Escrevi para o Valor Econômico um perfil do diretor Michael Mann, de Inimigos Públicos, que foi publicado na revista do jornal deste finde. Ó só:
O grande gângster
Por Eduardo Graça, para o Valor, de Los Angeles
24/07/2009
Cinema: Michael Mann, a mente por detrás de "Miami Vice" e "O Aviador", conta agora a história de um mítico bandido na Chicago dos anos 30.
Cabelo claro e ralo sobre proeminente fronte, olhos tão diminutos quanto vivos e uma dicção embolada, Michael Mann não parece interessado em responder às questões na ordem proposta pelo interlocutor. Faz um delicioso sol de primavera nos jardins de um hotel de luxo em Beverly Hills e o diretor de "Inimigos Públicos", que chega aos cinemas brasileiros nesta sexta-feira, pergunta, sério: "Alguns atores têm uma receita de takes, você sabia?" Não. "Sim, Al Pacino, por exemplo, com quem fiz 'O Informante'. A atuação decisiva dele vai ser no sexto, no sétimo ou no oitavo take, invariavelmente. Você pode filmar 15 takes, 140 takes, não importa. O tesouro está na sexta, sétima e oitava tentativas. Outros, quanto mais repetem, mais vão abandonando os resíduos de autocrítica, os resquícios de repressão. E outros, com a repetição em demasia, apenas se cansam e nada mais."
A mente por detrás de "Miami Vice" e "O Aviador", por mais paradoxal que pareça, soa, aqui e acolá, como um psicanalista. Termos freudianos, analogias históricas e pensatas sobre economia surgem com frequência no bate-papo com o diretor de 66 anos.
Ele segue falando de forma apaixonada sobre seus colegas de trabalho: "Christian Bale é exatamente como Pacino. Você pode filmar poucos takes e mais ou menos saber onde está o mel. Johnny Depp é diferente. Ele é imprevisível. Algumas vezes o ouro surgia logo no começo, nos quatro primeiros takes. Outras vezes, faltava algo e íamos seguindo até encontrar o que queria. Com Marion Cotillard era um jogo jogado a dois, pois eu me extasiava com ela fazendo todos os takes. Não queria que aquilo terminasse".
Mann: "Para mim, drama é, essencialmente, conflito, e o que me atrai são situações extremas"
Em "Inimigos Públicos" Johnny Depp é John Dillinger, um dos maiores gângsteres da história dos Estados Unidos, um filho da Grande Depressão que se tornou um dos primeiros adversários do FBI. Elegante, boa-pinta, tão genial quanto genioso, ele é apresentado por Mann como um Robin Hood com traços de Clark Gable e um desejo de ascensão social e culto à liberdade individual caro ao ethos americano. Sua maior ambição era juntar dinheiro suficiente para ter uma vida de luxo no Brasil.
O "Batman" Christian Bale vive um insosso, mas persistente, agente Melvin Purvis, dedicado a encerrar o reinado de Dillinger em uma Chicago livre de Al Capone há apenas três verões. Entre um e outro assalto, Dillinger se apaixona por Billie Frechette, filha de índios e colonos franceses, em mais uma impressionante interpretação de Marion Cotillard, vencedora do Oscar de melhor atriz por "Piaf - Um Hino ao Amor".
Quando decidiu levar a história de Dillinger para a tela, Mann pensou nos grandes clássicos policiais e decidiu filmar em película. Mas, meticuloso, resolveu fazer um teste para se assegurar de que aquela era a direção correta a seguir. Colocou dezenas de carros de época em frente do seu escritório, contratou figurantes, trajados tal qual transeuntes da Chicago dos anos 30, e percebeu, na hora de conferir o que filmara, que estava pronto para fazer um filme de época. "E isso era exatamente o que eu não queria fazer", revela.
O cineasta explica: "Com a HD, ao contrário, eliminava o distanciamento intrínseco à película. Em 'Inimigos Públicos' não quero que você sinta que está observando algo que ocorre na década de 30 em Chicago. Quero que você esteja vivendo aquela época, como se você estivesse em cena. Daí meu olhar mais cinema-verdade nesse caso".
Obviamente, viver os anos 30 com os olhos de quem se vê no meio da Grande Depressão do século XXI é uma experiência intensa, até para o mais cínico dos espectadores. Como pontuou Frank Rich em sua página dominical no "New York Times", Bernie Maddoff, a face mais visível dos fora da lei da crise financeira global não é um Dillinger per se. Os estimados US$ 65 bilhões que desapareceram em seu esquema de pirâmide não se aproximam dos mais de US$ 2 trilhões que os contribuintes americanos já desembolsaram nos pacotes de salvamento de A.I.G, Goldman Sachs, Citibank e afins.
Mann vai ainda mais fundo no distanciamento entre os dois personagens, mas mata a charada das gargalhadas vingativas que vinham da plateia na pré-estreia do filme em Chicago, acompanhada pelo Valor: "Madoff não é uma reencarnação de John Dillinger. Ele não tem a audácia ou a estampa do gângster. Mas, se Dillinger vivesse em nossos tempos, ele provavelmente seria um banqueiro. Não seria um assassino, seria um CEO de alguma grande corporação, um magnata de um banco de investimentos, com grande conhecimento dos mecanismos por detrás dos fundos hedge. Ele teria esquemas do arco da velha. E a grande diferença entre ele e os figurões de hoje é que Dillinger jamais seria pego".
Rich lembra que "Inimigos Públicos" não se propõe a fazer um paralelo exato entre os anos 30 e nossa década. "Nem precisa. Mas no livro que inspirou o filme o jornalista Bryant Burrough revela que pesquisas da época mostram que o público aplaudia mais Dillinger do que o presidente Roosevelt ou Charles Lindbergh", escreve. E na campanha pela reeleição em 1936, FDR percebeu o tamanho da onda populista e em seus discursos colocou no mesmo patamar sequestradores, ladrões de banco e os "vilões de Wall Street".
"Em 2009, muita gente que trabalhou duro ainda está sofrendo, enquanto várias figuras que jogaram sujo pagaram muito pouco ou seguiram sem ser importunadas. A minguada satisfação nacional com a condenação de Madoff deveria funcionar como um aviso à Casa Branca. Na maior catástrofe econômica desde os tempos de Dillinger, muitos cidadãos americanos sabem muitíssimo bem que a Justiça ainda precisa ser feita", sentencia o colunista do "Times".
O fascínio de Mann - que cresceu na mesma Chicago que o gângster adotou como palco principal de seus assaltos - por Dillinger e seus agregados nos chega sem nenhuma timidez. Mas a interpretação tão viril quanto delicada de Depp e os tempos que nos circundam acabam por gerar um efeito bem diverso do cruel gângster Frank Lucas vivido por Denzel Washington no filme de Riddley Scott lançado em 2007.
"Não tenho fascínio algum por gângsteres. Não mesmo. Para mim, drama é, essencialmente, conflito, e o que me atrai são situações extremas. Pense em Howard Hughes em 'O Aviador' ou Jeffrey Wigand em 'O Informante', figuras vivendo eventos absolutamente extraordinários", diz Mann.
Talvez percebendo alguma dúvida do repórter, o diretor continua o tiroteio de ideias: "Você pode dizer que minha cinematografia é repleta de policiais, como 'Fogo contra Fogo' e 'Profissão Ladrão', mas o que me interessou foi eminentemente este homem, John Dillinger. Não o fora da lei dos mais habilidosos. O que me interessou foi tentar desvendar o que Dillinger pensava dele mesmo. Vindo de uma família de classe média baixa arruinada pela recessão, ele queria tudo ao mesmo tempo agora. O mundo material, o amor".
Mann era frequentador assíduo, na juventude, do mesmo cinema em Lincoln Park onde Dillinger viu seu derradeiro filme, pouco antes de ser morto pelos agentes do FBI. "Sua última ida ao cinema, que ele adorava, foi para conferir 'Vencido pela Lei', com Clark Gable, e, obviamente, aquilo me faz refletir sobre como Dillinger assistiu, de certa maneira, da poltrona, à própria morte. Sempre fiquei matutando sobre como homens como Dillinger lidavam com a ideia de futuro. Talvez traficantes de drogas, membros de gangues de rua, estejam mais próximos do hormônio à flor da pele, da adrenalina do momento. Mas Dillinger? Tenho minhas dúvidas", comenta, antes de ajeitar o terno acinzentado, acenar com a mão e desaparecer nos corredores do hotel.
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