sexta-feira, novembro 17, 2006

PERFIl/Martin Scorsese


O Valor publicou, na semana passada (e eu, enroladíssimo, só publico aqui no blog hoje) o perfil que fiz do diretor Martin Scorsese, nas telas do Brasil com seu delicioso Os Infiltrados.


Scorsese e o Vale-Tudo do Mundo Moderno
Eduardo Graça, para o Valor, de Nova Iorque


Com uma camisa impecável de seda branca protegida por um terno negro, o diretor Martin Scorsese, 64, mantém o sorriso aberto durante quase uma hora de conversa no saguão do Regency Hotel, em Manhattan. Chega mesmo a falar sorrindo. A empolgação não é para menos. Seu mais novo filme, Os Infiltrados, que estréia nos cinemas brasileiros no dia 10, é sua melhor produção em uma década, excluindo aqui o fantástico documentário No Direction Home, sobre Bob Dylan. O enredo é simples: dois garotões acabam de se graduar na academia de polícia de Boston. Um (Damon) é um bandido, espião da máfia irlandesa, a mais poderosa da Nova Inglaterra, comandada pelo chefão vivido por um especialmente obsceno Jack Nicholson. O outro (DiCaprio) vem de uma família de escroques irlandeses e se oferece para viver o outro lado do espelho - será o policial disfarçado na gangue de Nicholson. Detalhe: os dois não sabem da existência um do outro.

Para pagar um tributo à exatidão, Marty – como é tratado carinhosamente pelos colegas de Hollywood - só deixa de falar com orgulho do novo filme quando o pupilo Leonardo e o novo amigo Damon lhe cobrem de elogios. “Marty é o meu tutor no cinema. Foi por causa dele que minha cultura cinematográfica se expandiu. Foi por causa dele, também, que eu me tornei um ator, creio, mais talentoso”, diz DiCaprio. Marty não encara o amigo que dirigiu em Gangues de Nova Iorque e, mais recentemente, no controverso O Aviador. “Eu sempre sonhei em trabalhar com Marty. Vi todos os filmes em que ele dirigiu o De Niro e foi ali que decidi que iria ser um ator. Imagina a alegria de poder trabalhar com ele agora”, segue o galã. Damon não deixa por menos: “Sou de Boston e quando o Brad (Pitt, produtor do filme) me enviou o roteiro eu nem pensei duas vezes. Liguei para Marty e peguei o primeiro avião da Flórida para Nova Iorque. Foi o sim mais fácil da minha vida”. Nestes momentos, o diretor se esconde por trás dos óculos de aros negros e deixa à mostra apenas as grossas sobrancelhas embranquecidas, sua marca registrada. E concede mais um sorriso.

Scorsese já tem motivos de sobra, é claro, para acariciar o próprio ego. Mas, para se ter uma idéia do poder de fogo de Os Infiltrados, somente em sua primeira semana em cartaz nos EUA o filme arrecadou US$ 27 milhões em bilheteria. Um recorde para produções que levam a assinatura do diretor de A Última Tentação de Cristo, Táxi Driver e O Touro Indomável. E desta vez Scorsese deixou para trás sua Little Italy e adaptou um mega-sucesso do cinema chinês para o dia-a-dia barra-pesada da comunidade irlandesa de Boston nos anos 80. O filme é uma ‘versão-livre’ de Negócios Internos, de Andrew Lau, maior bilheteria do cinema chinês em 2002, custou a bagatela de US$ 90 milhões, e é um dos favoritos para o Oscar-2007, incluindo a trinca de atores principais.

“Sei que o público, quando pensa em mim, imagina imediatamente a trajetória dos ítalo-americanos, a Nova Iorque italiana. Uma das alegrias de Os Infiltrados foi justamente a possibilidade de explorar o meu lado irlandês!”, conta. Scorsese irlandês? Como assim? “ É, sim senhor! Gangues de Nova Iorque, por exemplo, trata também da vida dos irlandeses no sul de Manhattan, não é? Poderia também falar da importância da poesia irlandesa na minha vida e da noção do catolicismo dublinense, bem diferente do italiano. Mas vou ser mais direto: sabe qual foi minha maior influência no cinema? Todos os filmes de John Ford, este fabuloso diretor irlandês-americano. Durante as filmagens pensava especialmente em Como Era Verde O Meu Vale, daqueles sofridos mineiros irlandeses tentando a sorte na América. Os filmes de Ford tratavam,a final, da importância da família em nossas vidas, algo muito próximo da realidade ítalo-americana. Foram eles que me levaram, acredito, a querer mergulhar mais de uma vez neste universo”, diz.

Apesar de baseado em um filme de ação de Hong Kong (alguns de seus principais diretores, como Wong Kar-Wai e John Woo, não se cansam de apontar Scorsese entre suas principais influências) e ser considerado o mais comercial dos recentes projetos do diretor nova-iorquino, Os Infiltrados reflete na tela a falta de ética, o vale-tudo, a corrupção sem culpa ou endereço certo onipresente nos dias de hoje. Nunca é claro quem é mais pernicioso, mais virulento – se o safado chefão que também presta serviços ao governo vivido por Nicholson ou se os policiais – entre eles, figurantes de luxo como Alec Baldwin, Marin Sheen e Mark Wahlberg – nada ortodoxos em seus métodos de trabalho. “A primeira coisa que pensei quando terminei de ler o roteiro foi esta sensação de que voltamos a um estado zero de moral no mundo de hoje. Assim como o 11 de Setembro nos deu um Ground Zero, também nos presenteou, infelizmente, com esta Moral Zero”.

No filme, praticamente nenhum dos personagens leva em conta questões éticas ou morais. Talvez apenas a psiquiatra que atende o presonagem de Di Caprio e se casa com o de Matt Damon, vivida pela atriz Vera Farmiga. “É, mas mesmo ela comete deslizes de caráter sérios. De um certo modo, ela também é dúbia, também tem duas caras. O filme trata de um mundo em que a moral não tem importância alguma. Um mundo em que a trsiteza e a sensação de desespero são palpáveis. Este é o mundo de Os Infiltrados”, diz Scorsese, fechando a cara pela primeira vez enquanto a chuva cai anunciando o começo do outono em sua cinzenta Manhattan.

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