quarta-feira, junho 15, 2005

Diretinho da Redação (19)


O texto abaixo, mescla de memória e indignação, também pode ser lido no www.diretodaredacao.com, onde estão relatos de outros jornalistas espalhados pelo mundo.

Cadê a Dona Olga do PT?

Sete de Novembro de 1988, uma quarta-feira ensolarada em Volta Redonda, estado do Rio. O presidente é José Sarney. O governador atende pelo nome de Wellington Moreira Franco. Em Brasília, parlamentares, entre eles Luiz Ignácio Lula da Silva, haviam aprovado, um mês antes, uma nova Constituição. Os operários da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) decidem entrar em greve. Querem a implantação do turno de seis horas, a reposição salarial referente a perdas por inúmeros planos econômicos desastrosos e a reintegração de demitidos pela atuação salarial.

Nove de Novembro. Na CSN, ninguém entra, ninguém sai. A esta altura a cidade está profundamente envolvida com a greve. A maioria dos moradores se junta a parentes e amigos nas cada vez mais animadas manifestações, que acontecem na entrada do escritório central da usina, a três quadras de nossa casa. Acredita-se que vivemos em estado democrático. Acabara-se a ditadura militar, desconhecia-se a ditadura burguesa. Meu pai está lá dentro com outros funcionários tentando manter a coqueria funcionando. Liga para casa de quando em quando – estamos falando de priscas eras, antes do celular. Pede para que não arrumemos confusão com o pessoal do exército. Mas que exército?

Poucos minutos depois, soldados de vários quartéis do estado, comandados pelo General José Luís Lopes da Silva, dispersam à bala uma manifestação e invadem a usina a fim de acabar com os piquetes. Funcionários, mulheres e crianças correm desesperados pelas ruas próximas. Homens armados os perseguem. Nossa rua vira um palco de guerra. Minha mãe e minha irmã resolvem abrir a porta de casa e convidar as pessoas a se abrigarem em nossa sala. Quando percebo estamos deitados, estranhos e conhecidos, no chão, em emocionada comunhão, usando o sofá como proteção. Tapamos ouvidos e colocamos as mãos sobre a cabeça com medo de estilhaços.

Um dia depois damos conta do tamanho do massacre. O centro velho da cidade está detruído. Marcas de bala enfeitam os portões das garagens dos vizinhos. Um cinema fôra quebrado a pauladas de cassetete. Muito mais grave – três operários estão mortos. William, 22 anos, com um tiro de metralhadora no pescoço. Valmir, 27, com um tiro de metralhadora nas costas. Carlos, 19, por esmagamento de crânio. Os operários decidem manter a greve, agora com apoio incondincional da traumatizada população. As aulas são suspensas nos colégios e nas universidades da cidade.

23 de novembro de 1988. Um soldado, como nas semanas anteriores, permanece de prontidão na nossa rua, mas desta vez ele resolve montar guarda no gramado em frente à nossa casa. Minha mãe acha que aquilo já é demais. Dona Olga abre a porta e, dedo em riste, tensa como jamais a vi, obriga o soldado a se retirar. Abomina sua truculência e lembra que os tempos são outros, que eles não estão mais no poder, que seus crimes serão apurados, que a casa era dela e que ali ele não pisava mais. Assustado, o soldado bate em retirada.

Algumas horas depois a greve acaba. Os operários conquistam todos os seus direitos. Ao contrário de William, Valmir e Carlos, meu pai volta para casa. Nas eleições municipais que acontecem em meio à ocupação militar de Volta Redonda o PT ganha suas primeiras prefeituras significativas – em São Paulo e em Porto Alegre. Eu guardo para sempre a lição de que democracia é o regime em que se pode botar o dedo na cara de quem representa uma ameaça ao estado de direito.

Ontem, um dos dias mais deprimentes da história da democracia brasileira, aquela imagem voltou a me assombrar. Acompanhei todo o depoimento do deputado Roberto Jefferson na Comissão de Ética do Congresso. Ele deveria encarar seus pares na constrangedora posição de acusado. Não foi o que se viu. Durante mais de seis horas foi dado ao soldado da tropa de choque de Collor de Mello o poder para decidir quem na imprensa é sério e quem não é, quem é honesto e quem é picareta no Congresso Nacional. A confiança era tamanha que ele quis até demitir, de lá mesmo, um ministro de Estado.

Quase no finzinho da maratona, Jefferson foi interpelado por seu colega Chico Alencar. O deputado petista queria saber por que só agora ele denunciara o recebimento de dinheiro ilícito do PT para o financiamento de candidaturas de políticos do PTB, nas eleições municipais de 2004. Jefferson, ator de primeira, não titubeou. E nos lembrou que ‘parceiro ajuda parceiro’. Tinha ficado quieto para proteger o PT, ora essa. “Matei no peito, deputado, matei no peito e agüentei tudo sozinho”. Ao que Alencar retrucou: “O partido que nós queremos construir não precisa disso”. Construir? Pera lá. Mas a esta altura do campeonato?

Em 1988, a bandeira que tremulava mais alto nas manifestações de Volta Redonda era vermelha e tinha uma estrela no centro. Muitos acreditavam que estavam construindo um partido. Muitos vibraram nas ruas da cidade com as vitórias de Luiza Erundina e de Olívio Dutra como se eles, no próximo ano, pudessem em um passe de mágica administrar a cidade dos operários e não São Paulo ou Porto Alegre. Cadê a Dona Olga do PT? Por que será que ninguém se arvora a colocar o dedo na cara de Roberto Jefferson para lembrá-lo que não estamos mais no governo Collor? De que os tempos são outros? De que sua biografia vale ainda menos do que a dos Valdemares, Bispos Rodrigues e Janenes da vida?

Ontem, não havia um líder do governo, um defensor gabaritado, uma voz para lembrar a Jefferson que não poderia haver inquisidor menos qualificado na igrejinha do Congresso. Será que o PT agora é veremelho de vergonha? Será que Waldomiros, Cachoeiras, Adautos, Flamarions, Delúbios e Silvinhos surrupiaram para sempre dos petistas seu amor-próprio, seu necessário orgulho, sua crença de que o PT é, afinal, diferente do fisiologismo que domina o cenário político brasileiro? Ou será que o partido, comandado por uma cúpula deslumbrada e insensata, decidiu entregar de vez os pontos? Dos muitos desserviços que o governo Lula tem prestado ao país, jogar na lama a legenda dos trabalhadores será o pior. Gente, cadê a Dona Olga do PT?

6 comentários:

Anônimo disse...

Bravo! Bravíssimo!
Mil beijos meu querido...

Anônimo disse...

Excelente seu ensaio !! Me fez lembrar aquele pedacinho da
história brasileira, com um resquício de ditatura, que vivenciamos...me fez
lembrar a coragem de seus pais e infelizmente olhar para o atual cenário da política brasileira com decepção, ao ver que, apesar da instauração da democracia, nos vemos diante de tantos incapazes de nos representar no Congresso brasileiro.

Claudine, amiga, companheira de todas as horas, leitora e claro fã !!:):):)

Beijos,

Claudine F. Anchite

Eduardo Graca disse...

Obrigado queridas!

Anônimo disse...

Cadê a dona Olga do PT? Pois é, ainda posso dizer que ha petistas parando o Genoíno nas ruas para dar apoio, mas o braço direito do Lula foi amputado até a raiz, em um golpe certeiro efetuado... pelo braço direito do Collor! Quem poderia imaginar? E não teve ninguém para botar o dedo no nariz do Jefferson!! Será que o PT foi tão inocente a ponto de achar que
governaria sem que ninguém tentasse extorquir nada dele em troca de apoio? Todo mundo
sabe que isso sempre existiu, e muitos dos que estão lá hoje já estavam há anos. E cadê a atitude do PT? Se o braço direito foi decepado é porque provavelmente deixou-o na reta. Que dessa tsunami de lama que assola o país
nasçam frutos com aquela essência do PT das diretas, do impeachment, frutos compostos por aqueles filhos que hoje estão com o coração dilacerado ao ver um um país atônito. Quem sabe, em uma década, não vejamos um PSOL no
poder??? Cadê a Dona Olga do PT? Está na Heloísa Helena, na Marina Silva, no Fernando Gabeira...

Anônimo disse...

Edu, fiquei muito emocionada com a sua coluna... pela história, pelo
momento político que vivemos, por ser a sua história e pela clareza de pensamentos e bela narrativa!
Obrigada!
beijão,
Helena

Olga de Mello disse...

D. Olga é uma glória!!!!