sábado, junho 03, 2006
Diretinho da Redação (44)
A coluna da semana foi sobre a volta das músicas de protesto aqui nos EUA, o velho Arena, o Opinião, Nara Leão, Pete Seeger, Bruce Springsteen e Nova Orleans. Ela já está lá no DR.
WE SHALL OVERCOME
Teatro de Arena, 1964. Nara Leão, voz de menina, na exata metade do espetáculo Opinião, explica para o público: “Paul Seeger é um cantor que percorre os EUA recolhendo canções que o povo canta. São as chamadas canções de protesto. Uma das mais aplaudidas de seu concerto no Carnegie Hall no ano passado foi Guantanamera, de José Martí”.
Não há Guantanamera naquele que já pode ser considerado um dos principais lançamentos da música popular americana este ano. Mas o trovador volta à tona de modo avassalador em We Shall Overcome – The Pete Seeger Sessions, disco que acaba de ser lançado por Bruce Springsteen reunindo coisas tão atuais quanto a faixa-título, originalmente um canto dos pescadores sicilianos do século XVII que se transformou em hino protestante e diz algo como ‘um dia, um dia, nós iremos finalmente viver em paz, de mãos dadas, em paz’.
Com o desastre de Katrina e os absurdos diários da ocupação em Bagdá, alguém tem idéia de como Springsteen foi recebido em sua primeira apresentação, em Nova Orleans, para um público irado, nervoso, emocionado, revoltado? Com os 18 músicos da Seeger Sessions Band, ele atacou de Oh Mary, Don’t You Weep, um folk-gospel de levantar defunto e a cabeça dos que ainda acham que o chororô basta. Em seguida, em marotice que levou muitos ás lágrimas, Springsteen acrescentou alguns versos ao clássico How Can a Poor Man Stand Such Times and Live?, de 1929, cantando que ‘ele falou que estava conosco, passou por aqui e foi embora, nunca mais voltou’. Enquanto ao fundo uma bandeira pedia o ‘impeachment de George Walker Bush’, o compositor dizia, emocionado, que a era da irresponsabilidade criminosa estava chegando ao fim. We Shall Overcome, berrou. We Shall Overcome! respondeu, de mãos dadas, sem pieguice, em uma autenticidade arrepiante, seu público daquela tarde – uma gente comum, negros e brancos, jovens e velhos, em sua grande maioria sobreviventes do descaso público de Nova Orleans.
Com temas escancaradamente de esquerda, We Shall Overcome é um álbum singular, que, graças ao carisma de The Boss, chegou ao primeiro lugar das paradas americanas. Todas as faixas foram gravadas sem ensaio algum, em duas sessões de um dia cada no fim do ano passado, como se fosse um espetáculo. Ouvi-lo com atenção virou dever de casa para americanos de todas as idades.
Seu lançamento no Brasil deve ajudar a encerrar o estigma que Springsteen carrega em terras nossas desde os anos 80. Sua música Born in the USA – um relato amargo do americano comum que perdera o irmão no Vietnã e agora tinha de trabalhar nas refinarias do golfo do México para manter a ‘potência andando’ – se transformou, contra sua vontade, em hino dos conservadores ianques. Springsteen chegou a impedir que ela se tornasse tema da campanha de reeleição de Ronald Reagan, mas o estrago já estava feito.
Agora, sem a E Street Band, ele deixou sua Nova Jérsei de lado para mergulhar em Nova Orleans, nas fazendas esquecidas do oeste da América Profunda, nas fábricas abandonadas de Detroit, nas ruas repletas de mendigos dos guetos de Nova Iorque, na dor dos que seguem excluídos do sonho americano. E cada vez mais ciente de que, como nos ensina Seeger, ativo aos 87 anos e felicíssimo com a homenagem de Springsteen, We Shall Overcome. Nunca uma seqüência de 13 hinos de tão forte cunho social chegou ao alcance de tanta gente na era da globalização, neste oportuno e renovador retorno às canções de protesto. Nara estaria rindo à toa.
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