domingo, abril 24, 2005

Diretinho da Redação (10)


Assim Falou Niemeyer

É impossível ter passado a vida no Rio de Janeiro, uma cidade socialmente cortada de modo tão brutal e não se perceber um revoltado. Quem me diz isso é o arquiteto Oscar Niemeyer, 97 anos muito bem vividos, a maior parte aqui na cidade que ele ajudou a tirar do posto de capital federal quarenta e cinco outonos atrás.

Lúcido, rápido e direto, apesar do baque recente da perda da mulher, companheira de toda a vida, Niemeyer ainda se surpreende com os que gostam de viver em Brasília. Abre os olhos pequeninos e me diz que, apesar do caos, da violência e da crescente alienação de uma classe média desinteressada pelo dia-a-dia da população carente, ele ainda gosta mesmo é do Rio.

Com a mesma ênfase dada por cariocas menos ilustres, ele confessa que o Rio de que gosta já não existe mais. Sabe que ainda há as montanhas, o verde e, principalmente, o mar, despudoradamente exposto em seu escritório, uma confortável cobertura na Avenida Atlântica. Mas o século de militância política e busca incessante pela solidariedade humana não alterou a estrutura do edifício Oscar Niemeyer. Que não acredita em Deus mas adora todas as religiões e que repete, feito ladainha em procissão católica, o mote de que a vida, sempre, é muito mais importante do que o trabalho.

Um dia, cochicha-me, o tempo vai apagar sua arquitetura. O sambódromo, com apoteose e tudo, e o antigo Ministério da Educação também. A Pampulha. O prédio da ONU. Até mesmo Brasília vai desaparecer. Ele não se ilude. Mas antes disso, o Rio vai voltar a ser o que era. Está lá nas escrituras de Niemeyer.

O profeta não lê mensagens secretas nas passeatas pela paz da burguesia assustada. Não enxerga o futuro na gente vestida de branco, marchando na orla ao lado de artistas que cobram cachês milionários para aparecer em mesas-redondas promovidas por grandes empresas estatais para falar do nada. Não.

Seu oráculo é mais abrangente. Os signos, ensina, estão nas ribanceiras. O último comunista de Copacabana atravessou um século testemunha da lei natural de que a maioria, sempre, vence. Um dia, ele me conta, esta gente toda que se aperta lá no alto vai descer. Vai tomar a cidade de volta. É inevitável. Os revoltados, ele sabe, se reconhecerão. E erguerão, concreto sobre concreto, uma outra cidade maravilhosa. Assim me disse Niemeyer.

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