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Uma Tragédia Social
Os barracos amontoados uns nos outros e o esgoto à céu aberto intensificam a sensação de filme repetido. Os rostos dos moradores são, em sua esmagadora maioria, negros. E a rotina de vida por eles descrita também não é novidadeira: milhares de pessoas vivendo sem a presença do Estado ou da polícia, jogadas ao deus-dará, sem água potável e eletricidade. E na favela de Cité Soleil, em Porto Príncipe, capital do Haiti ocupado pelas forças da ONU, os soldados de boina azul - em sua maioria brasileiros - são vistos com a mesma mescla de ódio e medo com que os moradores das favelas percebem nossa policia nos morros cariocas e na periferia paulistana. Se o Haiti não é aqui, como diz a música de Caetano e Gil, uma parte do Brasil – feia, miserável e injusta – está sendo bisada nas Antilhas.
Ao menos é o que nos contam os repórteres Walt Bogdanich e Jenny Nordberg, enviados pelo NY Times para cobrir as eleições gerais de novembro. Um outro jornalista, o excelente Ben Terral (autor de reportagens que doem nos ossos, seja no San Francisco Chronicle ou na Progressive e na In These Times) mantém uma página eletrônica diária do Haiti, em que segue denunciando atrocidades cometidas contra os moradores de favelas controladas por rebeldes saudosos do presidente Jean-Baptiste Aristide, deposto em fevereiro de 2004, com decidida ajuda americana.
Os militantes do Lavalas, o partido de Aristide, dizem que forças policiais treinadas pela ONU estão assassinando ‘rebeldes’ e ‘líderes comunitários’, sem distinção, com golpes de machado. O inimigo número um dos bonés azuis, Emanuel Wilmer (‘Wilmé, o Temido’), foi morto em um ataque no dia 6 de julho, em que pereceram outros ‘rebeldes’ e, de acordo com os moradores, muitas crianças e mulheres.
Um morador da favela, René Momplaisir, mostrou para os repórteres do NYT esta semana as fotos das crianças que ele conseguiu fotografar, ‘antes que os cachorros as comessem’, na noite do dia 6. “Por que as pessoas morrem deste jeito no Haiti? Porque aqui não há lei”, diz. Adeline Pierre, 28 anos, conta que estava grávida e perdeu o filho, vítima de uma bala perdida. A ONU acusa os rebeldes de usarem infantes e mulheres como escudo.
O mundo do vale-tudo haitiano é muito semelhante à tragédia social brasileira. O coordenador do Médicos Sem Fronteiras de lá conta que atendeu pelo menos 27 mulheres e/ou crianças feridas à bala na invasão do dia 6 de julho. Invasão, principalmente, porque em Porto Príncipe, assim como em muitas ‘comunidades’ cariocas, é preciso pedir permissão a quem manda para se entrar. A alternativa parece ser a de chegar atirando.
Com a aproximação das eleições, a pergunta é uma só: como fazer com que estes seres abandonados à própria sorte (instituições filantrópicas temem entrar nas áreas controladas pelos ‘rebeldes’) acreditem na democracia imposta? Como fazê-los sair de seus barracos no dia 13 de novembro e andar até às cabines eleitorais improvisadas para eleger presidente e legisladores, quando ‘representante popular’ é um termo nebuloso, quase irônico?
Apesar da boa cobertura da mídia daqui, os norte-americanos mandam sinais cada vez mais nítidos de que têm mais com o que se preocupar. Com um índice de reprovação na casa dos 53% por conta dos desmandos no Iraque ocupado e do aumento no preço da gasolina, o governo Bush não quer nem ouvir falar de Haiti. O presidente, que pretende manter algum poder de fogo na escolha de seu sucessor, interrompeu suas férias esta semana para se dedicar a assuntos internos, como os estragos do furacão Katrina no sul do país, qualificado pelos republicanos como ‘o nosso tsunami’, e a cruzada conservadora pela reforma da Previdência Social.
Não preciso nem dizer que o Brasil está mais do que ocupado tentando preservar a República dos dramalhões de Jeffersons e Dirceus, mas quem sabe uma dose de Cité Soleil não nos ensinaria mais sobre nossa própria desgraça social?
Durante a Segunda Guerra relatos como os de Rubem Braga nos ajudaram a repensar o Brasil governado por um ditador enquanto nossos pracinhas ‘lutavam pela liberdade’. Sim, a batalha era outra, o cenário e o tempo completamente diversos, mas ainda estamos a esperar o escriba brasileiro de Porto Príncipe.
Enquanto isso uma imagem de um Brasil preconceituoso, conivente com a exclusão, covarde e submisso vai sendo forjada nas Antilhas sem que tenhamos noção do tamanho do estrago. Já é hora de a imprensa abrir suas páginas e discutir de forma ampla o que esta aventura nas ilhas nos revela de nossa própria alma verde e amarela.
quinta-feira, setembro 01, 2005
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