sábado, agosto 16, 2008
E Ainda Mais Caymmi ('Carmen em slow motion')
Papo de Baiano, mas de bahiano mesmo, com H. Dorival e Caetano, via Leon Hirszman. Uma delícia:
sexta-feira, agosto 15, 2008
ENTREVISTA/Peter Carey
No Valor Econômico, neste fim de semana:
Hugh, uma descoberta
Por Eduardo Graça, para o Valor, de Nova York
15/08/2008
Sentado no confortável sofá cinza de sua sala de estar, as mãos passeando pelo tornozelo, Peter Carey, o celebrado escritor australiano, não se assemelha em nada a seu alter ego, o pintor Michael Butcher Boone, anti-herói de "Roubo - Uma História de Amor", recém-lançado no Brasil. Seu loft no SoHo é decorado de forma austera, não há obras de arte em grande escala e sua delicadeza só se rompe quando solta um som gutural que alavanca uma gargalhada destas de parar o trânsito da Broadway com Canal, uma das esquinas mais movimentadas de Manhattan, a uma quadra de seu silencioso refúgio nova-iorquino.
O leitor brasileiro familiarizado com a literatura de Carey - um dos dois únicos escritores (o outro é o sul-africano, exilado na Austrália, J.M. Coetzee) a receber duas vezes o prestigiado Booker Prize, por "Oscar e Lucinda" e "A História do Bando de Kelly" - o encontrará novamente mergulhado no jogo de espelhos do falso-e-verdadeiro, aqui representados por um roubo em que um quadro aparentemente verdadeiro de um grande pintor desaparece ao lado da casa em que vive o protagonista do romance.
Butcher Boone é um artista nascido na mesma cidade e no mesmo ano que o autor. Este é o romance que permitiu a Carey, de 65 anos, usar com maior liberdade sua memória. Não que o outro narrador do livro - Hugh Boone, o irmão retardado e obeso de Butcher - seja alguém relacionado ao passado do autor. Mas o livro, e especialmente o atormentado Hugh, possibilitaram um reencontro do escritor, 18 anos depois de se mudar para Nova York, com tiques, gírias, sons e atitudes de sua Austrália natal, "este país peculiaríssimo, onde temos a todo momento a noção de que nos apropriamos da terra de seus verdadeiros donos".
Sociedade colonial que nascia na mesma época em que o continente americano iniciava seu processo de independência das potências européias, a Austrália de Carey é tão pulsante quanto os Estados Unidos que ele vê da janela do SoHo, "um país aterrorizante, antes mesmo de ser governado pelos criminosos de agora". E é sobre o caleidoscópio de sua obra e de sua realidade que ele conversou com o Valor.
A seguir, trechos da entrevista:
Valor: O sr. está animado com o lançamento de "Roubo" no Brasil?
Peter Carey: Mais do que animado. Fico pensando que nunca fui ao Brasil. Tenho amigos que já foram a Paraty e me dizem que eu preciso conhecer, que a Flip [Festa Literária Internacional de Paraty] é especial. Se o pessoal da feira continuar me convidando, vou acabar indo. O que pesa, hoje é a idade...
Valor: Na prova da editora brasileira, do título original em inglês - "Theft: a Love Story" - faltava o subtítulo "uma história de amor". E o livro dá conta de várias paixões ao mesmo tempo...
Carey: Sim, dos dois narradores, um pelo outro (o pintor Butcher e seu irmão Hugh), de Butcher por Marlene e, também, do amor desses personagens pelas artes plásticas. De qualquer modo, mesmo nos Estados Unidos, o livro ficou conhecido apenas como "Theft" e sei que há pessoas que acreditam que você nunca deveria escrever "uma história de amor" em lugar algum [risos].
Valor: "Jack Maggs", "A História do Bando de Kelly", "Minha Vida", "Uma Farsa" e "Oscar e Lucinda" são romances históricos. Quando estava terminando "Roubo", o sr. disse que este seria seu primeiro romance contemporâneo, que estava promovendo um reencontro seu com a Austrália atual. Foi esse seu impulso para escrevê-lo?
Carey: Não, mas esse reencontro foi um enorme alívio. Nas coisas que ainda posso captar daqui de longe e em parte do livro, coisas que são baseadas em situações que vivi, em casas que morei. Não sou como Butcher, que precisa destruir tudo o que vem de seu passado. Tenho grande afeição pelos anos em que vivi na Austrália. Foi um processo tão prazeroso que fiz Butcher nascer no mesmo ano em que eu, em 1943. E não tive de pensar muito para preencher os detalhes. Eu sabia até os horários dos trens.
Valor: Antes de escrever "Roubo", o sr. voltou a Baccus March, a cidadezinha a oeste de Melbourne onde nasceu e onde se passa parte da ação do livro?
Carey: Sim, mas nada é tal como era. Escrevo sobre um lugar que não existe mais. Minha namorada, que é inglesa [a editora Frances Coady, estrela da "Granta" e da "Picador"], ficou chocada com o que viu. O lugar era muito mais aprazível do que fiz parecer no livro.
Valor: Há também a linguagem que Butcher usa...
Carey: Sim, ele não é exatamente o mais elegante dos homens. Mas escrever naquela linguagem, repleta de profanações, sobre artes plásticas, não poderia ser mais australiano. E nunca havia visto aquele tipo de linguagem mais chula usada dessa maneira, nesses círculos. Talvez seja esse o aspecto mais contemporâneo da minha experiência com "Roubo": o uso da linguagem.
Valor: O sr. é celebrado pelo experimentalismo com a linguagem. Na versão original, a brincadeira com os títulos de tablóides de jornais usados no meio da fala de Butcher e de Hugh é sensacional, mas na tradução esses recursos não perdem força?
Carey: É claro que perdem. Mas essa é a natureza de quando se lê em outras culturas. Não tenho dúvidas de que quando li "Cem Anos de Solidão" em inglês, e foi uma experiência maravilhosa, deixei de captar muito da essência do livro. Apesar de o livro de García Márquez ter tido um efeito fortíssimo em mim, ao mesmo tempo deixei de entender muitas coisas. Mas como evitar isso? Não podemos deixar de lembrar que os melhores livros e as melhores traduções também devem oferecer espaço para interessantíssimos erros de interpretação. Por que não?
Valor: O sr. tem lido bastante fora do mundo anglófilo?
Carey: Sim, mas se a próxima pergunta é de que autores brasileiros contemporâneos eu mais gosto, a resposta é não tenho lido, não [risos]. Mas li recentemente dois austríacos que, de alguma maneira, são próximos do que tenho escrito ultimamente, Joseph Roth (1894-1939) e Gregor von Rezzori (1914-1998), ambos traduzidos do alemão para o inglês. São belíssimas traduções.
Valor: O que pode dizer especificamente sobre Hugh, o irmão com problemas mentais, gordo, que vira um dos narradores?
O personagem de linguagem desabrida, verdadeiro "museu de gírias", deu ao autor o sentido que ainda faltava para definir seu novo livro
Carey: Ele nasceu depois de eu começar a escrever "Roubo". Estava extremamente feliz com a voz que havia achado para Butcher, mas os capítulos que ia escrevendo vinham tão facilmente que comecei a achar que aquela narração era uma armadilha. Estava me divertindo demais com Butcher. Ao descobrir Hugh, encontrei o livro que estava escrevendo: as múltiplas histórias de amor que você me fez destacar no começo da conversa. E Hugh contradiz Butcher de maneira tão interessante que acaba alargando o tema do livro e, claro, as possibilidades de brincar com a linguagem, que me é tão cara. Hugh é um museu de gírias australianas. Várias palavras que ele usa já desapareceram do dia-a-dia do meu país. Ele se diverte falando aquelas palavras. E eu também.
Valor: Então quando o sr. está escrevendo, se algo vem muito facilmente, a suspeita de que não é essencial é imediata?
Carey: É o que eu chamo de "showing-off". São aquelas coisas que parecem arte, mas não são. Para mim, para ser arte, em literatura, os personagens precisam ter uma boa razão para existir. Agora, dois anos depois de publicado, estou certo de que todos os seres que habitam "Roubo" lá estão por motivos claros, mas houve um momento, antes de Hugh, em que eu tinha de descobrir o sentido daquela história. E quando escrevi através do ponto de vista de Hugh por três, quatro vezes, percebi que havia encontrado meu livro. Quando vi que ele poderia contar a história daquela família de modo completamente diverso da de Butcher, soube que aquele era o caminho.
Valor: Outra personagem marcante é Marlene. No começo do livro há uma cena extremamente erótica em que Butcher, digamos assim, se encanta pelos sapatos Manolo Blahnik da misteriosa loura. Foi uma homenagem às avessas às mulheres de Nova York, obcecadas pela moda?
Carey: A verdade é que me arrependo muito de ter usado o nome da marca. Sabe que ainda não sei como pronunciar o sobrenome do Manolo? O que gosto é da noção de que Butcher, aquele homem peludo, forte, grosseirão e zangado, se vê no mesmo aposento em que está aquela mulher belíssima, cujo carro atolou em frente da sua casa, e seus sapatos chiques. E ele limpa os sapatos dela de modo especial. É um ato estranho, não? Não sei de onde veio e posso lhe garantir que não foi uma experiência pessoal.
Valor: O sr. já vive nos Estados Unidos há 18 anos. Nova York é sua casa?
Carey: É sim, inevitavelmente. Cresci em um mundo diferente, no qual as pessoas tinham apenas uma casa. Hoje em dia, é cada vez mais comum, com a imigração para os centros urbanos do mundo, ter dois lares. Não penso mais na minha realidade como uma contradição. E é difícil imaginar que escritor eu seria se não tivesse vindo para cá.
Valor: O sr. já afirmou que os Estados Unidos o deixam nervoso, mas Nova York o deixa feliz. É isso mesmo?
Carey: Agora mais do que nunca. Os Estados Unidos me deixam nervosíssimo. São um país aterrorizante e já o eram antes mesmo de ser governados por criminosos, como agora. Vivo em um país onde o presidente, o vice e boa parte de seus assessores deveriam ser julgados como criminosos de guerra. Agora todos esperamos por um retorno ao que podemos chamar de "normalidade americana", o que quer que isso seja, provavelmente ainda essencialmente imperialista. Do jeito que está, me dá calafrios. Sobre as eleições de novembro, creio que ainda não sabemos de fato quem é Obama. Ele é um centrista, não tem nada de radical, mas quem sabe se revelará de fato um líder? Vamos ver. Votarei nele.
Valor: O sr. vota nos Estados Unidos?
Carey: Tenho dupla cidadania. Voto aqui e na Austrália. Mas acho que, no caso dos Estados Unidos, todos deveríamos ter o direito de votar para presidente. O mundo deveria poder ter este direito básico de decidir quem comanda o império.
Valor: O sr. é diretor-executivo do programa de redação criativa do Hunter College, em Nova York, um centro universitário conhecido pelo corpo discente multiétnico. Lecionar é uma atividade tão essencial para o sr. quanto escrever?
Carey: Decidi tornar-me professor quando cheguei aos Estados Unidos para ficar, para ter meu "green card", para poder oferecer a meus filhos uma boa educação. Mas aí me apaixonei pelo Hunter College, um lugar em que, na graduação, você tem o maior número de estudantes de classe social mais baixa e de segundas gerações de imigrantes em Nova York. Tenho um programa pequeno na pós-graduação, dou uma aula por semana, um semestre por ano. Adoro meus alunos, que vêm de todos o cantos e têm experiências sensacionais para dividir comigo.
Valor: O sr. escreveu o roteiro de "Até o Fim do Mundo" para Wim Wenders, um dos maiores fracassos de crítica do diretor alemão. Como descreveria sua parceria com ele?
Carey: [Rindo muito] Quando o conheci, estávamos em Londres, em 1985, almoçamos, e foi um almoço ajantarado, pois ele levou três horas para me contar a história que queria que eu escrevesse. Ele tinha a idéia na cabeça, nada muito concreto. Passei três anos tentando conseguir descobrir o que ele queria dizer. Sou um romancista, não um roteirista, vai ver por isso demorei tanto a entender. Então, quando finalmente terminei o que achava ser um bom roteiro, Wim simplesmente recortou tudo e fez o que queria desde o início, acho. Fiquei possesso. Mas depois fui a Berlim, vi o filme e pensei que era aquela velha história da nova mulher que pensa que vai mudar o marido porque ele, agora, está com ela.
Valor: Ele continuaria a ser o mesmo Wim Wenders...
Carey: Exato. E Wim faz apenas o que está a fim de fazer. Não posso reclamar. Bebi bons vinhos, viajei para cima e baixo, fiquei em vários hotéis e me diverti muito. E a querida Soveig Dommartin (1961-2007), a protagonista, uma senhora atriz que morreu no ano passado de um ataque do coração aos 45 anos, só me deixou boas recordações.
Valor: Depois de "Roubo", o sr. lançou em fevereiro, nos Estados Unidos, "His Illegal Self", sobre um jovem chamado Che que é forçado a sair da redoma de vidro de seu apartamento para conhecer os percalços da vida. E agora, o que está preparando?
Carey: A melhor definição que já ouvi sobre um romance é "um trabalhão com um problema no meio". Pois é isso mesmo o que percebo agora. Posso adiantar que meu novo livro se passa no passado, em vários países, e dois temas centrais serão democracia e cultura popular. É isso.
Hugh, uma descoberta
Por Eduardo Graça, para o Valor, de Nova York
15/08/2008
Sentado no confortável sofá cinza de sua sala de estar, as mãos passeando pelo tornozelo, Peter Carey, o celebrado escritor australiano, não se assemelha em nada a seu alter ego, o pintor Michael Butcher Boone, anti-herói de "Roubo - Uma História de Amor", recém-lançado no Brasil. Seu loft no SoHo é decorado de forma austera, não há obras de arte em grande escala e sua delicadeza só se rompe quando solta um som gutural que alavanca uma gargalhada destas de parar o trânsito da Broadway com Canal, uma das esquinas mais movimentadas de Manhattan, a uma quadra de seu silencioso refúgio nova-iorquino.
O leitor brasileiro familiarizado com a literatura de Carey - um dos dois únicos escritores (o outro é o sul-africano, exilado na Austrália, J.M. Coetzee) a receber duas vezes o prestigiado Booker Prize, por "Oscar e Lucinda" e "A História do Bando de Kelly" - o encontrará novamente mergulhado no jogo de espelhos do falso-e-verdadeiro, aqui representados por um roubo em que um quadro aparentemente verdadeiro de um grande pintor desaparece ao lado da casa em que vive o protagonista do romance.
Butcher Boone é um artista nascido na mesma cidade e no mesmo ano que o autor. Este é o romance que permitiu a Carey, de 65 anos, usar com maior liberdade sua memória. Não que o outro narrador do livro - Hugh Boone, o irmão retardado e obeso de Butcher - seja alguém relacionado ao passado do autor. Mas o livro, e especialmente o atormentado Hugh, possibilitaram um reencontro do escritor, 18 anos depois de se mudar para Nova York, com tiques, gírias, sons e atitudes de sua Austrália natal, "este país peculiaríssimo, onde temos a todo momento a noção de que nos apropriamos da terra de seus verdadeiros donos".
Sociedade colonial que nascia na mesma época em que o continente americano iniciava seu processo de independência das potências européias, a Austrália de Carey é tão pulsante quanto os Estados Unidos que ele vê da janela do SoHo, "um país aterrorizante, antes mesmo de ser governado pelos criminosos de agora". E é sobre o caleidoscópio de sua obra e de sua realidade que ele conversou com o Valor.
A seguir, trechos da entrevista:
Valor: O sr. está animado com o lançamento de "Roubo" no Brasil?
Peter Carey: Mais do que animado. Fico pensando que nunca fui ao Brasil. Tenho amigos que já foram a Paraty e me dizem que eu preciso conhecer, que a Flip [Festa Literária Internacional de Paraty] é especial. Se o pessoal da feira continuar me convidando, vou acabar indo. O que pesa, hoje é a idade...
Valor: Na prova da editora brasileira, do título original em inglês - "Theft: a Love Story" - faltava o subtítulo "uma história de amor". E o livro dá conta de várias paixões ao mesmo tempo...
Carey: Sim, dos dois narradores, um pelo outro (o pintor Butcher e seu irmão Hugh), de Butcher por Marlene e, também, do amor desses personagens pelas artes plásticas. De qualquer modo, mesmo nos Estados Unidos, o livro ficou conhecido apenas como "Theft" e sei que há pessoas que acreditam que você nunca deveria escrever "uma história de amor" em lugar algum [risos].
Valor: "Jack Maggs", "A História do Bando de Kelly", "Minha Vida", "Uma Farsa" e "Oscar e Lucinda" são romances históricos. Quando estava terminando "Roubo", o sr. disse que este seria seu primeiro romance contemporâneo, que estava promovendo um reencontro seu com a Austrália atual. Foi esse seu impulso para escrevê-lo?
Carey: Não, mas esse reencontro foi um enorme alívio. Nas coisas que ainda posso captar daqui de longe e em parte do livro, coisas que são baseadas em situações que vivi, em casas que morei. Não sou como Butcher, que precisa destruir tudo o que vem de seu passado. Tenho grande afeição pelos anos em que vivi na Austrália. Foi um processo tão prazeroso que fiz Butcher nascer no mesmo ano em que eu, em 1943. E não tive de pensar muito para preencher os detalhes. Eu sabia até os horários dos trens.
Valor: Antes de escrever "Roubo", o sr. voltou a Baccus March, a cidadezinha a oeste de Melbourne onde nasceu e onde se passa parte da ação do livro?
Carey: Sim, mas nada é tal como era. Escrevo sobre um lugar que não existe mais. Minha namorada, que é inglesa [a editora Frances Coady, estrela da "Granta" e da "Picador"], ficou chocada com o que viu. O lugar era muito mais aprazível do que fiz parecer no livro.
Valor: Há também a linguagem que Butcher usa...
Carey: Sim, ele não é exatamente o mais elegante dos homens. Mas escrever naquela linguagem, repleta de profanações, sobre artes plásticas, não poderia ser mais australiano. E nunca havia visto aquele tipo de linguagem mais chula usada dessa maneira, nesses círculos. Talvez seja esse o aspecto mais contemporâneo da minha experiência com "Roubo": o uso da linguagem.
Valor: O sr. é celebrado pelo experimentalismo com a linguagem. Na versão original, a brincadeira com os títulos de tablóides de jornais usados no meio da fala de Butcher e de Hugh é sensacional, mas na tradução esses recursos não perdem força?
Carey: É claro que perdem. Mas essa é a natureza de quando se lê em outras culturas. Não tenho dúvidas de que quando li "Cem Anos de Solidão" em inglês, e foi uma experiência maravilhosa, deixei de captar muito da essência do livro. Apesar de o livro de García Márquez ter tido um efeito fortíssimo em mim, ao mesmo tempo deixei de entender muitas coisas. Mas como evitar isso? Não podemos deixar de lembrar que os melhores livros e as melhores traduções também devem oferecer espaço para interessantíssimos erros de interpretação. Por que não?
Valor: O sr. tem lido bastante fora do mundo anglófilo?
Carey: Sim, mas se a próxima pergunta é de que autores brasileiros contemporâneos eu mais gosto, a resposta é não tenho lido, não [risos]. Mas li recentemente dois austríacos que, de alguma maneira, são próximos do que tenho escrito ultimamente, Joseph Roth (1894-1939) e Gregor von Rezzori (1914-1998), ambos traduzidos do alemão para o inglês. São belíssimas traduções.
Valor: O que pode dizer especificamente sobre Hugh, o irmão com problemas mentais, gordo, que vira um dos narradores?
O personagem de linguagem desabrida, verdadeiro "museu de gírias", deu ao autor o sentido que ainda faltava para definir seu novo livro
Carey: Ele nasceu depois de eu começar a escrever "Roubo". Estava extremamente feliz com a voz que havia achado para Butcher, mas os capítulos que ia escrevendo vinham tão facilmente que comecei a achar que aquela narração era uma armadilha. Estava me divertindo demais com Butcher. Ao descobrir Hugh, encontrei o livro que estava escrevendo: as múltiplas histórias de amor que você me fez destacar no começo da conversa. E Hugh contradiz Butcher de maneira tão interessante que acaba alargando o tema do livro e, claro, as possibilidades de brincar com a linguagem, que me é tão cara. Hugh é um museu de gírias australianas. Várias palavras que ele usa já desapareceram do dia-a-dia do meu país. Ele se diverte falando aquelas palavras. E eu também.
Valor: Então quando o sr. está escrevendo, se algo vem muito facilmente, a suspeita de que não é essencial é imediata?
Carey: É o que eu chamo de "showing-off". São aquelas coisas que parecem arte, mas não são. Para mim, para ser arte, em literatura, os personagens precisam ter uma boa razão para existir. Agora, dois anos depois de publicado, estou certo de que todos os seres que habitam "Roubo" lá estão por motivos claros, mas houve um momento, antes de Hugh, em que eu tinha de descobrir o sentido daquela história. E quando escrevi através do ponto de vista de Hugh por três, quatro vezes, percebi que havia encontrado meu livro. Quando vi que ele poderia contar a história daquela família de modo completamente diverso da de Butcher, soube que aquele era o caminho.
Valor: Outra personagem marcante é Marlene. No começo do livro há uma cena extremamente erótica em que Butcher, digamos assim, se encanta pelos sapatos Manolo Blahnik da misteriosa loura. Foi uma homenagem às avessas às mulheres de Nova York, obcecadas pela moda?
Carey: A verdade é que me arrependo muito de ter usado o nome da marca. Sabe que ainda não sei como pronunciar o sobrenome do Manolo? O que gosto é da noção de que Butcher, aquele homem peludo, forte, grosseirão e zangado, se vê no mesmo aposento em que está aquela mulher belíssima, cujo carro atolou em frente da sua casa, e seus sapatos chiques. E ele limpa os sapatos dela de modo especial. É um ato estranho, não? Não sei de onde veio e posso lhe garantir que não foi uma experiência pessoal.
Valor: O sr. já vive nos Estados Unidos há 18 anos. Nova York é sua casa?
Carey: É sim, inevitavelmente. Cresci em um mundo diferente, no qual as pessoas tinham apenas uma casa. Hoje em dia, é cada vez mais comum, com a imigração para os centros urbanos do mundo, ter dois lares. Não penso mais na minha realidade como uma contradição. E é difícil imaginar que escritor eu seria se não tivesse vindo para cá.
Valor: O sr. já afirmou que os Estados Unidos o deixam nervoso, mas Nova York o deixa feliz. É isso mesmo?
Carey: Agora mais do que nunca. Os Estados Unidos me deixam nervosíssimo. São um país aterrorizante e já o eram antes mesmo de ser governados por criminosos, como agora. Vivo em um país onde o presidente, o vice e boa parte de seus assessores deveriam ser julgados como criminosos de guerra. Agora todos esperamos por um retorno ao que podemos chamar de "normalidade americana", o que quer que isso seja, provavelmente ainda essencialmente imperialista. Do jeito que está, me dá calafrios. Sobre as eleições de novembro, creio que ainda não sabemos de fato quem é Obama. Ele é um centrista, não tem nada de radical, mas quem sabe se revelará de fato um líder? Vamos ver. Votarei nele.
Valor: O sr. vota nos Estados Unidos?
Carey: Tenho dupla cidadania. Voto aqui e na Austrália. Mas acho que, no caso dos Estados Unidos, todos deveríamos ter o direito de votar para presidente. O mundo deveria poder ter este direito básico de decidir quem comanda o império.
Valor: O sr. é diretor-executivo do programa de redação criativa do Hunter College, em Nova York, um centro universitário conhecido pelo corpo discente multiétnico. Lecionar é uma atividade tão essencial para o sr. quanto escrever?
Carey: Decidi tornar-me professor quando cheguei aos Estados Unidos para ficar, para ter meu "green card", para poder oferecer a meus filhos uma boa educação. Mas aí me apaixonei pelo Hunter College, um lugar em que, na graduação, você tem o maior número de estudantes de classe social mais baixa e de segundas gerações de imigrantes em Nova York. Tenho um programa pequeno na pós-graduação, dou uma aula por semana, um semestre por ano. Adoro meus alunos, que vêm de todos o cantos e têm experiências sensacionais para dividir comigo.
Valor: O sr. escreveu o roteiro de "Até o Fim do Mundo" para Wim Wenders, um dos maiores fracassos de crítica do diretor alemão. Como descreveria sua parceria com ele?
Carey: [Rindo muito] Quando o conheci, estávamos em Londres, em 1985, almoçamos, e foi um almoço ajantarado, pois ele levou três horas para me contar a história que queria que eu escrevesse. Ele tinha a idéia na cabeça, nada muito concreto. Passei três anos tentando conseguir descobrir o que ele queria dizer. Sou um romancista, não um roteirista, vai ver por isso demorei tanto a entender. Então, quando finalmente terminei o que achava ser um bom roteiro, Wim simplesmente recortou tudo e fez o que queria desde o início, acho. Fiquei possesso. Mas depois fui a Berlim, vi o filme e pensei que era aquela velha história da nova mulher que pensa que vai mudar o marido porque ele, agora, está com ela.
Valor: Ele continuaria a ser o mesmo Wim Wenders...
Carey: Exato. E Wim faz apenas o que está a fim de fazer. Não posso reclamar. Bebi bons vinhos, viajei para cima e baixo, fiquei em vários hotéis e me diverti muito. E a querida Soveig Dommartin (1961-2007), a protagonista, uma senhora atriz que morreu no ano passado de um ataque do coração aos 45 anos, só me deixou boas recordações.
Valor: Depois de "Roubo", o sr. lançou em fevereiro, nos Estados Unidos, "His Illegal Self", sobre um jovem chamado Che que é forçado a sair da redoma de vidro de seu apartamento para conhecer os percalços da vida. E agora, o que está preparando?
Carey: A melhor definição que já ouvi sobre um romance é "um trabalhão com um problema no meio". Pois é isso mesmo o que percebo agora. Posso adiantar que meu novo livro se passa no passado, em vários países, e dois temas centrais serão democracia e cultura popular. É isso.
quarta-feira, agosto 13, 2008
terça-feira, agosto 12, 2008
CARTA CAPITAL/Quando o Jazz Jaz
A Carta Capital que está nas bancas saiu com minha reportagem sobre a dificuldade por que passam os músicos de jazz nos EUA por conta da recessão. São casos e mais casos de artistas abandonados por Uncle Sam.
Fundamental foi a conversa que tive com o pessoal da Jazz Foundation of America (JFA) e com os músicos - os três da foto, pela ordem, o sensacional Jimmy Norman, um dos compositores do hit Time Is On My Side, a queridíssima Lodi Carr, a Joaninha do Jazz, e a espoleta mato-grossense Sissi Verdi, que tem um vozeirão impressionante (conhecida quem anda de metrô todo dia aqui na cidade). Importante frisar que descobri o trabalho da JFA, uma associação que recoloca os músicos no mercado de trabalha e presta todo tipo de assistência - hospitalar, habitacional - que o Estado, na primeira economia do mundo, se abstém de fazer, através do colunista do Village Voice, e fanático por jazz, Nat Hentoff.
Segue o texto:
QUANDO O JAZZ JAZ
MÚSICA Os Estados Unidos do showbizz milionário relutam em socorrer os ícones do passado. Restam as Fundações.
POR EDUARDO GRAÇA,
DE NOVA YORK
É impossível desviar o olhar. A primeira imagem que se vê no apertado quitinete em que Jimmy Norman vive no Upper West Side, em Manhattan, é uma foto sua com Keth Richards. O compositor de 70 anos foi um dos autores do primeiro hit dos Rolling Stones, Time is on My Side. O detalhe triste da história é que a faixa que chegou ao top six das paradas norte-americanas jamais rendeu centavos a mais para Norman.
Quando a notícia de que Norman estava sendo despejado do apartamento por falta de pagamento do aluguel chegou à Jazz Foundation of América (JFA) os poucos pertences do artista que participou do histórico grupo de doo-wop The Coasters estavam encaixotados. Ele dormia em uma cadeira de plástico. A saúde, debilitada depois de dois ataques cardíacos, o impedia de se apresentar na noite nova-iorquina, seu principal ganha-pão desde os anos 70, quando se tornara uma das estrelas do cultuado Harlem River Drive de Eddie Palmieri, com seu mix de salsa, jazz, funk e soul.
“Durante muitos anos tive vergonha de dizer que a letra de Time Is On My Side era minha. Não queria que as pessoas tivessem pena de mim”, diz, olhando para os chinelos de dedo que protegem os pés cobertos por longas meias de algodão apesar do calor opressor do verão nova-iorquino.
Norman foi um dos beneficiados pelo fundo de emergência criado pela JFA para ajudar músicos em dificuldade financeira. O aluguel foi pago e o tratamento de saúde regularizado. A faxina feita por dois voluntários da ONG trouxe à tona uma preciosidade: uma fita-cassete com a primeira sessão de Bob Marley nos EUA, aos 23 anos, sob a batuta de Norman, a pedido do cantor Johnny Nash, dono do selo JAD.
“Gravamos a fita em meu antigo apartamento no Bronx. O sonho de Bob, naquela época, era ser o novo James Brown”, conta. As oito músicas (três da lavra de Norman), resultantes de três dias de trabalho, foram adquiridas por 26 mil dólares num leilão na Christie’s. Assim ele pôde comprar dois computadores, montar um estúdio caseiro e gravar o CD Little Pieces, lançado pelo selo inglês Wildflower. “Meu próximo disco será uma retribuição à JFA, com o lucro destinado à ajuda de outros músicos que vivem desesperados, como um dia estive.”
Com a Crise Econômica, a Situação dos Músicos Pobres, que Já Andava Ruim, Piorou
Um concerto anual no histórico teatro Apollo, no Harlem, é a principal fonte de renda da Jazz Foundation. Este ano, Norah Jones, Bill Cosby e outros 50 artistas buscavam angariar fundos para músicos norte-americanos sofrendo de forma intensa os males da recessão. “Você ouve o tempo todo que a situação econômica aqui nos EUA está caótica, que a hora é de apertar os cintos. Imagine como ficam os que já viviam em dificuldade antes da crise explodir?”, pergunta Wendy Oxenhorn, diretora-executiva da JFA, organização sem fins lucrativos criada em 1989.
Na ante-sala do escritório de Oxenhorn, um senhor negro de meia-idade, saxofone em punho, procura assistência. Ele quer saber se a JFA pode ajudá-lo a encontrar trabalho. Alguns minutos depois a entrevista é interrompida por outro instrumentista em busca de uma geladeira para enfrentar o calor. “Este foi um baixista que tocou com todo muito importante e teve pólio aos 58 anos. Ficou esquecido e alguém falou para ele da JFA”, conta Oxenhorn, lembrando que a maioria dos músicos não autoriza a revelação da identidade.
A cantora Lodi Carr é exceção. Uma das musas do renascimento do Jazz nos anos 50 em Nova York, cujo disco Ladybird (1958) é vendido por 50 dólares nas lojas de vinil da cidade, não se importa de falar dos tropeços. Dos muitos nomes que surgem de sua memória pródiga nenhum é louvado como Dizzy Gillespie. Quando estava tratando de um câncer que o mataria em 1993, o mago do trompete criou um fundo voltado a músicos no Hospital de Englewood, em Nova Jérsei. Desde então, sem custo para os pacientes, a JFA envia músicos para serem tratados lá.
Na JFA, os artistas estão em todas as pontas do processo. O médico-chefe de Englewood é um baixista amador. Wendy Oxenhorn toca harmônica como ninguém e chegou à fundação depois de ver um anúncio em um jornal, quando se apresentava nas estações de metrô. Sob as ruas de Manhattan, ela conheceu a mato-grossense Sissi Verdi, 80 anos, cabelos longos, a voz grave e a batida de violão característica dos apaixonados por Baden Powell.
Sissi tocou, em uma trajetória que a levou aos quatro cantos do mundo, como Cavour e Camila Benson. Hoje, recebe uma ajuda mensal de 200 dólares da JFA e vive em um prédio administrado pelo Social Security americano. Depois de duas décadas tocando nos metrôs, Sissi conseguiu se aposentar nos EUA e recebe subsídio de 400 dólares por mês para remédios “Tenho saudades do Brasil, mas quando poderia ter casa, medicamentos e até alimentação incluídas na pensão?;”
Cidade Dura: Lodi Conhece Outra Nova York: 'Amigos Sofrem'
Para Lodi Carr, no entanto, Nova Iorque revela sua face mais dura para artistas que viraram a casa dos 60. “A maioria dos meus amigos estão sofrendo com a recessão. As coisas ficaram ainda mais difíceis. Na JFA, têm atendido 500 casos por ano relacionados a músicos de minha idade. Não acho que tende a diminuir”, diz.
Oxenhorn lembra que, nos EUA, a relação entre miséria e arte é mais íntima do que se pensa. E revela que conseguir doações das grandes estrelas da música, ou mesmo a participação no concerto anual da fundação, é tarefa das mais complicadas.
Mas há também histórias com final feliz, como a do músico que tocou em vários álbuns de Frank Sinatra, pegou uma pneumonia aos 71 anos, ficou impossibilitado de fazer suas noites nos clubes de Nova Iorque e acabou despejado. Foi encontrado pela JFA morando em um carro. Hoje, paga as contas com a própria música.
Mas todos são casos que revelam o descaso pela cultura popular em um país rico como os EUA, com um showbizz repleto de milionários. Daí a missão da JFA, como descreve o crítico musical Nat Hentoff, do semanário Village Voice, ser a de ‘regenerar as vidas de artistas abandonados, cuidando de suas necessidades básicas’. “A idéia inicial era criar um museu do jazz, mas surgiram histórias de vários músicos que seguiam impossibilitados de se apresentar, de nomes que fizeram parte da vida cultural de Nova Iorque e estavam esquecidos”, diz Oxenhorn.
Ela lembra que o fim da era de ouro do jazz levou ao desaparecimento de inúmeros clubes e casas noturnas. O processo de desregularização dos sindicatos, aprofundado pelos sucessivos governos republicanos, aumentaram a necessidade de criação de um organismo como a JFA. Uma de suas principais iniciativas é levar músicos como Norman, Carr e Verdi para apresentações em hospitais, asilos e orfanatos.
De acordo com Oxenhorn, desde 2005, após a tragédia do furacão Katrina, quando centenas de artistas se viram desalojados da noite para o dia e a fundação se popularizou, o número de músicos assistidos subiu para 3.500 ao ano. Em Nova Orleans, a fundação criou um fundo de 1 milhão de dólares voltado para os shows. “Eles trabalharam duro a vida toda e nos fizeram um bem enorme, compuseram a trilha sonora de nossas vidas. Não há como não pensar em ajudar estas pessoas que querem, essencialmente, continuar a mostrar sua arte para o público”, diz.
A diretora da JFA é uma máquina. O treinamento na harmônica a presenteou com uma capacidade de falar de modo polido, mas sem grandes pausas para respirar. Quando encasqueta com alguma idéia, parece impossível demovê-la. “Adoraríamos estabelecer uma parceria com artistas brasileiros, por exemplo. Imagine uma noite musical beneficente juntando artistas do jazz daqui com músicos que se dedicaram aos vários ritmos brasileiros, como o baião, xote, forró? Não seria o máximo?”. Ou, como se diz em português, não daria samba?
Fundamental foi a conversa que tive com o pessoal da Jazz Foundation of America (JFA) e com os músicos - os três da foto, pela ordem, o sensacional Jimmy Norman, um dos compositores do hit Time Is On My Side, a queridíssima Lodi Carr, a Joaninha do Jazz, e a espoleta mato-grossense Sissi Verdi, que tem um vozeirão impressionante (conhecida quem anda de metrô todo dia aqui na cidade). Importante frisar que descobri o trabalho da JFA, uma associação que recoloca os músicos no mercado de trabalha e presta todo tipo de assistência - hospitalar, habitacional - que o Estado, na primeira economia do mundo, se abstém de fazer, através do colunista do Village Voice, e fanático por jazz, Nat Hentoff.
Segue o texto:
QUANDO O JAZZ JAZ
MÚSICA Os Estados Unidos do showbizz milionário relutam em socorrer os ícones do passado. Restam as Fundações.
POR EDUARDO GRAÇA,
DE NOVA YORK
É impossível desviar o olhar. A primeira imagem que se vê no apertado quitinete em que Jimmy Norman vive no Upper West Side, em Manhattan, é uma foto sua com Keth Richards. O compositor de 70 anos foi um dos autores do primeiro hit dos Rolling Stones, Time is on My Side. O detalhe triste da história é que a faixa que chegou ao top six das paradas norte-americanas jamais rendeu centavos a mais para Norman.
Quando a notícia de que Norman estava sendo despejado do apartamento por falta de pagamento do aluguel chegou à Jazz Foundation of América (JFA) os poucos pertences do artista que participou do histórico grupo de doo-wop The Coasters estavam encaixotados. Ele dormia em uma cadeira de plástico. A saúde, debilitada depois de dois ataques cardíacos, o impedia de se apresentar na noite nova-iorquina, seu principal ganha-pão desde os anos 70, quando se tornara uma das estrelas do cultuado Harlem River Drive de Eddie Palmieri, com seu mix de salsa, jazz, funk e soul.
“Durante muitos anos tive vergonha de dizer que a letra de Time Is On My Side era minha. Não queria que as pessoas tivessem pena de mim”, diz, olhando para os chinelos de dedo que protegem os pés cobertos por longas meias de algodão apesar do calor opressor do verão nova-iorquino.
Norman foi um dos beneficiados pelo fundo de emergência criado pela JFA para ajudar músicos em dificuldade financeira. O aluguel foi pago e o tratamento de saúde regularizado. A faxina feita por dois voluntários da ONG trouxe à tona uma preciosidade: uma fita-cassete com a primeira sessão de Bob Marley nos EUA, aos 23 anos, sob a batuta de Norman, a pedido do cantor Johnny Nash, dono do selo JAD.
“Gravamos a fita em meu antigo apartamento no Bronx. O sonho de Bob, naquela época, era ser o novo James Brown”, conta. As oito músicas (três da lavra de Norman), resultantes de três dias de trabalho, foram adquiridas por 26 mil dólares num leilão na Christie’s. Assim ele pôde comprar dois computadores, montar um estúdio caseiro e gravar o CD Little Pieces, lançado pelo selo inglês Wildflower. “Meu próximo disco será uma retribuição à JFA, com o lucro destinado à ajuda de outros músicos que vivem desesperados, como um dia estive.”
Com a Crise Econômica, a Situação dos Músicos Pobres, que Já Andava Ruim, Piorou
Um concerto anual no histórico teatro Apollo, no Harlem, é a principal fonte de renda da Jazz Foundation. Este ano, Norah Jones, Bill Cosby e outros 50 artistas buscavam angariar fundos para músicos norte-americanos sofrendo de forma intensa os males da recessão. “Você ouve o tempo todo que a situação econômica aqui nos EUA está caótica, que a hora é de apertar os cintos. Imagine como ficam os que já viviam em dificuldade antes da crise explodir?”, pergunta Wendy Oxenhorn, diretora-executiva da JFA, organização sem fins lucrativos criada em 1989.
Na ante-sala do escritório de Oxenhorn, um senhor negro de meia-idade, saxofone em punho, procura assistência. Ele quer saber se a JFA pode ajudá-lo a encontrar trabalho. Alguns minutos depois a entrevista é interrompida por outro instrumentista em busca de uma geladeira para enfrentar o calor. “Este foi um baixista que tocou com todo muito importante e teve pólio aos 58 anos. Ficou esquecido e alguém falou para ele da JFA”, conta Oxenhorn, lembrando que a maioria dos músicos não autoriza a revelação da identidade.
A cantora Lodi Carr é exceção. Uma das musas do renascimento do Jazz nos anos 50 em Nova York, cujo disco Ladybird (1958) é vendido por 50 dólares nas lojas de vinil da cidade, não se importa de falar dos tropeços. Dos muitos nomes que surgem de sua memória pródiga nenhum é louvado como Dizzy Gillespie. Quando estava tratando de um câncer que o mataria em 1993, o mago do trompete criou um fundo voltado a músicos no Hospital de Englewood, em Nova Jérsei. Desde então, sem custo para os pacientes, a JFA envia músicos para serem tratados lá.
Na JFA, os artistas estão em todas as pontas do processo. O médico-chefe de Englewood é um baixista amador. Wendy Oxenhorn toca harmônica como ninguém e chegou à fundação depois de ver um anúncio em um jornal, quando se apresentava nas estações de metrô. Sob as ruas de Manhattan, ela conheceu a mato-grossense Sissi Verdi, 80 anos, cabelos longos, a voz grave e a batida de violão característica dos apaixonados por Baden Powell.
Sissi tocou, em uma trajetória que a levou aos quatro cantos do mundo, como Cavour e Camila Benson. Hoje, recebe uma ajuda mensal de 200 dólares da JFA e vive em um prédio administrado pelo Social Security americano. Depois de duas décadas tocando nos metrôs, Sissi conseguiu se aposentar nos EUA e recebe subsídio de 400 dólares por mês para remédios “Tenho saudades do Brasil, mas quando poderia ter casa, medicamentos e até alimentação incluídas na pensão?;”
Cidade Dura: Lodi Conhece Outra Nova York: 'Amigos Sofrem'
Para Lodi Carr, no entanto, Nova Iorque revela sua face mais dura para artistas que viraram a casa dos 60. “A maioria dos meus amigos estão sofrendo com a recessão. As coisas ficaram ainda mais difíceis. Na JFA, têm atendido 500 casos por ano relacionados a músicos de minha idade. Não acho que tende a diminuir”, diz.
Oxenhorn lembra que, nos EUA, a relação entre miséria e arte é mais íntima do que se pensa. E revela que conseguir doações das grandes estrelas da música, ou mesmo a participação no concerto anual da fundação, é tarefa das mais complicadas.
Mas há também histórias com final feliz, como a do músico que tocou em vários álbuns de Frank Sinatra, pegou uma pneumonia aos 71 anos, ficou impossibilitado de fazer suas noites nos clubes de Nova Iorque e acabou despejado. Foi encontrado pela JFA morando em um carro. Hoje, paga as contas com a própria música.
Mas todos são casos que revelam o descaso pela cultura popular em um país rico como os EUA, com um showbizz repleto de milionários. Daí a missão da JFA, como descreve o crítico musical Nat Hentoff, do semanário Village Voice, ser a de ‘regenerar as vidas de artistas abandonados, cuidando de suas necessidades básicas’. “A idéia inicial era criar um museu do jazz, mas surgiram histórias de vários músicos que seguiam impossibilitados de se apresentar, de nomes que fizeram parte da vida cultural de Nova Iorque e estavam esquecidos”, diz Oxenhorn.
Ela lembra que o fim da era de ouro do jazz levou ao desaparecimento de inúmeros clubes e casas noturnas. O processo de desregularização dos sindicatos, aprofundado pelos sucessivos governos republicanos, aumentaram a necessidade de criação de um organismo como a JFA. Uma de suas principais iniciativas é levar músicos como Norman, Carr e Verdi para apresentações em hospitais, asilos e orfanatos.
De acordo com Oxenhorn, desde 2005, após a tragédia do furacão Katrina, quando centenas de artistas se viram desalojados da noite para o dia e a fundação se popularizou, o número de músicos assistidos subiu para 3.500 ao ano. Em Nova Orleans, a fundação criou um fundo de 1 milhão de dólares voltado para os shows. “Eles trabalharam duro a vida toda e nos fizeram um bem enorme, compuseram a trilha sonora de nossas vidas. Não há como não pensar em ajudar estas pessoas que querem, essencialmente, continuar a mostrar sua arte para o público”, diz.
A diretora da JFA é uma máquina. O treinamento na harmônica a presenteou com uma capacidade de falar de modo polido, mas sem grandes pausas para respirar. Quando encasqueta com alguma idéia, parece impossível demovê-la. “Adoraríamos estabelecer uma parceria com artistas brasileiros, por exemplo. Imagine uma noite musical beneficente juntando artistas do jazz daqui com músicos que se dedicaram aos vários ritmos brasileiros, como o baião, xote, forró? Não seria o máximo?”. Ou, como se diz em português, não daria samba?
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