sábado, julho 22, 2006

Guarnieri

Morreu hoje, aos 71 anos, em São Paulo, o ator, dramaturgo e letrista Gianfrancesco Guarnieri. Na semana passada encontrei-me em Manhattan com o grande mestre da fotografia de cinema Walter Carvalho, que me contou da emoção do reencontro este ano entre Edu Lobo e Guarnieri, por conta do documentário que minhas queridas Regina Zappa e Beatriz Tillman estão concluindo sobre a obra do genial compositor. Juntos eles criaram uma das mais fantásticas gemas da MPB, Upa Neguinho. O sábado termina mais triste.

Já Para Dentro!

Nunca tive o prazer de conhecer pessoalmente o escritor e grande jornalista Augusto Falcão. Mas mestre Moacir Andrade, meu querido Moa, nos tempos do JB da Avenida Brasil, me presenteou com uma coletânea de contos e causos do dito cujo. Li, adorei, e sempre que posso corro para o Estadão a fim de me deliciar com as novidades de seu Falcão. Hoje ele nos presenteia com uma série de histórias hilárias envolvendo a nata da MPB. A minha favorita eu reproduzo aqui:

Meia Volta


(...) O produtor musical Antonio Carvalho vinha no seu carro em companhia do cantor e compositor Rolando Boldrin. Quando passava pelo portão do Cemitério da Consolação, preceberam que duas velhinhas, bem velhinhas, bem magrinhas, iam saindo de lá. Boldrin, com a cabeça de fora do carro, gritou para elas: "Pra onde pensam que vão? Já pra dentro!". As duas, coitadas, obedeceram.

As outras histórias podem ser lidas aqui, infelizmente apenas para os assinantes do jornal paulistano.

quinta-feira, julho 20, 2006

Confinados nos Porões do Império

Saiu hoje no Valor Econômico a reportagem que fiz com os advogados norte-americanos que defendem, de graça, os cerca de 500 cidadãos confinados na prisão da base militar de Guantánamo, acusados de serem terroristas islâmicos. Além da reportagem principal, o jornal também publicou o depoimeto de um dos acusados, liberado pelos advogados.

Confinados nos Porões do Império
Por Eduardo Graça, para o Valor
21/07/2006


Os inimigos do Império agora são os advogados. E advogados americanos. Há duas semanas, o Departamento de Justiça dos EUA enviou uma petição à Corte Federal do Distrito de Columbia a fim de ter acesso à troca de correspondência entre os prisioneiros da base naval de Guantánamo e seus representantes legais. O ataque ao direito de sigilo é mais um capítulo da batalha travada entre Washington e um grupo de advogados que atazana o governo Bush desde junho de 2004, quando a Suprema Corte determinou que os homens confinados em Guantánamo teriam direito a representação legal. Eles são cidadãos americanos - como exige a legislação antiterrorista aprovada no Capitólio - que aceitaram defender de graça os 460 supostos terroristas oriundos de países como Arábia Saudita, Argélia e Egito, capturados pelos militares ianques. E como os republicanos seguem defendendo o controle da informação como premissa para se vencer a guerra contra o terror, tem cabido justamente a esses advogados a primazia de contar, pelo viés dos derrotados, a história dos quatro anos de existência da prisão especial de Guantánamo.

Zachary Katznelson, 32 anos, é um dos responsáveis pela defesa de 34 presos em Guantánamo. No ano passado, assumiu o posto de conselheiro-geral da Reprieve, organização criada em 1999 para defender réus sem condição financeira. Ele é um nova-iorquino da cepa, que perdeu amigos, há cinco anos, no ataque terrorista ao World Trade Center. "Quase toda minha família ainda vive na cidade e eles me apóiam em cada passo de meu trabalho com os prisioneiros", conta.

Advogados como Katznelson, o veterano Stephen Oleskey, de Boston, que representa seis prisioneiros argelinos capturados na Bósnia, e o legendário Bill Goodman, de Chicago, famoso pelas batalhas pelos direitos civis dos negros e primeiro a pedir habeas-corpus para quase toda a população carcerária de Guantánamo, enxergam no complexo de seis prisões da base naval instalada no extremo oriental de Cuba o símbolo mais óbvio do fracasso da estratégia do governo Bush na "guerra ao terror". "Guantánamo danificou sensivelmente nossa imagem, chegando a comprometer nossa capacidade de ação diplomática mundo afora. E quanto mais os americanos compreendem o que é, de fato, esse centro de detenção singular, mais eles querem que suas portas sejam cerradas. No entanto, o governo Bush tem sido primoroso em demonizar os homens lá confinados, e isso tem um impacto imenso na opinião pública. Por isso, tomamos a tarefa de tentar mostrar a verdade do que acontece em Guantánamo", disse Katznelson ao Valor.

Diretor-legal e fundador da Reprieve, o advogado Clive Stafford Smith escreveu para a "New Statesman" uma das peças mais pungentes sobre o cotidiano no complexo militar de segurança máxima, em que esteve uma dezena de vezes. Smith classifica Guantánamo como uma "zona fora-da-lei dentro dos EUA". Em uma ação que ecoa o gigante Sobral Pinto, Smith apelou à Suprema Corte americana, sem sucesso, para que seus clientes tivessem ao menos os mesmos direitos que os animais protegidos pela legislação ambiental no entorno da base. Ele lembrou que a multa para quem mata um iguana, réptil comum nas imediações da base, é de US$ 10 mil (pouco mais de R$ 20 mil). Entretanto, "se por acaso alguém sentir a necessidade de maltratar um dos prisioneiros de Guantánamo, não haverá nenhuma conseqüência".

Em junho, ele retornou à base para conversar com Mohammed "Yusuf" el Gharani, oriundo do Chad, capturado no Paquistão em 2002, quando tinha 14 anos. Outro prisioneiro havia revelado a Smith, em março, que Gharani tentara se matar duas vezes. Durante três meses, os advogados da Reprieve tentaram convencer o governo americano de que a visita era emergencial. "Os militares finalmente nos liberaram para podermos falar publicamente sobre Gharani, mas estamos proibidos de revelar o conteúdo da conversa de nosso mais jovem cliente com Smith. No entanto, Smith viu com seus próprios olhos os cortes profundos em seus pulsos e braços, uma evidência de que Gharani, em desespero, tentou se matar", conta Katznelson. Ele lembra que "não é nada fácil conversar com os clientes". Há a barreira da língua e, ainda mais grave, "a dificuldade em lhes ganhar a confiança, não apenas por ser americano, mas pelo fato de eles terem sido interrogados por falsos advogados anteriormente, uma técnica utilizada comumente pelos militares". Mês passado, logo depois da visita de Smith, a situação em Guantánamo chegou a seu ponto mais explosivo, quando o governo americano anunciou publicamente o suicídio, dentro de suas celas, de Manei al Habadi, 30, Yasser al Zahrani, 22, e Ali Ahmed, 29.

Na primeira semana de julho, os guardas revelaram que na cela de um dos presos foi encontrado um bilhete enviado por um outro prisioneiro com o título "informação privilegiada entre cliente e advogado". O texto dava dicas de como utilizar as próprias roupas para se enforcar, corroborando a tese defendida pelo governo de que o triplo suicídio teria sido uma "ação drástica de propaganda terrorista". Motivo suficiente para que se tentasse acabar com o privilégio do sigilo nas conversas entre defensores e acusados.

As reações ao triplo suicídio foram imediatas. O especialista David Nicholl, do Queen Elizabeth Hospital, da Inglaterra, declarou que considerava difícil acreditar, a partir do relatório divulgado pelo departamento de Defesa dos EUA, que os três prisioneiros tivessem, de fato, se matado. Diretor da Sociedade de Famílias Cuaitianas dos Presos em Guantánamo, Khaled al-Oudah, cujo filho Fawz está detido na base, sugeriu o que médicos já haviam insinuado: a grande possibilidade de os presos terem morrido por conta de ferimentos e maus-tratos. Em outro flanco, a Reprieve tratou de divulgar informações sobre os prisioneiros que pereceram na base militar. Para tanto, utilizou-se do depoimento de seus nove clientes britânicos liberados por falta de provas nos últimos anos. "Nós mantemos contato com todos eles, que, aliás, sequer foram indiciados", diz Katznelson. De acordo com eles, Habadi, Zahrani e Ahmed participavam de uma greve de fome, juntamente com outros 12 detentos, desde a metade de 2005.

Em novembro, o secretário de Defesa, Donald Rumsfield, dissera que não havia "greve de fome alguma" em Guantánamo. Alguns terroristas, afirmara, decidiram "entrar numa dieta" para chamar a atenção da imprensa. Mais tarde, o governo informou que as greves de fome eram "consistentes com o treinamento da Al Qaeda". Os presos, querendo ou não, seriam alimentados. A Reprieve denunciou então a violação à Declaração da Associação Médica Mundial de Tóquio, de 1975. Esta determina que a alimentação artificial em prisioneiros de guerra é comportamento antiético e pode levar a uma reação ainda mais desesperada dos detentos. Os advogados colheram depoimentos de presos que teriam sido amarrados a uma cadeira enquanto soldados inseriam um tubo com comida goela abaixo, causando uma dor insuportável, levando alguns deles a dizer que aquilo não era mais vida. Shaker Aamer, cliente da Reprieve recentemente liberado de Guantánamo, conta que um dos guardas disse a ele, em janeiro, que "estes rapazes perderam qualquer esperança de viver. Não há mais vida em seus olhos. Não há comida que os mantenha vivos. Eles são fantasmas, e querem morrer. Mesmo com quatro refeições ministradas diariamente, a diarréia não cessa".

Manei al Habadi, saudita, era cliente de outro advogado americano, Jeff Davis. Acusado de pertencer ao Jama'at Al Tablighi, um subgrupo da Al Qaeda com atividade no Quatar e no Egito, sua função seria a de recrutar soldados para ações anti-Ocidente. Outro ex-prisioneiro britânico, Tarek Dargoul, conta que Manei era muito querido, pelo hábito de recitar poesias para os outros prisioneiros. Yasser al Zahrani também era saudita. Quando chegou em Guantánamo, em 2002, mal havia saído da puberdade. Jeito de menino, cabelo comprido (antes de ser cortado pelos militares), tornou-se uma espécie de líder dos presos. Dargoul estranhou o suicídio. "Duvido que ele se mataria. Não era o tipo que se entrega. Ele foi dos que mais sofreu nas mãos dos guardas, mas sempre que voltava para sua cela nos animava com palavras de conforto", contou aos advogados da Reprieve. Zahrani foi um dos muitos presos de Guantánamo que nunca teve o luxo de contar com um defensor legal. Fora acusado de ser, aos 16 anos, um "soldado de destaque do Talibã", responsável pela compra de armas. Três semanas antes de sua morte, sua família recebera a notícia de que ele seria repatriado, por falta de provas.

Ali Ahmed era natural do Iêmen. Acusado de ser um "soldado raso" da Al-Qaeda, teria se mostrado extremamente hostil aos guardas. Para conseguir mais informação sobre ele, a Reprieve recorreu ao interrogatório do prisioneiro argelino Fahmi Ahmed (sem parentesco). Ele conta que tinha 22 anos quando foi preso por soldados paquistaneses, juntamente com Ali. E que os dois viviam em uma espécie de república de estudantes. Fahmi confessa que os dois jovens fumavam haxixe freqüentemente, que compravam de um traficante de drogas, o argelino Mohammed Al Qadir, atitude jamais tolerada entre muçulmanos ortodoxos. Preso poucos dias depois dos dois Ahmed, Qadir conta em outro depoimento que "um guarda de Guantánamo bateu a porta de ferro em minha mão e tive de ser levado ao hospital da base, para atendimento médico".

A tortura é tema central nas conversas com os advogados dos prisioneiros de Guantánamo. Outro advogado americano, Jameel Jafer, da União Americana pelos Direitos Civis (Aclu), centrou seus esforços em exigir a liberação de documentos que pudessem revelar a prática de tortura na base militar. Foi ele o primeiro a encontrar provas textuais de "abusos físicos" praticados contra os presos. Até o momento, graças aos esforços dos advogados da Aclu, mais de 90 mil páginas de documentos sobre a prática de tortura em Guantánamo foram liberadas e podem ser checadas na página da organização na internet. Esses documentos são parte do material utilizado por Stephen Miles, especialista em ética médica, autor do impressionante livro "A Traição do Juramento - Tortura, A Cumplicidade dos Médicos e a Guerra ao Terror", em que denuncia a participação de médicos no processo de tortura de presos em Guantánamo e no Afeganistão, e chega a detalhar os métodos utilizados para se extrair informação dos "prisioneiros da guerra ao terror". De acordo com Miles, mais de cem cidadãos não sobreviveram às torturas. A partir dos documentos revelados pelos advogados da Aclu, ele revela que o "monitoramento médico da tortura a terroristas", uma clara violação à Convenção de Genebra, foi autorizado pelo próprio secretário de Defesa.



"A primeira coisa que pensei quando comecei a ouvir o depoimento de meus clientes foi que, em 1984, quando entrei na faculdade de direito, jamais imaginei que um dia viveria para ver isto acontecer nos EUA. Mas os soldados da base parecem aceitar a realidade de Guantánamo sem pestanejar. E apenas uma minoria dos promotores americanos fica horrorizada. A maioria acha tudo isso normal mesmo", revela Clive Smith. Vem desta sensação de se "estar em outro país" a utilização pelos advogados de um aparato legal típico do combate a ditaduras militares e regimes fascistas. "Enquanto continuamos mantendo em cativeiro cidadãos sem qualquer embasamento legal, ferindo os direitos humanos mais básicos, a autoridade moral da nação é nula. E as chances de se convencer outros regimes a mudarem seus métodos de lidar com seus cidadãos são ainda mais tênues", diz Katznelson.

No dia 29 de junho, dois dias depois de o livro de Miles chegar às livrarias, a Suprema Corte reconheceu que os "tribunais militares" criados pelo governo Bush para julgar alguns prisioneiros em Guantánamo também violam a Convenção de Genebra e o Código de Justiça Militar dos Estados Unidos, atestando sua ilegalidade. Como lembrou Neal Katyal, professor de legislação da faculdade de direito de Georgetown, "existem poucos países em que um forasteiro com primeiro-grau incompleto pode processar o presidente da República. Este é nosso maior legado para o mundo".

Parecia ser uma vitória para os advogados e o prenúncio do fim de Guantánamo. Mas a Casa Branca reagiu rapidamente. A mais alta instância da Justiça americana também decidiu que o presidente não pode, unilateralmente, sobrepor-se a Genebra. Precisa do aval do Congresso. Pois na semana que passou os neoconservadores iniciaram uma investida para que, nas palavras do procurador-geral Alberto Gonzalez, os "legisladores dividam com a administração a responsabilidade pela criação dos mecanismos excepcionais, necessários para o combate ao terror".

Um desses mecanismos, sancionado em dezembro de 2005 pelo presidente Bush, recebeu de Katznelson o codinome de "buraco negro legal". "Trata-se de uma lei que barra novas ações legais dos presos de Guantánamo contra o governo americano. Todos os que não tinham entrado com uma ação até aquela data estão legalmente impedidos de questionar sua detenção. E, por causa da falta de informação oficial, não temos a menor idéia de quantos presos haviam acionado o governo. Ou seja, ficamos sujeitos a essa situação kafkiana", conta.

O argumento central dos advogados contra Guantánamo é que até agora não foi apresentada sequer uma prova de que os homens lá confinados são culpados de algum crime. "No fim da Segunda Guerra Mundial, nós, americanos, comandamos os julgamentos de Nuremberg. Lá, não havia qualquer dúvida de que estávamos lidando com criminosos nazistas de alto escalão. Agora não se pode sequer dizer com certeza que os detentos de Guantánamo são membros da Al Qaeda ou do Talibã, muito menos que cometeram qualquer ação contra outros cidadãos", diz Katznelson. Um exame dos próprios documentos de acusação oferecidos pelo Departamento de Defesa mostra que apenas 8% dos presos de Guantánamo foram capturados por pertencerem à Al Qaeda, e que 55% dos detentos não são sequer acusados de cometer um crime contra os EUA ou seus aliados.

Por isso mesmo, faz-se urgente a necessidade de a sociedade americana entender o significado do labirinto de Guantánamo. No momento em que Katznelson concede entrevista exclusiva ao Valor, as salas de cinema de Nova York estão abarrotadas de gente interessada em ver "Estrada para Guantánamo", de Michael Winterbottom e Mat Whitecross. Na tela, os diretores britânicos expõem de modo arrebatador o sadismo ianque. Para os advogados americanos, o documentário não traz grandes novidades. Debruçados diariamente sobre as histórias dos 460 homens confinados nos porões do Império, eles já compreenderam que, em seus quatro anos de existência, Guantánamo deixou de ser apenas um centro de detenção para suspeitos de atos terroristas. É, ao mesmo tempo, um símbolo terrível da opressão a seres humanos desprovidos de qualquer direito e uma representação de como o mundo percebe os EUA. E de como os americanos vêem a si mesmos.

"Estou Muito Triste Aqui Dentro"
Mohammed el Gharani
21/07/2006


Trabalho desde os 9 anos e meu maior desejo sempre foi ser médico. Mas sempre foi um sonho distante porque, pelas leis sauditas, eu, que nasci na Arábia, mas sou filho de cidadãos do Chad, sempre fui considerado um estrangeiro, sem direito a educação pública. Quando fui preso, estava rezando na mesquita com alguns amigos em Karachi, no Paquistão, onde tinha a chance de estudar inglês e informática. Naquele dia, os soldados paquistaneses cercaram o templo e avisaram, em árabe, que ninguém deveria se mexer ou mostrar resistência. Todos saíram da mesquita com as mãos para o alto.




Eles nos levaram para a prisão de Karachi e as perguntas e a tortura começaram. Tinha apenas um calção para me vestir e era obrigado a me manter na mesma posição de 10 a 16 horas, diariamente. Se me mexesse, era severamente castigado. Um peso foi colocado na minha cabeça e durante 20 dias fui espancado duramente nos interrogatórios. Uma das coisas que mais me humilharam foi quando eles me fizeram beber uma enorme quantidade de liquido e depois amarraram meu pênis. Assim, não era possível que eu urinasse. Então , colocaram uma venda em meus olhos e gritavam nos meus ouvidos: "Diga a verdade!" Isso durou três horas, até que eu me sujasse todo. Os guardas que me torturaram se alternavam no "serviço".

Uma noite, um sargento, que falava árabe, chegou com uma máquina fotográfica e pediu o número de meu telefone. Ele disse que seus colegas queriam me vender para "os americanos" por US$ 5 mil. Ele queria colocar minha foto na internet, revelar o que estava acontecendo e contar tudo para a minha família. Tirou várias fotos. Bem mais tarde, os militares americanos me torturaram e uma das perguntas era sempre sobre o nome do tal sargento paquistanês. Mas quando me disseram que eu iria para os EUA, apesar de soar como uma ameaça, pensei: "Que bom!" Eu só sabia dos americanos pelo que via na televisão, nunca havia conhecido um deles pessoalmente. Pensei que, por causa da democracia, eles fossem pessoas justas e de bem. Minha reação para com os guardas paquistaneses foi: "Mas quando? Quero ir já!"

Os americanos me levaram em novembro de 2001. Tinha 15 anos. As primeiras palavras que aprendi em inglês foram "negro sujo". Não entendia o que aquilo significava, por que eles continuavam me chamando de "nigger". Depois descobri que era uma maneira de me atacar por conta da cor de minha pele. As torturas continuaram quando fui levado pela primeira vez ao Afeganistão, para a prisão de Karachi. Lá, um militar egípcio certa vez queimou meu braço direito lentamente com um cigarro aceso.

Em Guantánamo, as condições não são melhores. Aqui, fui picado duas vezes por aranhas venenosas. Na primeira vez, apesar de todo pus verde que saía de meu braço, não tive qualquer acesso a médicos e fui levado a mais um interrogatório. Lá, desmaiei na cadeira. Minha pior experiência em todos estes anos preso, no entanto, aconteceria aqui em Guantánamo, quando fui transferido do campo em que ficavam os menores de idade para uma outra ala da prisão. Eu estava muito assustado e eles cobriram meus olhos e ouvidos, mas consegui ver uma porta imensa se fechando e eles me sentaram em uma cama. Isso aconteceu no meio da noite e eles me fizeram andar para lá e para cá por pelo menos 45 minutos. Não tinha a mais vaga idéia de onde estava. Cego, bati e bati na porta em busca de alguma resposta, para saber se havia alguém que pudesse me escutar. Nenhuma resposta. Naquela noite, não consegui dormir. Na manhã seguinte, quando perguntei ao guarda por que havia sido transferido, ele me disse que aquela ala fora construída para "os presos que ficarão aqui para sempre". Ele me disse que eu deveria parar de pensar em ir para casa, que eu ficaria aqui minha vida toda. E disse que queria mesmo me manter vivo para que eu sofresse mais. Então ele chamou os outros guardas e eles ficaram zombando de mim, mandando que eu parasse de chorar e que aprendesse a usar lenços.

Já estou aqui nesta cela há um ano. As luzes ficam acesas 24 horas por dia. Ventiladores gigantescos fazem um barulho imenso o tempo todo, para evitar que os presos se comuniquem. Uma vez por semana, posso sair para tomar um banho. Mas às vezes os americanos esquecem e eu fico duas semanas sem sair da cela. Quando perguntei aos guardas por que não tinha recebido nenhuma carta de minha família em todos estes quatro anos, me disseram que se eu colaborasse mais eles me dariam acesso às cartas. Estou muito, muito triste aqui dentro.


Depoimento de Mohammed el Gharani aos advogados da Reprieve, liberado pela organização para reprodução no Valor

segunda-feira, julho 17, 2006

Diretinho da Redação (47)


Amigos,

a coluna da semana já está no DR. A reportagem sobre os advogados norte-americanos que cuidam dos presos de Guantánamo sai no Valor Econômico desta sexta-feira.

TERRORISMO, AQUI E ACOLÁ

Por conta de uma reportagem que preparo aqui em Nova Iorque, conversei esta semana longamente com um dos advogados norte-americanos que defendem os presos encarcerados na base militar de Guantánamo.

Havia muito o que falar e o tempo, ainda que generoso, parecia conspirar contra nós. Enquanto conversávamos, a Suprema Corte decidia, em Washington, contra o governo Bush, que os confinados naquele pedaço nefasto do Caribe estavam sim, afinal de contas, sob a proteção da Convenção de Genebra. E, em São Paulo, o PCC levava o terror à maior cidade da América do Sul, comandando das cadeias novos ataques a uma população tão acuada quanto acéfala.

Depois de conversarmos longamente sobre os abusos cometidos contra seus clientes, disse a meu entrevistado, um campeão da denúncia de abusos cometidos pelo Estado contra cidadãos americanos e estrangeiros, que era difícil não pensar também nos presos brasileiros, tratados de forma sub-humana nas cadeias e presídios do país. Ele retrucou que “o cerne do problema não está do lado de dentro das celas.

É preciso que as pessoas, aqui e no Brasil, entendam de uma vez por todas que a maioria dos cidadãos que vão parar nas penitenciárias, nas cadeias, um dia vão sair de lá, vão voltar a viver no meio delas, do lado de fora. Não tem jeito. Não há Estado que sobreviva – ética, mas também economicamente– sem um planejamento inteligente visando a recuperação destas pessoas. Não há como mantê-las lá para sempre e, ao mesmo tempo, é preciso evitar que tenhamos de gastar ainda mais, seja prendendo-as novamente, ou, ainda mais grave, com a perda de novas vidas, de novas vítimas da violência”.

Dependendo de quem a utiliza, esta pode ser, obviamente, uma matemática perversa. Entrevista já terminada, lembro ao advogado que neste exato momento cresce o desejo, no Brasil, da implantação da pena de morte como solução – econômica e segura – a fim de exterminar monstros sociais como o PCC. Ele, que trabalhou durante muitos anos como representante legal, e sem honorários, de prisioneiros que estavam no corredor da morte e não tinham como pagar sua defesa, tem uma opinião clara sobre o tema: “A pena de morte não faz com que nenhuma comunidade fique mais segura ou menos violenta. Aqui nos EUA, 80% das execuções acontecem nos estados sulistas, aonde o número de casos de crimes violentos é o mais alto do país”.

Há seis anos, a então procuradora-geral Janet Reno revelou publicamente que passou sua vida adulta buscando um único estudo que provasse que a pena de morte fosse um inibidor do aumento dos crimes no país. “Eu jamais o encontrei”, disse.

Lembramos então que em uma recente pesquisa realizada com os mais importantes especialistas em violência urbana nos EUA, 84% dos entrevistados rejeitaram a noção de que a pena de morte diminui, em qualquer instância, a ocorrência de crimes violentos. Na maioria dos casos, acontece justamente o oposto.

Terminamos a longa conversa talvez mais desanimados do que quando a começamos, mas com o sincero desejo de que a sociedade brasileira, tão ciosa de suas qualidades morais e éticas, busque outra saída – quem sabe até mesmo uma solução - para a crise aparentemente insolúvel que a cerca.