quinta-feira, setembro 08, 2005

Diretinho da Redação (28)



O texto da semana já pode ser lido no www.diretodarecao.com e no www.click21.com.br



Vergonha, vergonha, vergonha

Os americanos atravessaram esta semana sob o signo da vergonha. Vergonha nacional. A destruição impiedosa causada pelo furacão Katrina é o 11 de Setembro às avessas de George W. Bush. É também – ao custo de dezenas de milhares de mortos, nas estimativas da prefeitura de Nova Orleans – o apocalipse da política neoliberal calcada no desmonte do Estado. Em todo o pais a pergunta é a mesma: aonde está a Guarda Nacional? Cadê o pessoal da Emergência? O que está fazendo o governo federal? Os bombeiros? A defesa civil? O serviço médico? O Terceiro Mundo é aqui.

As histórias que invadiram as casas democratas e republicanas dos Estados Unidos alimentaram o cidadão comum de vergonha.

Vergonha da mãe negra que teve de escolher entre as quatro filhas qual seria resgatada, pois o helicóptero utilizado para o salvamento tinha menos espaço do que deveria. Os demais ficaram ao deus-dará, no telhado de uma casa que já não existia, sem água, sem comida.

Vergonha do imigrante que preferiu enfrentar os riscos de uma cidade sem luz, sem ruas, sem serviços, sem lei, a ir para um abrigo e acabar deportado para o México.

Vergonha dos dois policiais que, não suportando mais as pressões, preferiram dar um tiro em suas próprias cabeças do que alvejar vizinhos.

Vergonha de um presidente omisso e que somente deixou suas férias no Texas – as mais longas jamais desfrutadas por um ocupante da Casa Branca - para dizer que estava sim mandando mais gente para a região do Golfo do México. Gente para dar cacetada nos que saqueavam as lojas e supermercados fechados.

Como em todas as tragédias, o desastre de Nova Orleans pode ser contado em detalhes aparentemente banais, mas que decidem vidas. O dia em que as águas ocuparam o centro histórico da cidade era justamente a véspera do recebimento do dinheiro contado da Previdência Social para milhares de pessoas. A ração dada pelo governo – uma média de US$ 600 para famílias de até seis componentes – poderia ter sido o maná a ser utilizado na compra de passagens de ônibus, de mantimentos, de água.

Mas, vergonha, a esmola federal jamais chegou aos lares miseráveis da Louisiana.

Foi preciso Nova Orleans desaparecer nas águas do Mississipi para que os americanos pudessem enxergar os milhares e milhares de abandonados por Tio Sam. A favela que existe em cada metrópole daqui saiu de sua invisibilidade na Louisiana de um modo dramático, tal qual um Mardi Gras sem música, uma quarta-feira de cinzas sem fim. A miséria norte-americana é negra e hispânica em sua maioria, mas cheira mal e é repleta de desespero e ignorância como em qualquer Mumbai, qualquer Rio de Janeiro, qualquer Cidade do Cabo, qualquer São Paulo, qualquer Bagdá.

As águas de Setembro que fecham este triste verão na zona norte do mundo podem carregar algo mais do que a vergonhosa falta de liderança republicana. Pesquisador de Nova Orleans, John Barry escreveu em 1998 “Rising Tide”, livro que, por motivos óbvios, pulou esta semana para a lista dos mais vendidos nas livrarias dos Estados Unidos.

De maneira objetiva, mas sem perder a emoção, ele conta detalhadamente como o dilúvio de 1927, no mesmo Mississipi, modificou para sempre os Estados Unidos, abrindo caminho para o New Deal de Roosevelt. O sistema de Previdência Social americano deve muito aos reflexos daquele desastre. O mesmo sistema que George W. Bush quer privatizar, uma de suas principais metas neste segundo mandato na Casa Branca.

Como agora, na enchente de 27 o governo federal, comandado por um conservador, Calvin Coolidge, foi acusado de negligência e descaso. Atordoados, os americanos seguem procurando descobrir um antídoto para a vergonha nacional. Ou, parafraseando Demétrio Magnoli, eles estão finalmente tendo de lidar com sua vergonhosa opção histórica: a de terem se transformado em uma civilização que sabe matar como poucas, mas que não tem a menor idéia de como proteger a vida. O Terceiro Mundo, definitivamente, é aqui.

Um comentário:

ipaco disse...

A incompetência ou má-fé do Bush em agir numa crise como essa é um exemplo de como essa direita, defensora das soluções pelo mercado, pelo privado, não consegue atuar em momentos críticos.