terça-feira, agosto 12, 2008

CARTA CAPITAL/Quando o Jazz Jaz

A Carta Capital que está nas bancas saiu com minha reportagem sobre a dificuldade por que passam os músicos de jazz nos EUA por conta da recessão. São casos e mais casos de artistas abandonados por Uncle Sam.

Fundamental foi a conversa que tive com o pessoal da Jazz Foundation of America (JFA) e com os músicos - os três da foto, pela ordem, o sensacional Jimmy Norman, um dos compositores do hit Time Is On My Side, a queridíssima Lodi Carr, a Joaninha do Jazz, e a espoleta mato-grossense Sissi Verdi, que tem um vozeirão impressionante (conhecida quem anda de metrô todo dia aqui na cidade). Importante frisar que descobri o trabalho da JFA, uma associação que recoloca os músicos no mercado de trabalha e presta todo tipo de assistência - hospitalar, habitacional - que o Estado, na primeira economia do mundo, se abstém de fazer, através do colunista do Village Voice, e fanático por jazz, Nat Hentoff.

Segue o texto:

QUANDO O JAZZ JAZ

MÚSICA Os Estados Unidos do showbizz milionário relutam em socorrer os ícones do passado. Restam as Fundações.

POR EDUARDO GRAÇA,
DE NOVA YORK


É impossível desviar o olhar. A primeira imagem que se vê no apertado quitinete em que Jimmy Norman vive no Upper West Side, em Manhattan, é uma foto sua com Keth Richards. O compositor de 70 anos foi um dos autores do primeiro hit dos Rolling Stones, Time is on My Side. O detalhe triste da história é que a faixa que chegou ao top six das paradas norte-americanas jamais rendeu centavos a mais para Norman.

Quando a notícia de que Norman estava sendo despejado do apartamento por falta de pagamento do aluguel chegou à Jazz Foundation of América (JFA) os poucos pertences do artista que participou do histórico grupo de doo-wop The Coasters estavam encaixotados. Ele dormia em uma cadeira de plástico. A saúde, debilitada depois de dois ataques cardíacos, o impedia de se apresentar na noite nova-iorquina, seu principal ganha-pão desde os anos 70, quando se tornara uma das estrelas do cultuado Harlem River Drive de Eddie Palmieri, com seu mix de salsa, jazz, funk e soul.

“Durante muitos anos tive vergonha de dizer que a letra de Time Is On My Side era minha. Não queria que as pessoas tivessem pena de mim”, diz, olhando para os chinelos de dedo que protegem os pés cobertos por longas meias de algodão apesar do calor opressor do verão nova-iorquino.

Norman foi um dos
beneficiados pelo fundo de emergência criado pela JFA para ajudar músicos em dificuldade financeira. O aluguel foi pago e o tratamento de saúde regularizado. A faxina feita por dois voluntários da ONG trouxe à tona uma preciosidade: uma fita-cassete com a primeira sessão de Bob Marley nos EUA, aos 23 anos, sob a batuta de Norman, a pedido do cantor Johnny Nash, dono do selo JAD.

“Gravamos a fita em meu antigo apartamento no Bronx. O sonho de Bob, naquela época, era ser o novo James Brown”, conta. As oito músicas (três da lavra de Norman), resultantes de três dias de trabalho, foram adquiridas por 26 mil dólares num leilão na Christie’s. Assim ele pôde comprar dois computadores, montar um estúdio caseiro e gravar o CD Little Pieces, lançado pelo selo inglês Wildflower. “Meu próximo disco será uma retribuição à JFA, com o lucro destinado à ajuda de outros músicos que vivem desesperados, como um dia estive.”

Com a Crise Econômica, a Situação dos Músicos Pobres, que Já Andava Ruim, Piorou

Um concerto anual no histórico teatro Apollo, no Harlem, é a principal fonte de renda da Jazz Foundation. Este ano, Norah Jones, Bill Cosby e outros 50 artistas buscavam angariar fundos para músicos norte-americanos sofrendo de forma intensa os males da recessão. “Você ouve o tempo todo que a situação econômica aqui nos EUA está caótica, que a hora é de apertar os cintos. Imagine como ficam os que já viviam em dificuldade antes da crise explodir?”, pergunta Wendy Oxenhorn, diretora-executiva da JFA, organização sem fins lucrativos criada em 1989.

Na ante-sala do escritório de Oxenhorn, um senhor negro de meia-idade, saxofone em punho, procura assistência. Ele quer saber se a JFA pode ajudá-lo a encontrar trabalho. Alguns minutos depois a entrevista é interrompida por outro instrumentista em busca de uma geladeira para enfrentar o calor. “Este foi um baixista que tocou com todo muito importante e teve pólio aos 58 anos. Ficou esquecido e alguém falou para ele da JFA”, conta Oxenhorn, lembrando que a maioria dos músicos não autoriza a revelação da identidade.

A cantora Lodi Carr é exceção. Uma das musas do renascimento do Jazz nos anos 50 em Nova York, cujo disco Ladybird (1958) é vendido por 50 dólares nas lojas de vinil da cidade, não se importa de falar dos tropeços. Dos muitos nomes que surgem de sua memória pródiga nenhum é louvado como Dizzy Gillespie. Quando estava tratando de um câncer que o mataria em 1993, o mago do trompete criou um fundo voltado a músicos no Hospital de Englewood, em Nova Jérsei. Desde então, sem custo para os pacientes, a JFA envia músicos para serem tratados lá.

Na JFA, os artistas estão em todas as pontas do processo. O médico-chefe de Englewood é um baixista amador. Wendy Oxenhorn toca harmônica como ninguém e chegou à fundação depois de ver um anúncio em um jornal, quando se apresentava nas estações de metrô. Sob as ruas de Manhattan, ela conheceu a mato-grossense Sissi Verdi, 80 anos, cabelos longos, a voz grave e a batida de violão característica dos apaixonados por Baden Powell.

Sissi tocou, em uma trajetória que a levou aos quatro cantos do mundo, como Cavour e Camila Benson. Hoje, recebe uma ajuda mensal de 200 dólares da JFA e vive em um prédio administrado pelo Social Security americano. Depois de duas décadas tocando nos metrôs, Sissi conseguiu se aposentar nos EUA e recebe subsídio de 400 dólares por mês para remédios “Tenho saudades do Brasil, mas quando poderia ter casa, medicamentos e até alimentação incluídas na pensão?;”

Cidade Dura: Lodi Conhece Outra Nova York: 'Amigos Sofrem'

Para Lodi Carr, no entanto, Nova Iorque revela sua face mais dura para artistas que viraram a casa dos 60. “A maioria dos meus amigos estão sofrendo com a recessão. As coisas ficaram ainda mais difíceis. Na JFA, têm atendido 500 casos por ano relacionados a músicos de minha idade. Não acho que tende a diminuir”, diz.

Oxenhorn lembra que, nos EUA, a relação entre miséria e arte é mais íntima do que se pensa. E revela que conseguir doações das grandes estrelas da música, ou mesmo a participação no concerto anual da fundação, é tarefa das mais complicadas.

Mas há também histórias com final feliz, como a do músico que tocou em vários álbuns de Frank Sinatra, pegou uma pneumonia aos 71 anos, ficou impossibilitado de fazer suas noites nos clubes de Nova Iorque e acabou despejado. Foi encontrado pela JFA morando em um carro. Hoje, paga as contas com a própria música.

Mas todos são casos que revelam o descaso pela cultura popular em um país rico como os EUA, com um showbizz repleto de milionários. Daí a missão da JFA, como descreve o crítico musical Nat Hentoff, do semanário Village Voice, ser a de ‘regenerar as vidas de artistas abandonados, cuidando de suas necessidades básicas’. “A idéia inicial era criar um museu do jazz, mas surgiram histórias de vários músicos que seguiam impossibilitados de se apresentar, de nomes que fizeram parte da vida cultural de Nova Iorque e estavam esquecidos”, diz Oxenhorn.

Ela lembra que o fim da era de ouro do jazz levou ao desaparecimento de inúmeros clubes e casas noturnas. O processo de desregularização dos sindicatos, aprofundado pelos sucessivos governos republicanos, aumentaram a necessidade de criação de um organismo como a JFA. Uma de suas principais iniciativas é levar músicos como Norman, Carr e Verdi para apresentações em hospitais, asilos e orfanatos.

De acordo com Oxenhorn, desde 2005, após a tragédia do furacão Katrina, quando centenas de artistas se viram desalojados da noite para o dia e a fundação se popularizou, o número de músicos assistidos subiu para 3.500 ao ano. Em Nova Orleans, a fundação criou um fundo de 1 milhão de dólares voltado para os shows. “Eles trabalharam duro a vida toda e nos fizeram um bem enorme, compuseram a trilha sonora de nossas vidas. Não há como não pensar em ajudar estas pessoas que querem, essencialmente, continuar a mostrar sua arte para o público”, diz.

A diretora da JFA é uma máquina. O treinamento na harmônica a presenteou com uma capacidade de falar de modo polido, mas sem grandes pausas para respirar. Quando encasqueta com alguma idéia, parece impossível demovê-la. “Adoraríamos estabelecer uma parceria com artistas brasileiros, por exemplo. Imagine uma noite musical beneficente juntando artistas do jazz daqui com músicos que se dedicaram aos vários ritmos brasileiros, como o baião, xote, forró? Não seria o máximo?”. Ou, como se diz em português, não daria samba?

2 comentários:

Patrick disse...

Ótima matéria, sempre fico feliz quando abro a CartaCapital e vejo um texto de sua autoria. Parabéns!

Eduardo Graca disse...

Obrigado, meu caro!