos com roupas de incrível mau gosto, evocando um certo festival realizado no norte do Estado de Nova York, responsável direto por uma nova era de harmonia, compreensão e honestidade. "Tá bem, a Era de Aquário acabou não saindo como estava programada, mas a música foi inegavelmente sensacional", provoca. Janis Joplin e Jimi Hendrix ainda estavam vivos e marcaram presença ao lado de The Who, Greateful Dead, The Band, Jefferson Airplane, Joe Cocker, Carlos Santana, Sly and the Family Stone, a banda Crosby, Stills & Nash e 24 outras atrações.

O Festival de Música e Artes foi sintetizado no discurso do fazendeiro, contactado por Tiber, que inicialmente alugou seu gramado por míseros 50 dólares/dia, depois aumentou para 5 mil dólares/dia e, finalmente, quando percebeu a dimensão do evento, fechou o acordo com o produtor Michael Lang por um pacote de 50 mil dólares por três dias, ainda assim uma pechincha se levarmos em conta o lucro obtido pelos organizadores com a marca Woodstock nos anos que se seguiriam.

Presente no histórico e excelente CD lançado pela Rhino, intitulado "Woodstock, 40 Anos Depois: de Volta à Fazenda de Yusgur", o fornecedor dos melhores produtos de laticínios orgânicos da região saúda, do palco a ser ocupado por lendas vivas da música pop americana, a experiência que está por começar: "Vamos provar que meio milhão de pessoas podem se juntar e se divertir durante três dias e contar com nada mais do que o poder da música". Daí o filme de Ang Lee, a reedição de DVDs e CDs, a publicação de livros, a venda de relíquias pela internet e os muitos festivais comemorativos neste mês. Há 40 anos a música popular tinha um poder de transformação comportamental inconcebível no universo do download instantâneo e do YouTube.

A trilha sonora do último ano da década de 60 foi, para Tiber, o solo de guitarra de Jimi Hendrix, reproduzindo o hino nacional americano em Woodstock na manhã de segunda-feira, atração derradeira do evento. Bandana cor-de-rosa na cabeça, bata azul-e-branca e imensos brincos dourados, o artista sintetizava o horror e o nonsense do Vietnã com sua arma mais cara. "A música de Woodstock, a guitarra de Jimi, eram humanistas. Seus temas centrais eram esperança e amor", diz Tiber. Mas, para os protagonistas da grande aventura musical dos anos 60, o que ficou de Woodstock? "Bem, eu fiquei. As pessoas ficaram. Recebi vários e-mails de jovens dizendo que minhas memórias os inspiraram", revela o autor de "Aconteceu em Woodstock".

Já Lang, que acaba de lançar "The Road to Woodstock", crê que a revolução de costumes dos anos 60 não desapareceu com os yuppies e o mundo corporativo. "Ao contrário, nossa mensagem frutificou. O fato de que temos um presidente negro na Casa Branca, o movimento ecológico e a ênfase na alimentação orgânica mostram que essa identidade nascida no tempo de Woodstock está mais viva do que nunca", repete, tal qual um mantra, nas aparições para o lançamento de seu livro de memórias.

Para os protagonistas da história de Tiber é na transformação pessoal que o ideário de Woodstock deixa sua marca mais forte. Ele encerra seu livro escrevendo que a música o ajudou a descobrir quem de fato era. Como se vê no filme de Lee, os bastidores de Woodstock foram o cenário de processos de liberação intensos.

Wayne Rodgers - um dos personagens mais engraçados do documentário "Woodstock" (1970, vencedor do Oscar em 1971), em que aparece saindo de um banheiro químico e oferecendo maconha para a equipe de filmagem - conta em recente entrevista que viajou de carona em um caminhão repleto de pêssegos e laranjas para acampar com milhares de hippies na versão Costa Leste do Verão do Amor. Depois de trabalhar como ajudante de palco de Joan Baez, mudou-se para as montanhas da Virginia, em uma cidade também de nome Woodstock ("mas nada a ver com a de Nova York, aqui há muitos republicanos"). Lá, Rodgers se voltaria para a luta contra a invisibilidade da pobreza americana, sendo reconhecido por seu trabalho nos rincões dos EUA com a ONG Coalizão contra a Fome.

Um dos mais interessantes projetos de memória da cultura popular nos Estados Unidos, o The Woodstock Memories Project, iniciativa do "The Poughkeepsie Journal" e do site Footnote.com, vem amealhando, além de uma impressionante coleção de jornais locais, depoimentos de pessoas que viajaram ao condado de Sullivan para os três dias de farra musical. Em um deles, Michael Gabrielli lembra que chegou a Woodstock no seu jipe azul fabricado em 1962, inteiramente decorado com flores pintadas, na quinta-feira. E, até o fim do evento, o jipe ficou estacionado atrás do palco. "Com o passar dos anos, enquanto a maioria dos pais se orgulhava de seus filhos serem doutores ou advogados, minha mãe sempre contava, cabeça erguida: "Meu filho Michael estava em Woodstock", escreve.

Tiber ainda se emociona com depoimentos de anônimos sobre Woodstock. Mas diz que ele e Lang jamais imaginaram que o festival se transformaria em algo monumental, símbolo da contracultura e apogeu da filosofia hippie de paz e amor, diametralmente oposta à Guerra Fria e à oposição direita e esquerda, um culto à liberdade individual que afetava, de forma indireta, a sociedade como um todo.

Para o autor de "Aconteceu em Woodstock", o festival foi o catalisador que o levou a assumir sua homossexualidade e rumar para a Europa, onde se tornou dramaturgo residente do Teatro Nacional da Bélgica. "Hoje trabalho com o grupo Gay American Heroes, voltado para o combate da violência contra homossexuais. Jovens das metrópoles do planeta veem cidadãos do mesmo sexo aproveitando a noite e andando de mãos dadas em suas ruas e acham que isso é parte do status quo, mas a geração Woodstock apanhou muito para conseguir valer esses direitos. Hoje lutamos pelos direitos civis dos gays, exatamente como a comunidade afro-americana naquela época. Além do direito ao casamento, queremos maior proteção contra crimes hediondos, não apenas nos EUA, mas, por exemplo, em países com grande população de homossexuais, como o Brasil de Carmen Miranda."

Na première de "Aconteceu em Woodstock", no fim do mês em Nova York, Ang Lee pediu a palavra pouco antes do início da sessão: "Quarenta anos atrás Elliot Tiber deu um telefonema. Quarenta anos depois eu finalmente atendi aquela ligação". Woodstock, como se vê, apenas começou. De novo.

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