domingo, junho 12, 2005

Do Outro Lado da Fronteira : O Apartheid Boliviano

Especialista em Relações Internacionais, William Powers vive desde 2003 na Bolívia, onde está pesquisando para o lançamento de A Natural Nation, um livro em que trata de ecologia nos trópicos e da exploração de petróleo e ernergia na nação andina. No ano passado seu Blue Clay People, uma narrativa sobre o período em que passou na Libéria trabalhando para uma ONG ligada à Confederação Nacional dos Bispos da Igreja Católica daqui, causou algum burburinho.

Neste fim de semana, ele publicou um ensaio no New York Times sobre o que chama de Apartheid Boliviano, entitulado Poor Little Rich Nation. O artigo está dando o que falar aqui nos Estados Unidos. Abaixo vai uma tradução livre feita pelo blogueiro aqui. O negrito é meu. O original, infelizmente apenas em inglês, pode ser lido em http://www.nytimes.com/2005/06/11/opinion/11powers.html.

Pobre Naçãozinha Rica

WILLIAM POWERS
Samaipata, Bolivia

* Powers está parado, como muitos outros motoristas, em Samaipata, na estrada que liga Santa Cruz a Bogotá. Ele conta:

Por três semanas, a Bolívia ficou paralizada por barricadas e protestos. Os manifestantes querem nacionalizar as vastas reservas de gás natural do país, a segunda maior da América do Sul. A British Petroleum acaba de quintuplicar sua estimativa das reservas bolivianas, que devem valer algo próximo a US$ 250 bilhões.

* Dos manifestantes:

Manifestantes? Não, eles são a maioria da população, formada por descendentes de tribos indígeneas, principalmente Aymara e Quechua. Eles querem a saída imediata do FMI e de corporações como a British Gas, a Repsol, da Espanha e a Petrobras, do Brasil, que investiram bilhões de dólares em exploração e extração.

* O que está acontecendo de fato na Bolívia?

Muitos estão dizendo que o que aconteceu nos últimos e memoráveis cinco anos aqui foi uma guerra contra a globalização. De certa maneira, eles estão certos. O Mc Donald’s fechou suas portas. Uma nova taxa sugerida pelo FMI foi derrubada pela pressão popular. E dois presidentes foram retirados do poder – um deles, Gonzalo Sánchez de Lozado, falava Espanhol com um fortíssimo sotaque norte-americano. Mas o que acontece aqui não está relacionado à criação de um mundo utópico, livre dos Wall-Mart da vida. É muito mais uma queda-de-braço entre quem tem mais poder neste país. A maioria indigena ou aqueles ‘de pele menos morena’, europeizados e, em muitos casos, parte de uma elite que estabeleceu sua relação com o mundo através de uma viciada relação de corrupção?

* Da elite boliviana:

Pode-se dizer que a Bolívia se auto-colonizou. Quando o Império Espanhol fechou sua vendinha aqui em 1824, os ‘europeus’ que aqui ficaram aparentemente não perceberam isso. Aliás, só foram começar a se dar conta cinco anas atrás. Mesmo na América Latina, de acordo com o Banco Mundial a região com maior índice de desigualdade social no mundo, a Bolívia é considerada uma das nações mais injustas e corruptas, de acordo com a Transparency International. É também dividida de modo radical em estratos raciais muito bem definidos.

* Do Apartheid Boliviano:

Quase dois-terços dos bolivianos vêm das Terras Altas ou da Amazônia. O país têm a maior proporção de índios no hemisfério. É como se os Estados Unidos tivessem 160 milhões de apaches e iroqueses. O apartheid boliviano é poderoso e continua vigente de forma escandalosa. A exclusão é parte do dia-a-dia de quem vive aqui. A maioria da população é proibida de usar as piscinas dos principais clubes, por exemplo. Nas ‘haciendas’ pouco ou anda tocadas por alguma reforma agrária, eles ainda são os peões. Em La Paz, estava andando na moderna Zona Sul da cidade com Fátima, uma Aymara, quando um boliviano puxou-a bruscamente para fora da calçada. Fátima não ficou chocada com o desrespeito, mas se admirou de que ele se permitiu tocá-la. Em geral, não há sequer contato físico entre as duas ‘razas’.Os estados mais ricos em energia, no lado oriental, na fronteira com o Brasil, querem mais ‘autonomia’, que se traduz na prática apenas por privar a maioria indígena das reservas de óleo e gás.

* O que pode ser feito para se evitar o colapso?

A resposta, é claro, precisa ser dada inicialmente pelos próprios bolivianos. As elites aqui precisam reconhecer de uma vez por todas que os ‘morenos’ e seus organizados movimentos sociais são mais fortes do que qualquer partido político ou presidente, e que já está claro que eles não vão desistir. Qualquer solução real passa por dividir o poder com a maioria – pobre -da população. Para resolver a crise, no entanto, diminuir a exclusão não é suficiente. É preciso prestar bastante atenção na maneira com que o mundo vai se relacionar com a Bolívia, principalmente no que diz respeito à sua economia.

* Uma ‘nova Venezuela’?

Sim, a secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, estava certa ao apontar esta semana o deficit democrático boliviano. Mas mais do que dar pitos, nós precisamos reconhecer que DEMOCRACIA significa, no mínimo, deixar que a maioria da população decida o que bem se quer fazer com seus recursos naturais. Vamos lembrar aqui que os contratos de exploração com companhias de petróleo de diversos países foram assinadas – como bem lembra Condelezza – por líderes bolivianos corruptos, sem sequer a aprovação do Congresso. Ainda que se prove que a nacionalização do petróleo é uma péssima idéia, os bolivianos precisam decidir por si prórpios.

* Da política externa norte-americana:

Também não podemos esquecer que as nossas próprias idéias para a América do Sul não são lá estas coisas. A Bolívia foi, por excelência, a cobaia em que o FMI treinou sua ‘terapia de choque’ de liberalismo, iniciada em 1985. A receita rendeu milhões de dólares para petromagnatas e barões da soja, mas quase nenhuma geração de emprego e redução nula de desigualdade social. Duas décadas depois a economia boliviana permanece estagnada e metade da população vive com uma renda de menos de US$ 2 ao dia. O mundo deveria contribuir com algo que ajudaria profundamente a dimunição das desigualdades sociais e à busca da democracia por aqui: o perdão da dívida externa para a reconstrução da governabilidade. Hoje, a dívida externa da Bolívia representa 82% do PIB, corroendo 40% dos gastos a cada ano. Números que se traduzem em mais desordem e miséria.

* Tiananmen do outro lado do Mato Grosso:

Um jovem Quechua, braços cruzados, sentado em frente ao caminhão que tentava inutilmente furar o bloqueio de pessoas em Samaipata, na estrada que vem de Santa Cruz, lembrou-me das imagens da Praça Tiananmen, na China. Ele me disse: "Nossas culturas – quechua, aymara - têm sido bloqueadas por 500 anos. Esta é nossa única voz".

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