segunda-feira, março 07, 2005

Carta Capital

Crônica publicada na edição de hoje da revista “Carta Capital’. Ta lá em www.cartacapital.terra.com.br.

“MENTIRAS MILITARES!” Eles são contra-recrutadores, dispostos a evitar que outros jovens se alistem nas Forças Armadas e sejam enviados para o Iraque.

Por Eduardo Graça, de Nova York

Noite gélida de quarta-feira no coração do Upper East Side, em Manhattan. No lobby do terceiro andar do Hunter College, estudantes abordam colegas e professores com o mesmo grito de guerra: “Mentiras Militares! Mentiras Militares!” Eles são contra-recrutadores, dispostos a evitar que outros jovens se alistem nas Forças Armadas e sejam enviados para o Iraque.

Chris Dugan, 27 anos, deixou para trás a escola secundária e se juntou, por quatro anos, ao corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos. Michael Stoll, 21 anos, cresceu em um subúrbio no estado de Nova York e jamais esqueceu das manifestações de protesto de parentes de soldados mortos nas guerras da Coréia e do Vietnã. Anna Wolf, 18 anos, é nova-iorquina da gema e se juntou ao Campus Antiwar Network (CAN) há um mês. O grupo, que já se espalha por quatro centenas de campi em todo o país, dedica-se a uma incansável ação de propaganda voltada para jovens de classe média baixa, alvo preferencial dos recrutadores militares. Explica Dugan:

– Eu me alistei porque achava que era a coisa mais patriótica que poderia fazer na vida. Mas a maioria dos jovens é seduzida pela chance de receber uma bolsa de estudos e aposentadoria especial, o que nem sempre acontece.

Minutos depois, ele recebe a informação de que um estudante do Hunter, de 18 anos, está alarmado com a possibilidade de ter de largar a escola para passar algum tempo a serviço da Marinha mais poderosa do globo. Vlad acaba de iniciar o curso de Psicologia da universidade:

– Eu me alistei no ano passado porque estava interessado na grana. Foi a maior estupidez que fiz na vida e agora não sei o que fazer para sair dessa. Quando deixei claro que estava arrependido, os alistadores me disseram que não havia caminho de volta e que, se eu sujasse a minha ficha militar, não conseguiria emprego nem no McDonald’s.

O estudante alegou problemas médicos para suspender o processo de alistamento e, por isso, não revela o seu sobrenome. Enquanto ouve atentamente a catequese de Dugan, ele burila seus óculos de aro fino para lá e para cá. Dugan o acalma:

– Você não precisa ter medo. Se ainda não prestou juramento, tudo o que precisa fazer é escrever uma carta de próprio punho e enviar para o serviço de alistamento de seu bairro – diz o contra-recrutador.

Dugan fala com a experiência de quem passou um ano trabalhando justamente como recrutador militar. Vinte minutos depois, um aliviado Vlad deixa o corredor com os telefones de contato de advogados que, voluntariamente, ajudam o CAN a enfrentar a batalha de propaganda em torno da questão militar.

Em meados de fevereiro, o Exército anunciou um aumento no prêmio mais alto para os recrutas, um crédito educativo no valor de US$ 70 mil. Michael Stoll, também contra-recrutador e estudante de Sociologia, lembra:

– O que ninguém fala é que quase a metade dos veteranos não vê a cor do dinheiro. E que o contrato com os militares inclui a invasão de países soberanos, a destruição da vida de civis e a morte de crianças.

Um recruta recebe, em média, US$ 15 mil por ano, mais US$ 225 mensais para os que estão no Iraque, em risco de combate, além de um bônus variável para os que deixam crianças em casa. Dugan e Stoll conhecem esses números de cor.

Principal programa social idealizado por George W. Bush, o The No Children Left Behind, implantado em 2002, obrigou todas as escolas de segundo grau a produzirem uma lista, incluindo nomes e endereços dos estudantes, para uso do governo. A idéia é facilitar o trabalho dos alistadores, que agora identificam com mais precisão os jovens com potencial para ingressar na vida militar.

– Quem vai parar nas Forças Armadas, tradicionalmente, são os negros e os pobres. Por isso a atuação do CAN é mais intensa nas escolas de bairros mais humildes e com grande presença de minorias étnicas – diz Dugan.

Ele e Stoll contam que as informações sobre os estudantes têm sido utilizadas pelos militares para exercer uma ação mais agressiva no processo de recrutamento, de telefonemas e cartas aos pais, passando por anúncios em classificados de jornais locais. Para os ativistas, trata-se de um ataque sem precedentes aos direitos individuais de adolescentes em todo o país. Uma de suas metas é obrigar os diretores de colégios públicos a informar às famílias que estão passando o perfil dos alunos para os militares.

– Os alistadores não podem voltar para a caserna com as mãos abanando e eles fazem qualquer coisa para conseguir o maior número de jovens aptos a usar a farda – diz Dugan.

O CAN é a face mais visível de uma crescente parcela da opinião pública americana que pede a retirada das tropas do Iraque. Mas há quem pense de modo diverso. Estudante de Língua Inglesa, Tory Sterling, 21 anos, considera sagrado o direito à escolha de servir ou não nas Forças Armadas do país:

– Você não acha que é bem óbvio para quem se alista o fato de que há um risco imenso de acabar tendo de lutar no Oriente Médio?

Sterling também acha que, ao assinar um contrato com o governo, é um dever do cidadão cumprir o que prometeu e pegar em armas pelo país. Mas deixa claro que é contrário à invasão do Iraque. O que leva Dugan a observar:

– Por isso sinto que nós não estamos sós. Eu sei que há uma imagem consolidada de que os americanos são belicosos por natureza, mas a maioria da população é contra a invasão do Iraque. Aliás, da mesma maneira que nos opusemos à invasão do Haiti.

Dugan diz que sua paixão pela cultura de guerra começou cedo. Aos 14 anos, depois de assistir a tudo o que Hollywood produziu sobre o tema, decidiu que queria ser um soldado das forças encarregadas de “levar democracia e paz mundo afora”.

- Quanta presunção! O que eu vi não gostei - conta Dugan.

Ele não pode reclamar da sorte. Dugan passou incólume pelas Forças Armadas, prestando serviço justamente entre as duas guerras do Golfo Pérsico, entre 1995 e 1999. Melhor amigo de Stoll, Dave Anderson, 19 anos, não pode dizer o mesmo. Ele acaba de receber a informação de que logo irá para o Iraque.

– Quando ele se alistou, dizia que era uma maneira inteligente de encontrar um caminho depois de terminar o segundo grau. Ele nunca imaginou que teria de enfrentar situações de risco, como a de desembarcar no Iraque com bombas explodindo todos os dias – diz Stoll.

Histórias como as de Anderson e Vlad dão munição para que meninos e meninas do CAN continuem trabalhando duro. Três vezes por semana eles lembram aos colegas que, no caso de uma convocação de emergência, todos os homens com até 27 anos podem ser intimados a pegar em armas. E esta é uma mensagem que cala fundo no Hunter College, com suas mensalidades mais de 60% mais baratas do que outras escolas particulares e um imenso plantel de estudantes oriundos das classes média e média baixa do país. “Exatamente por isso temos de nos manter alertas, sempre”, dizem os contra-recrutadores, antes de desaparecer nos corredores da superpovoada universidade, aos gritos de “Mentiras Militares! Mentiras Militares!”

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