sexta-feira, setembro 16, 2005

A Verdade


Este texto eu fiz para o Valor Econômico no fim de agosto. Para quem não leu, é uma resenha sobre livros recém-lançados de dois filósofos tratando de tema recorrente nesses dias de crise: a tal da verdade.


A verdade, somente a verdade, nada mais do que a verdade. No momento em que a mentira se estabelece como moeda corrente no Brasil de Delúbios, Silvinhos, Valérios, Marinhos e Jeffersons, dois livros aparecem ao mesmo tempo nas livrarias daqui a fim de tratar de tema caro às democracias contemporâneas: a conquista da verdade. True To Life, do professor da Universidade de Connecticut Michael P. Lynch, é um livraço. Em pouco mais de 200 páginas, sem hermetismos, o filósofo mostra que a verdade não é uma idéia abstrata e que é ela, ainda, que faz a diferença no mundo contemporâneo, tanto na esfera pessoal quanto, especialmente, na pública. E em Truth – A Guide, o filósofo britânico Simon Blackburn traça a história da verdade na cultura ocidental, desde os gregos, passando pelas narrativas bíblicas, os pensadores da Idade Média, o pragmatismo norte-americano e os pós-modernos.

True To Life começa com uma mentira de Estado bem conhecida dos norte-americanos: a justificativa do governo George W. Bush para se iniciar a invasão do Iraque. Como se sabe, as tais armas químicas que poderiam prover Saddam Hussein com um poder de fogo assombroso jamais foram encontradas. Ninguém foi punido pela ‘mentira oficial’. Muito pelo contrario, o presidente foi reeleito mesmo depois da descoberta de que a motivação para o conflito carecia de fundamento. “E aí é claro que o cidadão tem todo o direito de se perguntar: por que prestar tanta atenção na verdade quando a mentira dá tanto resultado?”, questiona Lynch.

Ele mesmo responde. Este é um dos casos em que a maioria da sociedade – ou boa parte dela – prefere ‘esquecer certos deslizes’ em nome do pragmatismo. Assim, a noção de segurança e de proteção contra o ‘terror’, lembra Lynch, foram as principais justificativas para não se levar em conta a mentira republicana. Da mesma maneira, pode-se entender que boa parte da elite brasileira julgue de modo diferente figuras de um mesmo escândalo de corrupção. O ministro da Fazenda, ao atrelar sua imagem à calmaria do mercado financeiro, recebe um tratamento mais condescendente tanto da oposição quanto dos chamados setores produtivos da sociedade, preocupados em manter a estabilidade econômica. A idéia de que os fins justificam os meios, anti-democrática, anti-liberal e anti-republicana, ironicamente, pontua Lynch, é um dos principais legados do pragmatismo ianque à civilização ocidental.

Para o professor, esta idéia transviada da verdade nos chega hoje disfarçada de um cinismo pernicioso, que brota de nossa própria confusão. Lynch acredita que vivemos o tempo do ataque à verdade, e que esta batalha é travada em dois flancos principais. De um lado, as teorias contemporâneas sobre a noção de verdade nos garantem que esta é relativa e depende de inúmeros fatores – da concentração de conhecimento, da linguagem utilizada, da cultura, do gênero, da classe, da ideologia, do desejo, e, claro, do tamanho do poder de quem a propaga. De outro, como que em uma reação aos relativistas liberais, há a apropriação da verdade pelos neo-conservadores populistas, que se apegam aos ‘valores da moral’ e transformam a ‘verdade’ em ‘verdade única’, mesclando crença pessoal com dogmatismo e purificação ética, em que seus propagadores estão sempre certos e os opositores constantemente errados. “Valorizar a verdade passa necessariamente pelo reconhecimento do erro. Aquele que realmente entende o significado da verdade está sempre aberto para a possibilidade de que seus ideais e atos possam estar equivocados”, prega Lynch. O filósofo vai além e escreve que a arrogância dos que não vêm a público se penitenciar por erros cometidos durante o período em que estavam administrando a coisa pública é um dos maiores incentivos para o retrocesso democrático.

A se dar crédito a Lynch, quando uma sociedade se descobre emaranhada em uma rede de mentiras, como a brasileira dos Anos Lula ou a norte-americana de Bush, um caminho para a recuperação da cidadania é o entendimento da verdade como um valor por si só, objetivo, identificável e capaz de nos prover com uma segurança não-alienante. Discípulo do liberalismo clássico, Lynch elege como uma das principais vítimas de True to Life outro medalhão da inteligência norte-americana, Stanley Fish. Um dos papas do pós-modernismo, Fish defende que a verdade objetiva não é apenas uma ilusão, mas que a mera preocupação com sua natureza é uma imensa perda de tempo. Para ele, a verdade, por si só, não tem valor algum. “Ele afirma que as pessoas ‘dizem’ que querem acreditar na verdade, mas, no fim, desejam mesmo é acreditar no que lhes é proveitoso, no que as levam a algo concreto, como bons ternos, menos impostos a pagar ou uma fonte infinita de gasolina para seus veículos utilitários (os onipresentes SUVs). No fim do dia, ele acha que a verdade do que acreditamos deixa de ser importante. O que vale são as conseqüências”, escreve Lynch.

O professor da Universidade de Connecticut, é claro, pensa de modo completamente diverso. Um dos grandes desafios das democracias contemporâneas seria justamente o de lidar com a verdade no âmbito público sem concessões a expressões do cinismo mais rasteiro- como ‘ele é corrupto, mas quem não é?’ ou ‘ele emprega os parentes como funcionários do Estado, mas eu faria o mesmo’ – que nos impede de agir com integridade de modo coletivo, uma das armas mais importantes dos regimes políticos representativos. “Este é o valor mais poderoso para tratarmos com quem detém o poder político. E este é o motivo principal pelo qual devemos cuidar e preservar a verdade, valor fundamental para o bem-viver e para a qualidade de vida no mundo de hoje”, defende Lynch.

Ser verdadeiro consigo mesmo é um exercício diário e doloroso. Cobrar integridade e autenticidade de quem detém o Poder não é menos estafante. Mas, para Lynch, achar que a verdade não importa mais é um sinal de covardia, individual ou social. Ele lembra um dos mais famosos lemas do movimento dos Direitos Civis, nos anos 60, que dizia que ‘deixar de lutar pela verdade deixa para o Poder o monopólio da realidade’. A covardia social, especialmente, é alimentada pelos que o filósofo classifica como ‘mentirosos de resultado’, os que ganham o Poder e lá permanecem apesar de ou por conta das mentiras utilizadas para lá se chegar. “Muitas vezes o mentiroso de resultados, em uma visão romântica, transforma-se em celebridade e é admirado como o trapaceiro, o esperto, o malandro que consegue impor sua maneira de pensar o mundo, uma figura extremamente erotizada pela nossa sociedade”, escreve.

Tanto para Lynch quanto para Blackburn não há tema mais importante e urgente do que a verdade. Eles lembram quem já em “A República” Platão nos apresentava o diálogo sobre justiça entre Sócrates e Glauco como uma metáfora da apropriação perniciosa de valores caros à nossa civilização. Glauco acreditava que a Justiça era destinada a punir os outros e que jamais deveria ser utilizada para questionar seus atos. Lynch escreve que é assim que boa parte da sociedade ocidental percebe a verdade: como algo similar ao dinheiro, uma arma que nos permite realizar certos objetivos. A única saída possível para o filósofo é perceber que a verdade é muito mais próxima da noção de amor: é objetiva em sua essência, subjetiva em sua apreciação e tem a capacidade de existir em mais de uma forma. E também pode ser extremamente complicado encontrá-la e conviver com ela, mas vale a pena. Se há uma verdade absoluta, provoca Lynch, é que o aniquilamento da verdade leva ao assassinato da esperança e à corrupção não apenas de uma classe de dirigentes políticos ou religiosos, mas de toda a sociedade.

Um comentário:

ipaco disse...

Realmente interessante o artigo e as idéias dos autores. Da forma como vejo, a verdade é construída socialmente, não existe assim, digamos, de forma dada, na natureza. É fruto da interpretação humana e como cada um vê o mundo de um jeito... Daí o perigo que a mídia representa, vendendo "verdades" para milhões simultaneamente, sistematicamente, automaticamente... tentando construir realidades.